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03 julho 2011

A permanência de "Ladri di biciclette"


Muito mais do que uma data comemorativa, os 63 anos de Ladrões de bicicleta (Ladri di biciclette, 1948), que se completam neste 2011, refletem a dimensão temporal de um marco do neorrealismo italiano que modificou profundamente a maneira de se fazer cinema.
Sobre ser um filme que ultrapassa o documento de uma época, para se revelar um monumento divisor-de-água do cinema moderno, pleno de um humanismo desaparecido da cinematografia contemporânea, esta obra de autoria de Vittorio DeSica (diretor) e Cesare Zavattini (roteirista) oferece à história do cinema não somente uma evolução como também, e principalmente, um modelo que iria influenciar sobremaneira toda a geração de realizadores posteriores.
Talvez o Cinema Novo não existisse sem o neorrealismo italiano, assim como o Free Cinema inglês e outras manifestações referentes a uma nova postura diante da realidade, uma inédita representação do real. O neorrealismo tem tanta força que influencia até os dias atuais o cinema no mundo (a maioria dos filmes que se faz no Irã que outra característica tem senão o forte acento neo-realista?).
Por outro lado, é verdade que o ponto de partida neo-realista (sem falar dos seus precursores) é Roma, cidade aberta (Roma, città aperta), de Roberto Rossellini, que data de 1945. Esta obra, de um mestre renovador (que instaurou, nos anos 50, ao lado de Michelangelo Antonioni, a desdramatização e a liberdade em relação ao roteiro de ferro), não possui, entretanto, com o passar dos anos, a mesma atualidade, a mesma envolvência, o mesmo espanto que ainda causa, nos dias de hoje, Ladri di biciclette. Roma, città aperta é um grande filme, um momento de extrema urgência para o realismo cinematográfico, mas um filme circunscrito aos fatos da época ou, numa palavra, datado.
O neo-realismo (termo criado pelo esteta Umberto Barbaro) caracteriza um cinema que procura focalizar a realidade de um momento histórico, qual sejam as condições de vida na Itália logo após o término da Segunda Guerra Mundial. Na década de 40, o cinema era Hollywood, o "star-system" (o sistema de astros e estrelas), o "system-studio" (o sistema de estúdios), com o predomínio do cinema de gênero e os filmes todos feitos nos interiores dos estúdios.
Nos postulados de Zavattini, havia a necessidade de os realizadores cinematográficos abordarem a realidade in loco sem enfeites, com as filmagens nas ruas, na cidade. Seu manifesto do descer às ruas é eloqüente nesse sentido, além de, também, procurar dar ênfase ao humanismo. A utilização de atores não-profissionais tinha a função de desglamurizar o espetáculo cinematográfico.
Do interior hollywoodiano, passava-se ao exterior das ruas de Roma, e, por extensão, das ruas de todas as cidades cujos cineastas apostaram na concepção neorrealista do cinema. A influência desta vai até ao cinema de Hitchcock (cineasta, por excelência, de estúdio), que, com O homem errado (The wrong man), filmado em Nova York, adere, ainda que por pouco tempo e por um único filme, à necessidade de representar o homem no seu habitat natural.
Claude Beylie, exegeta francês, disse que Ladri di biciclette é uma parábola sobre a solidariedade humana, chegando a compará-lo a uma obra-prima inconteste do cinema: Em busca do ouro (The gold rush, 1925), de Charles Chaplin. E disse mais sobre este filme sessentão: "Sob a máscara da constatação objetiva de um país arruinado pela guerra, Ladrões de bicicleta, como, mais tarde, Milagre em Milão (1951) e Umberto D (1952) - todos de DeSica, denuncia, na verdade, a impotência das instituições para resolverem dignamente os dramas do proletariado".
Ettore Scola, em 1974, com seu poético Nós que nos amávamos tanto (C'eravamo tanto amanti!) faz alusão a este filme de Vittorio DeSica através de um crítico de cinema que o tem como um de seus filmes preferidos e chega, inclusive, a participar de um programa de televisão para responder sobre o método que o diretor empregou para fazer o filho do operário, Enzo Staiola, chorar. A sua resposta, porém, não o faz vencedor, mas anos mais tarde, vem assistir ao próprio DeSica (em sua última aparição nas telas) contar como fez para extrair a emoção de seu pequeno personagem.
Em Roma, um operário desempregado (Lamberto Maggiorani) consegue um emprego para o qual é preciso possuir uma bicicleta. Para consegui-la, sua mulher penhora seus bens domésticos, mas logo no primeiro dia do trabalho a bicicleta lhe é roubada. O filme é a história da busca do veículo até que, ao constatar que este é praticamente irrecuperável, o operário decide, por sua vez, roubar uma bicicleta em dia de muita agitação às portas de um estádio de futebol. Mas é surpreendido e recriminado por seu filho, com o qual, lado a lado, efetuou a procura de seu instrumento de trabalho.
Há, evidente, e ao contrário do esquema narrativo in crescendo hollywwodiano, uma certa desdramatização do tema, com os atores e cenários naturais, inseridos num contexto social determinado. A busca é um pretexto para a exposição das mazelas deixadas pela guerra recém-findada. O que faz de Ladri di biciclette uma obra tão expressiva e de impressionante atualidade é que os personagens são seres vivos (atualmente na maioria dos filmes oriundos da industrial cultural de Hollywood os personagens são títeres e meros condutores da ação). E a cenografia está eleita por um critério tal que transcende o mero naturalismo para se converter em verdadeiro elemento expressivo.

3 comentários:

Jonga Olivieri disse...

A dupla De Sica/Zavattini foi muito importante na história do cinema.
De Sica e seu jeito popularesco sempre se identificou com as massas. Revi recentemente "Ontem, hoje, amanhã", e, principalmente o primneiro capítulo ambientado em Nápoles é irretocável, é genial!

ANTONIO NAHUD disse...

Setaro, o que acha da Dietrich?
Abração e apareça.

O Falcão Maltês

Andre de P.Eduardo disse...

Tem uns "pitacos" da Suso D´Amico, que faleceu ano passado, e teria introduzido a figura do garoto no filme.