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18 maio 2011

"A marca da maldade", de Orson Welles


Será possível que A marca da maldade (Touch of evil) já tenha feito meio século de existência? Sim, faz, neste ano em curso, cinqüenta e três anos, pois realizado em 1958. Trata-se de obra imprescindível para quem quiser compreender e entender o cinema contemporâneo (e há cópias em DVD nas melhores locadoras).
Orson Welles (numa interpretação inexcedível, obeso, desfigurado, para dar a impressão da configuração da maldade) é Hank Quinlan, policial de uma cidade da fronteira entre o México e os Estados Unidos, que tem o costume de fabricaras provas com as quais acusa os supostos culpados perseguidos. Um colega mexicano, Vargas (Charlton Heston, que mostra não ser apenas ator de épicos hollywoodianos, mas um ator de amplos recursos), que acaba de se casar com uma jovem americana, Suzie (Janet Leigh), vem a descobrir os arranjos de Quinlan e ameaça desmascará-lo. Com a ajuda de Grandi (Akim Tamiroff), um traficante local que serve à polícia com informações, Quinlan faz seqüestrar e drogar Suzie, matando logo em seguida seu cúmplice no quarto do hotel onde ela se encontra trancafiada. Uma sucessão de acontecimentos proporciona a um fiel subordinado de Quinlan, Menzies (Joseph Callea) a constatação de seu caráter e acaba ajudando Vargas no total desmascaramento de Quinlan.
Touch of evil (o toque do mal, se traduzido ipsis litteris) marca o retorno de Orson Welles a Hollywood após uma ausência de dez anos. Os constantes estouros nos orçamentos, o seu comportamento muito além dos parâmetros convencionais, e as ameaças de interferência dos estúdios em seus trabalhos, fizeram-no se afastar da meca do cinema. Na década que fica fora (1948/1958) realiza, porém, na Europa, alguns filmes, a exemplo de Othello (personalíssima versão do texto célebre de William Shakespeare, que leva dois anos para ser realizada: 49/51), eGrilhões do passado (Mr. Arkadin ou Confidential report, 1955).
A marca da maldade é montado, na sua versão final, à revelia de seu autor. Há alguns anos, encontradas as anotações de Welles sobre como proceder à montagem do filme, Touch of evil é remontado tal qual a concepção do realizador de Cidadão Kane (as duas versões são exibidas, há cinco anos, no Telecine, quando este ainda é Classic e não Cult, com um documentário especial sobre as diferenças entre as duas cópias).
Apesar de sua base literária como ponto de partida do roteiro, uma sub-literatura de Whit Masterson (aliás, Hitchcock sempre diz que nunca gosta de fazer adaptações de grandes livros, a preferir a sub-literatura encontradiça em bancas de jornais, as chamadas pulp-fictions, mas a sua extração é sempre de um procedimento cinematográfico exemplar e reveladora de uma escrita que estabelece uma mise-en-scène de puro cinema, de pura estesia), A marca da maldade é uma de suas obras mais interessantes e reveladoras. Alguns historiadores, inclusive, estão a considerá-la como mais importante ainda do queCitizen Kane (o que se nos afigura um absurdo, ainda que Touch of evil seja um filme excepcional, e grandioso, e impactante, e genial).
A figura de Quinlan representa à perfeição a postura wellesiana ante a sociedade em que vive. Não que o autor se identifique com o personagem. É que, através de sua monstruosa personalidade, submete, com ela, a crítica ao mundo que o rodeia e no qual certos valores deixam de ter vigência. Em torno da figura de Quinlan, evolui uma série de personagens que, na verdade, não são mais que elementos de uma antítese mediante a qual Welles pretende chegar a uma visão dialética. E quem faz o resumo desta visão é a cigana interpretada por Marlene Dietrich no final do filme numa espécie de epitáfio cínico e emocionado.
O fabuloso plano-sequência inicial, longo e complicado, fica definitivamente nos anais da história do cinema mundial. E dá a tônica estilística de A marca da maldade, uma das mais barrocas de seu autor (a influência do expressionismo alemão, com o contraste das sombras e das luzes, é impressionante). Welles utiliza os inquietantes elementos de uma trama enviezada e a particular estranheza dos cenários para compor uma obra em que tudo está deformado por uma ótica com freqüência aberrante.
Com a oportunidade de comparar as duas versões de A marca da maldade (a montada à revelia e a montada segundo as anotações do diretor), vê-se que o plano-seqüência do início, na versão oficial, é desfigurado com a colocação dos letreiros de apresentação, a ofuscar a visão das pessoas, do movimento, e dos objetos dentro do enquadramento. Welles, como de hábito, na sua concepção original, elabora o plano-seqüência absolutamente desprovido de qualquer material de procedência que não a da imagem.
A aparência exterior de simples drama policial, quando do seu lançamento (depois viria a ser reavaliado e considerado até melhor do que Kane), faz com que muitos críticos venham a considerar Touch of evil como uma obra menor dentro da filmografia de Orson Welles. Nada mais equivocado, pois A marca da maldade é um filme que expõe com grande força o seu pensamento e o seu estilo.
A seqüência de Janet Leigh no motel parece ter inspirado Alfred Hitchcock a convidar a atriz para o elenco de Psicose (Psycho). Não resta dúvida de que tudo indica que a atmosfera reinante no motel wellesiano de A marca da maldade tem tudo a ver com o motel hitchcockiano, com Norman Bates à la carte, de Psycho e, inclusive, a distância entre os dois filmes é curta: dois anos. O velho Hitch há, também, de sofrer a angústia da influência de Harold Bloom.
O cineasta brasileiro Rogério Sganzerla, fã incondicional de Orson Welles, tem um enquadramento em sua obra-prima, O bandido da luz vermelha, no qual o ângulo oblíquo faz ver a sair do carro o detetive interpretado por Luiz Linhares, um enquadramento visivelmente inspirado em A marca da maldade, quando o inspetor Quinlan aparece pela primeira vez. Sganzerla, aliás, realiza dois longas tributários ao grande cineasta, entre eles Nem tudo é verdade, com Arrigo Barnabé no papel do autor de Cidadão Kane, uma mistura de material de arquivo com reconstituição ficcional.
Muitos críticos e historiadores, a exemplo de Peter Bognadovich, acreditam que A marca da maldade possui uma chegada de Welles a este momento de sua vida com o mesmo cansaço que Quinlan experimenta em relação a Kane, cansaço que emerge dos anos transcorridos, da reflexão, da angústia e da desesperança.

