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06 maio 2012

O cinema perdeu a sua aura


O fato é que, com o surgimento dos novos suportes, com o avanço da tecnologia, que possibilita a visão de filmes "em qualquer lugar", a magia das salas exibidoras desapareceu. As imagens em movimento se tornaram rotineiras. Nasce-se, hoje, vendo-as no televisor acoplado na parede do hospital enquanto ainda se está a sair para a vida. Todo mundo pode, atualmente, fazer um filme.
Faz-se filmes como antigamente se fazia poesias. Mas isto não quer dizer que eles sejam poéticos (alguns podem sê-los). E o velho cineclube? Ainda teria a mesma função, o mesmo fascínio, a mesma curiosidade? Em alguns lugares, as sessões, por assim dizer, cineclubistas, ainda funcionam, a exemplo das concorridas sessões do Comodoro, patrocinadas pelo cineasta Carlos Reichenbach na capital paulista. Mas, creio, são exceções que fogem à regra. O "negócio", nos dias que correm, se encontra em baixar filmes da internet. E, com isso, aquele reverência que se tinha, diante das imagens em movimento, se perdeu no tempo.
As coisas mudam, porém, e, com elas, a recepção ao filme se tornou um ato rotineiro sem o tão necessário encantamento e assombro. Na verdade, está a acontecer uma revolução no modo de ver o filme, e esta revolução tem que ser assimilada, compreendida. O cinema que se tinha, nos moldes de antigamente, está morto. A sentença de morte foi dada poeticamente por Cinema Paradiso (Nuevo Cinema Paradiso, 1989), de Giuseppe Tornatore. E, também, na mesma época, por "Splendor", de Ettore Scola.
Mas, e a respeitar aqueles que gostam de ver filmes na telinha do computador, devo dizer, em alto e bom som: recuso-me, peremptoriamente a ver filmes na telinha do aparelho informático. Vejo-os muitos em DVD. Pode acontecer, em alguns casos, para falar a verdade, e a verdade verdadeira no sentido kantiano, de assistir a filmes baixados na internet se convertidos em DVD, mas que sejam obras raras, que não as tenha visto e que sejam importantes.
Com o advento do VHS, do laser-disc, do DVD, e, agora, com a possibilidade de se baixar quase tudo da internet, a pergunta que se quer fazer é a seguinte: ainda haveria condições de ser ter um clube de cinema nos moldes do de Walter da Silveira nas décadas de 50 e 60 em Salvador?
Naquela época, difícil era se ver certos filmes, que ficavam restritos às cinematecas. O mercado exibidor se restringia aos lançamentos e as constantes reprises de filmes de sucesso. Como, nos anos citados, assistir aos filmes neo-realistas, aos do expressionismo alemão, às obras mais independentes de cinematografias desconhecidas, às obras do realismo poético francês, à vanguarda da estética da arte muda?
O único jeito era a viagem e, assim mesmo, o mais certo seria ao exterior, às cinematecas de Nova York ou a de Paris, além de outras importantes da Europa. Aqui no Brasil, existiam, mas ainda incipientes, as cinematecas do Rio e de São Paulo (esta com um acervo mais versátil). Salvador não tinha nenhuma possibilidade de constituir uma cinemateca.
A importância de Walter da Silveira (que boa parte da nova geração não sabe quem foi, apesar de nome de sala alternativa nos Barris) foi justamente a de, com a fundação do Clube de Cinema da Bahia, trazer filmes especiais, essenciais à evolução da linguagem e da estética cinematográficas. Walter da Silveira fez ver, aos baianos de província (mas uma província muito agradável bem diferente da cidade engarrafada de hoje), que o cinema, além de um bom divertimento, era, também, a expressão de uma arte.
O próprio Glauber Rocha, quando de sua morte, em novembro de 1970, em artigo para o Jornal da Bahia, confessou que o ensaísta fora seu grande mestre, que aprendeu a ver cinema através das palavras de Walter da Silveira. E conta, num artigo, o esporro que este lhe deu, quando, numa exibição de "O encouraçado Potemkin", numa sessão matutina no cinema Liceu, conversava, durante a exibição, com um amigo. Walter, percebendo o "arruído", deu-lhe tremendo esporro, segundo palavras do próprio Glauber que, conta, nunca mais falou durante a projeção de um filme, tal a indignação do mestre diante do jovem tagarela.
Atualmente, no entanto, com a facilidade existente, pode-se ver um raro filme antigo, a exemplo de Ordet, de Carl Theodor Dreyer, famoso cineasta dinamarquês, em boa cópia em DVD. Este filme, há poucos anos, somente seria possível ser contemplado na cinemateca de Henry Langlois, em Paris. Outro dia, vim a saber, um conhecido baixou da internet, em cópia decente e legendada, As estranhas coisas de Paris (Elena et les hommes, 1956), com a bela Ingrid Bergman e Jean Marais, filme difícil de se ver (nunca passa na televisão e não tem no disquinho).
Uma vez no Rio, ao saber da exibição de Ladrões de bicicleta na Cinemateca do Museu de Arte Moderna, em única sessão, ainda que mal tivesse chegado à cidade, corri para lá. Finda a exibição, chuva torrencial fiquei encharcado e voltei a pé para o hotel (a cidade engarrafada, tudo parado). Nos tempos atuais, faria o mesmo sacrifício? Claro que não, pois o DVD de "Ladri di biciclette" está disponível não somente para ser adquirido, mas também nas melhores locadoras da cidade.
Qual a função do cineclubismo nos dias atuais? Walter da Silveira, por exemplo, sobre ser um dos maiores ensaístas de cinema do Brasil (na Bahia ninguém nunca lhe chegou perto), era um homem, verdade se diga, à antiga, de tom grave, circunspeto, com uma gestualística bem diversa da juventude atual e, mesmo, dos menos jovens que atualmente constituem o meio circundante e intelectual, universitário. A figura de Walter faz lembrar aqueles antigos mestres universitários, principalmente os professores da Faculdade de Direito (no acento vocal, nas pausas, na maneira de expor o assunto, um "magister dixet").
Mas acontece que o mundo mudou e, com ele, a cultura. Houve um papel importantíssimo exercido por Walter da Silveira. Os realizadores que se aventuram na captação das imagens em movimento são contemporâneos de um cinema digital. Faz-se filmes até pelos telefones celulares. O Clube de Cinema da Bahia, portanto, não poderia existir - nem teria razão de ser - nesta chamada contemporaneidade. A própria psicologia de recepção da obra cinematográfica mudou. Bem, são reflexões ao acaso.

