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06 novembro 2011

A formação de um cinéfilo

O pouco que sei sobre cinema se deve às minhas constantes idas às salas exibidoras. Cinema se aprende indo ao cinema, já disse José Lino Grunewald, e, neste particular, nada mais verdadeiro. Mas o cinéfilo, que se queira completo, tem que amar aquilo que está a ver, contemplar o seu objeto e investigá-lo. Desde cedo, a começar a me interessar pelo cinema, via-o com interesse e dedicação, a procurar leituras que pudessem me dar uma compreensão melhor daquilo que estava a ver. Existem muitas pessoas que vão constantemente ao cinema, mas não o compreendem, pela simples razão de tê-lo como algo descartável, para passar o tempo, esquecendo-se muito rapidamente do que viu. Alguém, que não me lembro agora, afirmou que a cultura cinematográfica é aquilo que permanece na sua memória algum tempo depois de já tê-lo contemplado.

Não tenho formação cinematográfica acadêmica. Minha experiência com as imagens em movimento é autodidata. Formado em Direito nas priscas eras do século passado (1974), advogado por acidente de percurso, mas sem nunca ter exercido a profissão (a rigor, se entrar no fórum não sei para que lados ficam os principais cartórios nem onde se dá entrada a uma petição inicial), embrenhei-me, depois de formado, pelo jornalismo, e mais tarde, pelo magistério (neste caso, vindo a concluir um mestrado em artes visuais).

Minha formação cinematográfica, como ia dizendo, é, portanto, autodidata, com conhecimentos adquiridos pela visão rigorosa dos filmes e algumas visitas às cinematecas. E a considerar que tenho provectos 61 anos, e que fui pela primeira vez ao cinema aos 5 anos, tenho, já de quilometragem rodada, 56 anos e meio de cinema, meio século, portanto, e mais alguma coisa. Mas a considerar, para ser mais rigoroso, que dos 5 aos 8 a contemplação ainda se fazia pela novidade e pelo assombro da descoberta, poderia dizer que tenho 50 anos de rotina cinematográfica.

No início, anos 50, via muito os filmes de gêneros do cinema americano e chanchadas nacionais. Assim, posso dizer que o meu interesse pela chamada sétima arte se desabrocha com a cinematografia estadunidense, Hollywood, que, ainda no seu ocaso, era, ainda, a fábrica de sonhos. Encantei-me logo com os diversos gêneros. O western, por exemplo, com filmes como "Sem lei e sem alma", "Duelo de titãs", "7 homens e um destino", todos os três do habilidoso John Sturges, com "Rastros de ódio", "O homem que matou o facínora", "Audazes e malditos", todos de John Ford, entre tantos outros, como "Shane", de George Stevens. O musical tinha seu esplendor, seu engenho e arte com os filmes de Vincente Minnelli ("A roda da fortuna", "Gigi") e Stanley Donen ("Cantando na chuva", "Dançando nas nuvens") para ficar apenas em dois diretores.

A comédia sofisticada, o "noir", o melodrama, o filme de guerra, o thriller, enfim, gêneros que determinaram o gosto pelo cinema. Bem de acordo com os postulados da indústria de Hollywood, cujos três principais sustentáculos estavam no "star system" (sistema de estrelas), "system" studio (sistema de estúdios), e a divisão do cinema em gêneros.

Ainda que industrial, o cinema americano tinha filmes adultos e não se encontrava infantilizado como ocorre atualmente. O império ideológico, no entanto, mais adiante, fez com que se desprezasse muitas pérolas oriundas de Hollywood para uma parcela de pessoas ditas intelectualizadas e de esquerda (festiva ou não). Lembro de um amigo que se dizia marxista-leninista que foi flagrado por mim no cinema Liceu (Salvador) na sala de espera de "Moscou contra 007". Ao me ver, num átimo de segundo, e em desabalada carreira, desceu para se esconder nos banheiros. Mas não adiantou: eu o tinha visto. E para um militante, como ele, não ficava bem ver filmes do agente secreto britânico com permissão para matar.

