Publicado originariamente na revista eletrônica Terra Magazine em 8 e 16 de agosto de 2011.
Neste aziago mês de agosto, no vindouro dia 22, completa 30 anos (três décadas nada prodigiosas) da morte prematura do grande cineasta baiano Glauber Rocha. Nascido em Vitória da Conquista (interior da Bahia) em 14 de março de 1939, Glauber veio a falecer com apenas 42 anos de idade. Não vou, aqui, falar de sua obra, pois muitos já escreveram sobre ela, inclusive este que vos fala. Mas rememorar alguns encontros que tive com ele em Salvador, Bahia.
Não sou da geração de Glauber, porque vim ao mundo (sem ter sido consultado para isso) em outubro de 1950, 11 anos depois do nascimento do artista. O primeiro impacto glauberiano, por assim dizer, deu-se quando adentrei a sala do majestoso cinema Guarany (aos 14 anos) para ver Deus e o diabo na terra do sol, quando a estupefação tomou conta do adolescente que era. Considero esse filme o maior de toda a história do cinema brasileiro. No documentário O Guarany, de Cláudio Marques, há um depoimento de Orlando Senna sobre a exibição especial do filme para uma plateia de convidados. Terminada a exibição, um silêncio ensurdecedor tomou conta da sala para, minutos depois, desabar um choro convulsivo em quase todos os presentes. Deus e o diabo na terra do sol constituiu uma virada de página, um halo renovador, um sopro de esperança na construção de um cinema nacional autêntico e empenhado em suas raízes.
Colunista diário do jornal soteropolitano Tribuna da Bahia, num tempo em que não havia e-mail, levava, de dois em dois dias, as minhas colunas para entregá-las, em mãos, na redação. Corria o ano de 1976. Outubro. Glauber Rocha estava na Bahia para já ir adiantando a produção de A idade da terra. João Ubaldo Ribeiro, muito amigo de Glauber, era o redator-chefe da Tribuna. Quando ia pegar o elevador, eis que encontro Ubaldo e Glauber também a esperar o ascensor. De repente, Ubaldo me apresenta a Glauber: "Glauber, conhece o nosso crítico de cinema?" Subimos, e, na redação, Ubaldo foi para o seu aquário, enquanto Glauber, em pé, ficou a conversar comigo, a querer saber o motivo de Os condenados, de Zelito Viana, baseado em Oswald de Andrade, não ter, ainda, sido lançado em Salvador. Depois a conversa versou sobre diversos assuntos relacionados ao cinema. Glauber se queixou da crítica que cobrava dele um filme superior a Deus e o diabo. Segundo o cineasta, e aplico aqui a minha memória, um filme é como uma relação amorosa sexual: cada um tem um momento de êxtase diferente.
Enquanto conversava com Glauber na redação da Tribuna da Bahia, João Ubaldo Ribeiro saiu do seu aquário para saber se Glauber tinha comprado um tênis, porque o que usava estava muito gasto. O cineasta de Terra em transe apontou para o pé e mostrou o seu luzidio tênis ao autor de Viva o povo brasileiro. "Comprei na Baixa do Sapateiro" (um comércio, naquela época, considerado de segunda classe).
Dia seguinte, o jornalista Carlos Borges me disse que à tarde, na sala da diretoria da Tribuna, iria fazer uma entrevista com Glauber, e me convidou para participar juntamente com João Ubaldo Ribeiro. Glauber passou a tarde toda falando, e soltava o verbo por confiança em seu amigo Ubaldo. A fita cassete, depois de transcrita para a publicação no dia seguinte, foi-me dada por Borges. É um depoimento impressionante e Glauber, inclusive, faz uma antecipação da morte (da sua?). A fita, emprestei-a para um extra do DVD de Barravento, e o vento sabiamente a levou embora.
Corria o ano de 1978. Junho. Época de Copa do Mundo. Em Salvador, por todo canto da cidade, baianas, em trajes típicos, com seus tabuleiros armados nas ruas e avenidas e praças vendem acarajé, abará, bolinhos de estudante, entre outros quitutes da culinária baiana. Estava na Avenida Sete, perto da Praça da Piedade, comprando um acarajé, quando uma pessoa me pegou pelas costas. "Como vai, rapaz?" Era Glauber Rocha. Perto de onde me encontrava existia, no Largo Dois de julho, o cine Capri, que incendiou em 1980. Ele me perguntou se a sala exibidora estava aberta, porque nos horários dos jogos da Copa geralmente os cinemas fecham. Não soube responder, e ele me disse que ia começar um jogo e queria entrar numa sala para ver qualquer filme. Depois, conversando mais alguma coisa, que não me lembro, avistei sua esposa colombiana que, já adiante, chamava Glauber para sair daquele ponto de acarajé.
