Colhidos na memória, dez momentos antológicos do cinema. Há, porque a colheita foi feita sem uma investigação mais apurada, outros momentos que venha considerá-los maiores. Os dez aqui citados são, no entanto, delirantes como ato de criação e da beleza cinematográficas.
1) Quando Kim Novak sai do banheiro já transfigurada em Madeleine, a pedido de James Stewart, é como se uma auréola fosse imposta à imagem da mulher, imagem fascinante, que não parece real. Em seguida os dois se beijam e a câmara passa ao espectador a impressão de estar circulando ao redor dos personagens envolvidos no idílio amoroso. Enquanto ela, a câmara, circula, imagens outras aparecem e desaparecem ao fundo, imagens do lugar onde Madeleine tinha se atirado. Ao ver Kim saindo, feito Madeleine, Stewart, emocionado, chega a chorar. A música, brilhante, de Bernard Herrmann dá o tom adequado e a solenidade auditiva necessária. Um corpo que cai (Vertigo, 1957), de Alfred Hitchcock.
2) Os travellings se sucedem na mansão, a câmara passeia pelos seus longos e intermináveis corredores, como se à procura de um cinema que se faz como um processo de investigação do universo mental. Delphine Seyrig salta na cama imensa, como se fosse um pássaro numa gaiola dourada. Nas imagens, a incursão na mente. Matéria de memória. O ano passado em Marienbad (L'année dernière a Mariebad, 1961), de Alain Resnais. Com roteiro do pai do nouveau Roman, Alain Robbe Grillet.
3) A suspeita do espectador se faz através do ato criador do artista. Inventor de fórmulas, o artista criador procura sugerir ao invés de mostrar explicitamente. Diferentemente de obras em que o recurso fácil ao susto é um dos sustentáculos do choque, nos filmes realmente criativos é muito mais a sugestão que encanta e faz suspense. É o ato criador do cineasta a se utilizar dos recursos da linguagem fílmica, dos seus elementos constitutivos. Assim, Cary Grant, numa angulação expressionista, sobe a escada, uma grande escada meio circular, com um copo de leite na mão. O espectador suspeita que o leite está envenenado e ele vai matar a mulher. O realizador colocou uma lâmpada dentro do copo para fazê-lo mais sugestivo. Suspeita (Suspicion, 1941), de Alfred Hitchcock.
4) O início lembra um clássico antigo do cinema: A turba, de King Vidor. O enquadramento dá idéia do formigamento de um escritório burocrático estadunidense, com suas mesas e máquinas de escrever e muitos funcionários trabalhando. Um simples enquadramento capaz de sugerir um escaldante depósito de homens e máquinas. Se meu apartamento falasse (The apartment, 1960) de Billy Wilder.
5) No final do Cidadão Kane, morto Charles, o magnata da imprensa, suas coisas, no Palácio de Xanadu, são empilhadas para serem transferidas. Caixotes e mais caixotes, e o cineasta faz com que a câmara execute um travelling para mostrar ao espectador a imensidão da herança de Kane. Mas, ao executar o travelling, a impressão que se tem dos caixotes é a de vários arranha-céus de uma grande metrópole. O efeito é perfeito. E a câmara, sempre em travelling, termina por parar numa imensa lareira onde o fogo começa a consumir o trenó de Charles menino no qual está inscrita a tão procurada palavra-enigma de Rosebud.Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles.
6) No princípio, apresentando-se como mágico, com cartola e tudo, Welles diz que tudo que falar durante uma hora é verdade, mas a partir desta, o que contar a partir de uma hora de projeção de filme, é mentira. Assim, tem-se o relato sobre o falsificador Elmyr De Hory. E depois a história de uma musa que inspirou Picasso. A história sobre De Hory é verdadeira. A história da musa é pura mentira. Brilhante exercício de cinema, um ensaio sobre a faculdade do artista em deturpar a arte e a realidade. E, principalmente, sobre a arte da falsificação.Verdades e mentiras (F for fake, 1975), de Orson Welles.
7) Quando Manoel mata o fazendeiro latifundiário por causa da exploração, o tom retumbante toma conta do filme com um ritmo de cavalgada que lembra John Ford. Os capangas do fazendeiro investem contra a modesta morada de Manoel, matando sua mãe. O clima é alucinante, com ritmo rápido, envolvente. O cinema se faz pleno. Deus e o Diabo na terra do Sol, 1964, de Glauber Rocha.
8) Carl Theodor Dreyer, cineasta dinamarquês, faz um cinema que tem um extraordinário poder de convencimento. O poder de sua arte leva a um poder de verdade nas suas imagens em movimento. A sequência é de uma obra-prima de sua filmografia. O cenário, de um branco que resplandece, comporta o caixão de uma mulher que, morta quando dava à luz, é o centro das atenções. De repente, pela força do verbo de um irmão, que pede à Deus que a faça retornar à vida, ela acorda do sono profundo e ressuscita. Assim dita, não se pode ter uma idéia nem de longe da beleza deste momento, um dos maiores do cinema em todos os tempos. A palavra (Ordet, 1941), de Carl T. Dreyer.
9) James Cagney é um executivo da Coca-Cola na Berlim de 1961, empresário carreirista e sempre disposto a agradar o chefe nos Estados Unidos. Este lhe pede o favor de hospedar a sua filha (Pámela Tiffin) que está a fazer um tour pela Europa e pretende ficar um tempo na Alemanha. A mulher, porém, vem a se apaixonar por um berlinense oriental, comunista, o que contraria e deixa preocupado Cagney. É o ponto de virada dessa comédia genial. O final, no entanto, é o que interessa aqui. No aeroporto, com a resolução do conflito, Cagney convida a sua família para mostrar uma máquina que tira as cocas-colas em lata. O último plano o apresenta a tirar, um a um (daí o título original: one, two, three), os refrigerantes, mas, de repente, toma um susto quando verifica que veio um errado e de empresa concorrente: Crush. Cupido não tem bandeira(One, two, three, 1961), de Billy Wilder.
10) Ethan (John Wayne), soldado sulista derrotado na Guerra de Secessão, parte, com um parente meio índio (Jeffrey Hunter) para encontrar a sobrinha raptada pelos índios após ataque que destruiu a casa de seus pais. A perseguição demora mais de dez anos e quando, finalmente ela é encontrada, ele a traz de volta para seus familiares. Todos entram, felizes, em casa. A câmera, dentro desta, observa Ethan na porta que recua, sem entrar, e sai a andar numa reflexão acerca da solidão extrema do herói cumprida a sua missão.Rastros de ódio (The seachers, 1956), de John Ford.
4 comentários:
Brilhante seleção. Todos impecáveis escolhas.
Concordo! Escolhas muito boas!
Uma perfeita retrospectiva de momentos fantásticos do cinema, Na sua linguafem e importância.
Caro Setaro,
fazer lista de qualquer coisa muito difícil. Concordo totalmente com essa relação.
Gostaria, com sua licença de citar, como cinéfilo, quatro momentos inesquecíveis, todas cenas finais:
1.Profissão Repórter de Antonioni;
2.Morte em Veneza de Visconti;
3.Casablanca de Curtiz;
4.Quanto Mais Quente Melhor de Billy Wilder.
Espero que outros cinéfilos tb se manifestem, indicando seus momentos inesquecíveis.
Um abraço
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