Um filme exerce influência sobre o espectador de acordo com as circunstâncias externas nas quais se o viu. É o caso de "Spartacus", de Stanley Kubrick, que, proibido para menores de 14 anos, vi-o com 11 após quatro tentativas infrutíferas para entrar. Naquela época, existia muito rigor em relação à proibição classificatória dos filmes, a existir, ao lado do porteiro, um comissário de menores na porta para impedir o ingresso deles. Mas existiam algumas sessões nas quais o tal comissário não aparecia, principalmente as sessões das 18 horas. Era o momento da oportunidade.

Mas "Spartacus" provocou no adolescente que eu era um assombro. Aquela tela grande, o épico-histórico narrado com ênfase dramática precisa, a amplidão dos espaços, os intérpretes carismáticos (Laurence Olivier, Kirk Douglas, Tony Curtis, Peter Ustinov...). Mas as circunstâncias externas determinaram muito a envolvência, a idade, etc. Atualmente, mesmo que ainda admire muito "Spartacus", não me vem aquela emoção de tempos idos, principalmente porque falta as tais circunstâncias e vê-lo em DVD não é a mesma coisa que assisti-lo na tela imensa e em cinemascope das salas de exibição.Em meados dos anos 60, em torno de 15 anos, comecei a frequentar o Clube de Cinema da Bahia, que era programado pelo grave e sisudo (e grande ensaísta) Walter da Silveira, que, nesta época, exibia filmes especiais aos sábados pela manhã no cine Guarany. O assombro que tive com "Spartacus" teve recaída quando vi, pela primeira vez, "Hiroshima, mon amour", numa dessas sessões matinais. A partir daí vim a entender que o cinema era também uma expressão artística e não mero "divertissement", embora nunca tenha encarado os filmes como puro entretenimento, mas como fontes de emoções puras.

É preciso, portanto, ver e ver filmes. Mas a visão deve ser intensa e não desinteressada - como acontece, atualmente, com a horda de debilóides que freqüenta os complexos de salas instalados em shoppings. Se a pessoa não se interessa pelo filme, e pensa, durante a sua projeção, no encontro que terá com o namorado e com o vestido que irá usar em determinada balada, dias depois não vai mais se lembrar dele.

Minha formação cinematográfica se deu, portanto, nos cinemas soteropolitanos, e, a seguir, no contato com as obras-primas oferecidas nas exibições matinais do Clube de Cinema da Bahia. A partir daí, nasceu o cinéfilo, que se completou com leituras, investigações e reflexões.

4 comentários:

Rato disse...

Bom dia, caro Setaro
Já há algum tempo que venho seguindo este teu espaço, sempre com muito agrado e curiosidade. Somos da mesma geração (tenho menos 3 anos que você) e pelos vistos nutrimos a mesma grande paixão pelo cinema.
Neste teu texto de hoje existem alguns parágrafos que de certo modo generalizam o que deve ser o amor e a compreensão pelo cinema. Por isso, e com a devida permissão, gostaria de os transcrever no meu próprio blogue, remetendo os leitores para o artigo completo, aqui no Setaro's Blog.

Saudações cinéfilas

O Rato Cinéfilo

André Setaro disse...

Desde que citada a fonte, pode transcrever o artigo à vontade.

jose disse...

Sou um cinefilo neonato.Voce cita Spartacus e Walter da Silveira.Eu,humildemente,poderia citar o assombro que foi descobrir o cinema de John Woo e o brilhantismo dos textos do Inacio Araujo.Cinefilos não param de nascer.Talvez esteja aí nossa salvação neste mundo prostitucional com seus templos shoppings.

disse...

Muito pertinente a análise da formação de um cinéfilo. É o tipo de aprendizado que só se dá através de seu próprio esforço. Não dá para ser cinéfilo sem ser um pouco autodidata.