7 comentários:

Marcus Pessoa disse...

O fato de um filme ter sido baixado na internet não significa que tenha que ser visto na telinha do computador.

Muitos televisores atuais são compatíveis com os formatos da internet, inclusive das legendas. Basta copiar num pen drive e plugar no televisor.

Se a TV não é compatível, dá pra usar esse pequenos players que podem ser ligados à TV, como o WDTV, da Western Digital.

Com uma boa conexão de internet e um desses equipamentos, é possível ver filmes ótimos e pouco conhecidos, em alta resolução, melhor do que DVD.

limongigasparini@gmail.com disse...

"como se FAZIAM poesias"

Rafael Galvão disse...

Tenho a impressão de que, hoje, cineclubes apenas como grupos de estudos, e olhe lá. Grupos de amigos que se juntam para assistir e discutir filmes. A ideia do cineclube, e sua função social perde um pouco o sentido com a facilidade de comunicação. Em 3 minutos, via Google, você acha uma enormidade de informação que, mesmo 15 anos atrás, era impensável. Ou seja: sem sair da sua poltrona você assiste ao filme que quer e encontra informação e julgamentos críticos que superam, em volume e muitas vezes em qualidade, o que se tinha em um cineclube nos anos 60/70. (E as sessões do Comodoro não seriam concorridas apenas por causa da grife Reichenbach?)

Não é só a variedade de plataformas. É o fato de que várias delas chegam a ser melhores do que o que o cinema tinha à disposição, digamos, há 80 anos. Como o Marcus lembrou, na internet baixa-se filmes em alta definição com qualidade muito superior à dos DVDs. O Blu-ray, por exemplo, em uma televisão grande, pode oferecer uma experiência muito melhor que a maioria das salas de exibição atuais, em um mundo onde as pessoas são mal-educadas, onde os celulares são onipresentes com sua tela ofuscante e onde projecionistas parecem não saber mais sequer ajustar o foco.

(Sem falar que tem gente que simplesmente coloca projetores conectados ao computador em casa para ter um pouco daquela aura do cinema.)

André Setaro disse...

Concordo com Marcus e com Rafael e obrigado pelos comentários preciosos.

Anônimo disse...

Caro André Setaro, lendo seu artigo me lembrei de uma viagem que fiz ao Rio, nos anos 70, só para assistir os filmes de Godard no Cine Paissandu. Quando voltei pra Bahia, passei uns 2 anos falando sobre aqueles filmes que por aqui ainda eram inéditos. Os festivais há dez anos atrás também tinham essa aura. Hoje, semana atrás, acabei de assistir no CinePE "Paraisos Artificiais", e ele já se encontra em cartaz. Á beira do Caminho logo logo estréia. Tudo é rápido como se furta... Mas de alguma forma em alguns Festivais essa aura permanece. E é por isso que frequento os grandes festivais. Os debates no dia seguinte, os bastidores, isso tudo é muito interessante.
Belo texto, professor!
jorge

Anônimo disse...

Olá Setaro achei magnifíco o seu texto e o tema. Meu nome é Reinaldo Costa e tenho a intenção de fazer um projeto na sala Walter da Silveira de um cinelcube nos moldes no Clube de Cinema da Bahia e utilizando textos de Walter e trazendo convidados para palestrar e discutir sobre a linguagem e estética do cinema. Pretendo fazer esse projeto por ter feito um estudo sobre o Clube de Cinema da Bahia na minha graduação em história por ser um amante do cinema e por sentir a necessidade de ter um projeto como esse em salvador. Gostaria de saber se você tem interesse em estar a frente comigo desse projeto junto com um amigo. Estava conversando a cerca de um mês atrás com um amigo a respeito do que você fala no seu texto e sugerir a ele a gente fazer esse projeto com a perspectiva exibidora e formativa do Clube de Cinema da Bahia e agora me deparo com seu belo e preciso texto.

André Setaro disse...

Reinaldo,

Escreva-me para setaro@gmail.com