5 comentários:

Armundo disse...

Para quem não gostava de ter como base grandes livros, Welles encarou umas pedreiras que vou te contar: Othelo, Dom Quixote, O Processo, Macbeth. Bom, O Estrangeiro (em Portugal) não é o de Camus. ***** Aquele plano-sequência de abertura é um deleite para os olhos. Robert Altman sabia disso e desenvolveu na abertura de O Jogador.

ANTONIO NAHUD disse...

Um dos melhores filmes de todos os tempos. Só peca pelo casal canastrão: Heston e Leigh.

O Falcão Maltês

Adalberto Meireles disse...

Alguns críticos querem mesmo indicar A Marca da Maldade como mais importante do que Cidadão Kane. Acho puro revisionismo, claro, mas não tira o valor deste filme, um dos grandes de toda a história do cinema. Quinlan é, sem dúvida, um personagem antológico. Creio que, inserido neste conceito dialético que você menciona, André, Welles reservou um tratamento especial a este personagem. Algum carinho, sei lá, a partir da ideia formulada em Kane, de que o ser humano é insondável em sua natureza, com a inserção de uma música remissiva a tocar insistente numa pianola e a introdução da cigana interpretada por Marlene Dietrich, que ergue uma ponte em direção ao passado do personagem. A abertura do filme está entre as mais belas de toda a história do cinema: um plano sequência brilhante, explosivo, sinalizador da natureza da obra que se começa a ver.

Jonga Olivieri disse...

Gosto demais de "A marca da maldade", mas não o comparo jamais a "Cidadão Kane".

Anrafel disse...

Aliás, grandes livros não costumam render grandes filmes. Os Shakespeare, de Sir Laurence Olivier ou de Kenneth Branagh, são destinados a levar ao frequentador de cinema a maior obra teatral da história - uma, digamos, popularização. Não sei o que um cineasta faria de "As Cidades Invisíveis", de Calvino, não quero saber o que foi feito das "Memórias Póstumas de Brás Cubas". "Lord Jim" já foi filmado? "Cem Anos de Solidão é filmável"? Por outro lado, por exemplo, um best-seller comum do tipo de "O Chefão" virou um dos cinco maiores filmes da história do cinema (alguns acham o maior de todos); "Blade Runner" é muito melhor do que a história que lhe deu origem (apesar de toda a babação de ovo dos críticos em relação a Phillip K. Dick). E por aí vai. By the way, "No Caminho de Swan", de Schlondorff, não é bem tempo perdido, mas ...