Bem, apesar de não ver neste depoimento nada de relevante para contar, considerei, no entanto, os meus encontros com Glauber um acontecimento extraordinário. Embora morando na Bahia, não fui ver as filmagens de A idade da terra. Há um documentário, de Roque Araújo, que tem um arquivo precioso dos bastidores das filmagens do filme, principalmente a briga de Glauber com Valentin Calderon de La Barca, diretor do Museu de Arte Sacra, onde Glauber filmou atrizes e figurantes vestidos de freiras dentro do museu. Quando soube, Calderon foi impedir a continuação da rodagem, e Glauber, enfurecido, o ameaçou.
Glauber Rocha como pessoa não era um homem arrogante, mas um temperamento agitado, que, por vezes, dava a impressão de um adolescente com a febre natural da juventude, apesar de já um indivíduo com quase quarenta anos, quando o conheci. Explosivo, algumas vezes, contudo, revela-se meio sentimental e, noutras, com aquele espírito de lutador indomável. Na conversa, ainda que atencioso, falava o tempo todo e, na sua ânsia oratória, não ouvia bem as perguntas nem deixava ninguém falar.
Um dos melhores livros sobre o autor de O dragão da maldade contra o santo guerreiro é Glauber, esse vulcão, do jornalista João Carlos Teixeira Gomes, amigo dele desde a juventude e mais conhecido como Joca, o Pena de Aço. Além da biografia, Joca faz também uma análise de seus principais filmes.
Em 1986, na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, coordenei um seminário que se chamou "5 anos sem Glauber", com a participação de Luiz Carlos Maciel, Joca, Dona Lúcia Rocha, Fernando da Rocha Peres, Racquel Gerber, Jommard Muniz de Britto, Fernando Rocha, Antonio Guerra, entre outros. Naquela época, achava-se que o Brasil estava há muito tempo - vejam só: apenas 5 anos - sem a presença daquele que gostava de jogar vatapá no ventilador. Glauber Rocha, sobre ser um artista como realizador cinematográfico, era, antes de tudo, um agitador, um animador cultural. Que faz muita falta ao Brasil de hoje.
Corria o ano de 1968. A Universidade Federal da Bahia, através de seu departamento cultural, comandado, nesta época, pelo espanhol Valentim Calderón de la Barca, reitorado de Roberto Santos, atendendo a um pedido de Walter da Silveira, implantou um Curso Livre de Cinema, que seria realizado durante o transcorrer de todo o ano citado, duas noites por semana. Guido Araújo, que tinha chegado há pouco da Tchecoslováquia, onde passou mais de dez anos, foi convidado por Walter da Silveira para repartir, com ele, as atividades curriculares. E ficou assim estabelecido: às terças, Walter ministrava História e Estética do Cinema, e às quintas, Guido, com Teoria e Prática do Cinema. O Curso Livre de Cinema foi um acontecimento histórico, porque nunca mais se repetiu, ainda que passados já 43 anos de sua implantação. É verdade que Guido Araújo continuou com o curso durante a primeira metade da década de 70, mas sem a dimensão do de 68.
A alusão ao Curso Livre de Cinema, que faço aqui, tem ligação com Glauber Rocha, nessa segunda parte do artigo que registro trigésimo ano do desaparecimento do vulcão glauberiano. É que, em maio de 1968, precisamente, foi a primeira vez que vi, pessoalmente, Glauber Rocha, porque nos encontros posteriores houve um conhecimento mais pessoal. Estudante ainda secundário, fazia o Clássico no Colégio Estadual da Bahia (o famoso Central, onde Glauber também estudou e realizou, com grande êxito e enorme repercussão, As Jogralescas, teatralização dramática de poesias célebres). Vale dizer que para o ingresso no Curso Livre de Cinema houve uma seleção não restrita aos universitários, mas aberta a quem quisesse participar, contando que passasse no teste.
Com meus 18 anos incompletos, fui aprovado e fiz o curso, obtendo, no seu final, um diploma com o timbre da Universidade Federal da Bahia e assinado pelo reitor.
Em maio, numa de suas aulas, Walter da Silveira disse que na seguinte teria uma grande surpresa. E a surpresa foi ter levado Glauber Rocha para uma conversa sobre o cinema em geral. Lembro-me, como se fosse hoje, desse momento especial. Por tímido, fiquei apenas ouvindo o grande cineasta. Glauber estava, nesta época, filmando na cidade baiana de Milagres, O dragão da maldade contra o santo guerreiro (chamado no exterior de Antonio das Mortes). Aproveitando sua estadia em Salvador, Walter o chamou. Vestia um casaco de couro marrom, e sua palestra levou quase duas horas. De repente, a cada afirmação, olhava para Dr. Walter (como ele o chamava) e perguntava: "Não é isso, Dr. Walter?" Os alunos fizeram um silêncio sepulcral enquanto Glauber falava.
