Tirei do excelente blog de Antonio Nahud Junior, O Falcão Maltês (http://ofalcaomaltes.blogspot.com), o texto que vai abaixo escrito por Vinicius De Moraes quando do lançamento de Pacto sinistro (Strangers on a train, 1950), do mestre Alfred Hithcock. Nos anos 90, foi lançada uma antologia das críticas cinematográficas de Vinicius sob o título O cinema de meus olhos. Vinicius, talvez pouco saibam, exerceu a crítica de cinema durante alguns anos na década de 1940. Foi um dos privilegiados interlocutores de Orson Welles na sua estadia conturbada no Rio de Janeiro. O poetinha, porém, achava, naquela época, que o cinema sonoro era inferior ao cinema mudo e chegou, inclusive, a fazer uma campanha inócua para que os filmes voltassem à estética da arte muda. Eis o texto:
"Umas poucas atrapalhações com papéis de viagem deixaram-me preso por mais de dois dias, o que me dá esta boa oportunidade de comentar um excelente filme em cartaz, que ninguém deve perder: PACTO SINISTRO (Strangers on a Train) , direção de Alfred Hitchcock. Posso dizer sem medo de errar que, com sua nova realização, Hitchcock não só volta às boas fontes de sua inspiração cinematográfica, abandonando experiências do gênero “Under Capricorn” e umas poucas outras, como positivamente se ultrapassa, entrando no limitado e rarefeito espaço dos grandes diretores de cinema de todos os tempos. O filme é uma pura maravilha de direção e conhecimento. Pena é que só me seja possível vê-lo uma vez, de partida que estou para Punta del Este. Porque trata-se de uma película que daria uma série de crônicas nas quais pudessem ser analisados para o fã vários setores de produção. Já que não vou poder me estender muito, limitar-me-ei a estudar o estilo do filme, do ponto de vista do diretor. Pois mestre Hitchcock positivamente se acabou de dirigir bem - bem como nos tempos de “39 Degraus”, “O Homem que Sabia Demais”, “Sabotagem” e mesmo - em menor escala – “Correspondente Estrangeiro”. Bem, isto é melhor ainda.
Em PACTO SINISTRO, Hitchcock põe a língua de fora para o Carol Reed de “O Terceiro Homem”. A comparação entre os dois filmes é, sob todos os pontos de vista, desvantajosa para “O Terceiro Homem”, descontada a soberba interpretação de Orson Welles neste último. O celulóide de Reed é muito construído demais, muito virtuosístico demais. O de Hitchcock fica um passo além do virtuosismo - que possui - mas que não ressalta da construção. Consegue ele, de certo modo, o que Mallarmé consegue em poesia - ficando o Carol Reed de “O Terceiro Homem”, com relação a ele, mais ou menos na posição subsidiária de um Valéry, por exemplo. A beleza do processo artístico de Hitchcock resulta disso que, aparentemente, as tramas que ele engendra pouco mais querem que resolver problemas contrapontuais de ação. De posse de um fio geral de ação cria ele o que se poderia chamar de "labirinto simultâneo", paralelismo descontínuo - uma espécie de gongorismo de um barroco simples apesar de aparente complicação que revela. O crime de motivação estranha é em geral o elemento do qual parte para criar esse complexo sistema de movimentos entrecruzados dentro dos quais os seres só não se tocam por milagres de circunstância. De um simples entrechoque de pés de dois homens que se sentam um em frente ao outro num trem, e que dá a um deles a idéia de um crime, que muito tem do mundo de Kafka, resulta esse movimento fugado ao qual, como notas de música, os seres envolvidos ocasionalmente se incorporam, e do qual partem e para o qual revertem sob a fatalidade do inesperado que os impulsiona. Mas isso não significaria muito, e cairia no virtuosismo carolreediano, se Hitchcock não se aproveitasse do processo para dar grandes mergulhos na personalidade humana, para, em duas ou três imagens, pô-la a nu, fazê-la defrontar-se com uma situação determinada, da qual não é causa senão circunstancial. Isso o torna o maior mestre do moderno "suspense" em qualquer arte narrativa.
Só Kafka conseguiu ser tão sutil, e tão dramático, com tanta complexa simplicidade. E possuidor, como é, de uma grande ciência cinematográfica - que se revela na limpeza, instantaneidade de comunicação, bom gosto absoluto, qualidade dos diálogos, da fotografia, do corte, da edição geral do filme - nada falta ao cineasta angloamericano para, que dele se diga que é ímpar em seu estilo e em sua arte. Dirigindo com mão de pluma - a mão de ferro da inteligência - os seus atores, Hitchcock obtém de seus atores desempenhos perfeitos. Estão todos igualmente bons dentro da maior ou menor dificuldade de seus papéis. Para mim os melhores são, sem dúvida, Ruth Roman e Robert Walker, mas mesmo Farley Granger, para mim um ator de menos porte, dá um excelente trabalho. Hitchcock pôs sua filha Patricia numa boa ponta, como a irmã de Ruth Roman, e como em geral faz assinou o filme com a sua presença pessoal. Num dado momento, logo no princípio do filme, quando Farley Granger desce do trem, há um homem gordo que sobe, sobraçando um violoncelo ou um contrabaixo - não estou bem lembrado. Trata-se, meus caros, de Alfred Hitchcock em toda a sua glória."
Texto do poeta e compositor VINICIUS DE MORAES
6 comentários:
"Complexa simplicidade".Acho que em poucas ocasiões no século XX conseguimos ver isso.Lembro do cinema John Ford,William Wyler,Hitchock;do futebol de Pelé e do encontro de Vinicius com Tom.Foi um prazer ler esse texto.Obrigado Setaro.Obrigado Nahud.Obrigado sempre Vinicius.
Surpreendente, a visão cinematográfica do poeta.
Não sabia que Vinícius foi crítico de cinema. Aliás, pelo que você disse, ainda bem que ele desistiu, porque senão não teria sido nada a lutar pela volta do cinema mudo.
Em música a mudez é impossível!
"Poetinha", fiquei em dúvida: é ironia ou considera Vinícius um poeta menor? rs
Um abraço.
Poetinha era uma maneira carinhosa e afetiva que os amigos de Vinicius gostavam de chamá-lo. Nada a ver com poeta menor.
O termo "poetinha" surgiu para diferencia-lo de Drummond que era o "poeta maior"...
Nada que o denegrisse, mas até pelo fato de Vinícius ser um sujeito afável, dado à boemia, um excelente copo e "rabo de saia", era uma forma carinhosa de se referir a ele.
Cheguei a vê-lo vagando pelos bares do Rio na década de 1960, sempre com um copo de uísque na mão.
Grande figura!
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