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11 julho 2010

Narrativa e fábula no discurso cinematográfico


Se o verdadeiro acontecimento narrado pelo filme é o que se relaciona com o comportamento da própria linguagem fílmica - e não, como já se disse, o que se reporta ao comportamento dos protagonistas, torna-se imprescindível o discernimento, por parte daqueles que pretendem compreender e entender a arte do filme, entre o plano da fábula e o plano da narrativa.
O plano da fábula refere-se à coisa da narração - quer dizer, à história - e o plano da narrativa refere-se ao como - quer dizer, ao conjunto das modalidades de língua e de estilo que caracterizam o texto narrativo. De um lado, tem-se a story e, do outro o discourse. Assim, é evidente que o plano onde se torna necessário procurar a sua eventual poeticidade não é o plano da fábula-story mas, sim, o plano da narrativa-discourse, porque em qualquer filme nascido com intenções artísticas o conteúdo serve sempre de pretexto à forma, entendendo-se por forma, esclareça-se, não a que em tempos idos foi definida como expressão da beleza, porém o modo como a obra se encontra organicamente estruturada do ponto de vista semântico.
O que significa dizer: tanto no cinema como no romance, é o discurso que escolhe a fábula que lhe parece mais funcional. O fundamental é compreender que o lugar geométrico onde se individualiza a poética de um autor é, por conseguinte, representado pela esfera da linguagem por ele utilizada, sempre na condição de o ser em sentido polívoco e não banal. A polivalência semântica se constitui na conditio sine qua non da artisticidade relativamente a qualquer sistema expressivo. A distinção entre fábula e narrativa pode parecer artificial, no entanto, quando se está diante de obras em que os dois planos caminham paralelos e em perfeita harmonia. Ocorre sempre nos filmes que seguem os cânones do naturalismo, nos quais a conotação tende para o grau zero e a coisa impõe uma espécie de ditadura sobre o como ou, melhor, a história, a fábula, exerce, uma ascendência sobre a narrativa.
Isso pode ser constatado nos filmes nos quais a ação da linguagem está completamente a serviço dos personagens, sendo estes últimos apresentados como pré-existentes à obra e dotados de uma autonomia extrapoética. Nestes casos, tem-se evidente a mistificação pelo uso passivo e mentiroso da linguagem, considerando-se que a função precípua das linguagens artísticas é a de recriar o mundo e não copiá-lo nas suas aparências. Por outro lado, a distinção entre fábula e narrativa se encontra plenamente legitimada nos filmes em que os dois planos se dissociam para refutar-se - ou, pelo menos, controlar-se - alternadamente. Pode acontecer, de fato, que, no decorrer do filme, a mensagem expressa pela fábula seja contrariada pela mensagem expressa pela narrativa. Neste caso, a narrativa provoca sutilmente a erosão da fábula a ponto, inclusive, de produzir um significado real oposto ou divergente do que se extrairia de uma leitura fílmica limitada exclusivamente aos valores da história - ou da fábula.Em A laranja mecânica (A clockwork orange, 1971), de Stanley Kubrick, filme que permaneceu nove anos proibido de exibição no Brasil - justamente por causa da acidez de sua fábula, a ironia da narrativa encarrega-se de neutralizar a violência da fábula. À guisa de ilustração: Alex e seus amigos, rebeldes sem causa, adeptos da ultraviolência, invadem a casa de um famoso escritor, espancando este e sua esposa com requinte de perversidade. Mas enquanto Kubrick mostra a violência do ataque a trilha sonora apresenta a voz de Gene Kelly cantando na chuva. Em outro filme, Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, o personagem vivido por Paulo Autran, um político arrivista e demagogo, é visto sob a ótica de várias tomadas (ou planos) enquanto uma voz em off, radiofônica e séria contrasta com o tom de deboche do personagem que ri às gargalhadas. Já em Mouchette (1967), de Robert Bresson, a verdadeira crueldade não reside tanto na matéria da história como no rigor formal que caracteriza o plano do discurso.
Donde se pode concluir: o verdadeiro significado de um filme situa-se, portanto, numa área marginal relativamente ao seu centro aparente. Há que se ter a consciência da distinção narrativa-fábula porque essencial para compreender a poética de um filme. Na filmografia do cineasta Alfred Hitchcock, segundo análise de Eric Rohmer e Claude Chabrol, o conteúdo é a forma, o que, a rigor, não se aplica apenas a esse autor de filmes mas a todas as obras de autênticos autores da história do cinema, obras cujo distintivo consiste numa carga de sentido que só se esgota mediante uma leitura em profundidade. É o discurso, nesse sentido, que, nas obras plenas de artisticidade, por assim dizer, escolhe a fábula que lhe pareça mais funcional.

4 comentários:

Jonga Olivieri disse...

Como já diversas vezes neste blogue, o tema é mais uma vez abordado... Com brilhantismo e de forma didática (questão da narrativa discourse).
Fica mais uma vez claro que a narrativa do ponto de vista da linguagem e gramática do cinema são fundamentais na forma de se observar a própria história.
E como num livro, a narrativa é o que nos prende. Nem que não o saibamos, mas é!

Filipe Dunham disse...

Texto esclarecedor, Professor. Tem que ser sempre lido, a fim de se adquirir um constante aprendizado sobre esta arte. A produção de sentidos e de efeitos em um filme está na forma com a qual o autor decidiu narrar a história, previamente contada no roteiro, através dos recursos peculiares da linguagem do cinema.
Ao ver o Céu que nos protege, de Bertolucci, por exemplo, a significação se encontra na exploração dos planos gerais, focando aquela vastidão sem fim, tomadas longas, closes nos rostos aflitos dos atores, enfim. O realizador fez essas opções discursivas com o intuito de fazer emergir a angústia existencial do casal, isto, parte da história, da temática, do plano da fábula. Não bastava expressar o drama narrado no filme unicamente através dos diálogos e de explicações detalhadas, quase que nos dando o filme pronto para entendê-lo; Bertolucci se valeu de recursos específicos da narrativa do cinema para que os espectadores consigam sentir, perceber, a intenção da obra, nunca submetendo nem colocando a gramática do cinema como serviçal da trama adaptada do livro de Paul Bowles. Não é obrigação do cinema ser fiel às minúcias da história contada nos livros que serviram de base para a adaptação, mas captar sua essência, traduzindo e significando isso com sua gramática peculiar. Cinema bom e válido é aquele que se faz cinema através da utilização dos recursos expressivos que esta própria arte oferece ao realizador, criando, assim, o discurso cinematográfico.

Filipe Dunham

André Setaro disse...

Texto preciso e lúcido que revela sábia compreensão da linguagem do cinema, da emergência de sua poética, caro Filipe. Não esqueçamos que o cinema é uma estrutura audiovisual e que 'tout est dans la mise-en-scène', como disse certo crítico francês.

André Setaro disse...

Jonga, sei que você também é um 'expertise' da arte do filme.