Pela primeira vez, o cineasta fazia um filme colorido. E a fotografia era do mestre Affonso Beato, que depois viria a trabalhar com nomes importantes do cinema internacional. Queixou-se do governo do Estado (na época a Bahia era governada por Luiz Vianna Filho), que negou o pedido de uma simples Kombi para o transporte do material. Em 1968, o nome de Glauber Rocha já estava consolidado como um grande cineasta. Duas de suas obras-primas, Deus e o diabo na terra do sol (1964) e Terra em transe (1967) já tinham sido dadas à luz.
Glauber Rocha tinha grande respeito por Walter da Silveira. Considerava-o seu mestre. No dia seguinte à sua morte, ocorrida em novembro de 1970, aos 55 anos de idade, Glauber publicou no já extinto Jornal da Bahia um artigo sobre seu mentor cinematográfico com o título Cinema Liceu, domingo de manhã, onde conta vários episódios entre ele e Walter. Um deles, já contei aqui, acho, foi um tremendo esporro que recebeu do mestre, quando, numa exibição de O encouraçado Potemkin, conversava alto com o amigo do lado. Walter mandou que a sessão se interrompesse e deu o esporro em Glauber. A partir daí, conta este, nunca mais conversou em sala de exibição.
Glauber começou no jornalismo como repórter policial no Jornal da Bahia, matutino que, na segunda metade dos anos 50, provocou uma renovação na imprensa baiana com suas reportagens arrojadas, e também porque reunia os talentos da soterópolis. Jornal jovem com gente jovem e com vontade de mudar o mundo. Os outros jornais de Salvador se destacavam pela mesmice e pelos acentos conservadores, principalmente A Tarde, fundado por Simões Filho, e que tinha sua redação comandada por Jorge Calmon. Glauber, pouco tempo depois da reportagem policial, ficou como titular de uma coluna diária de cinema, que abandonou quando foi filmar, em 1959, Barravento, seu primeiro longa metragem, substituindo Luis Paulino dos Santos. As suas únicas experiências, antes desse filme, estão nos curtas O pátio e Cruz na praça (cujo negativo desapareceu). Há quem diga que Paulino foi retirado da direção por um golpe dado por Glauber com o apoio logístico do produtor do filme, Rex Schindler. Paulino era mais contemplativo, queria fazer um filme sobre as práticas do candomblé. Glauber queria uma obra revolucionária, que mostrasse todo misticismo como um grande obstáculo para a revolução e a revolta popular. O roteiro foi reescrito com José Telles Magalhães.
Barravento, realizado na Praia de Buraquinho, em Salvador, em 1959, somente foi lançado em 1962. Os fragmentos que Glauber tinha em mãos estavam tão confusos que ele os levou a Nelson Pereira dos Santos para ver se o autor de Vidas secas dava alguma solução de continuidade. Embora Glauber não tenha dito, há influências patentes em Barravento dos filmes de Alexandre Robatto, Filho, o pioneiro do cinema baiano, principalmente de seus curtas Xaréu (1954) e Entre o mar e o tendal (1953), ambos sobre a pesca de xaréu nas praias de Salvador, que o progresso foi, paulatinamente, afastando e a destruindo. Mas, para concluir, e voltando ao Curso Livre de Cinema, foi nele que se formou toda uma geração de cineastas ou pessoas ligadas ao cinema: André Luis de Oliveira (Meteorango Kid, o herói intergalático, A lenda de Ubirajara...), José Umberto (Voo interrompido, O anjo negro, Revoada...), José Walter Pinto Lima (Nós, por exemplo, Antonio Conselheiro, o taumaturgo do sertão), José Frazão (Akpalô, O mistério do Colégio Brasil...), Geraldo Machado, Jairo Faria Goes, Miguel Bartilotti, Ney Negrão, entre muitos outros que prefiro não citar para não cair no golpe da memória apressada. E pela primeira vez, o Salão Nobre da Reitoria da Universidade Federal da Bahia foi aberto para a exibição de filmes.
3 comentários:
Curiosamente, ou estranhamente, conheço mais pessoas que não apreciam a obra de Glauber Rocha do que o contrário. Parece um clichê às avessas: afirmar que não “curte Glauber” parece soar legal, incomum, foge dos estereótipos, demonstra identidade própria – o que não passa de uma grande bobagem. Sei que a obra dele não é de fácil digestão, mas se permitir é se deparar com uma cinematografia envolvente, provocativa, subversiva, brasileira. Não gostar do trabalho de Glauber é não gostar do neo-realismo, é não gostar da Nouvelle Vague. Não gostar de Glauber é não gostar de cinema.
Que honra tê-lo conhecido. Nós tivemos um cineasta único e com uma obra ímpar.
visite este aqui, um blog muito bom, e leia com atenção:
http://cariboxoxo.blogspot.com/
um abraço, caribó xoxó
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