Seguidores

30 dezembro 2010

Meus filmes favoritos em 2010


Vincere de Marco Bellocchio. Clique para ampliar.

Publicado originariamente na revista eletrônica Terra Magazine em 28 de dezembro de 2010.
Com quase 40 anos como colunista cinematográfico, lembro-me como era difícil, chegada a hora de fazer a lista dos indefectíveis 10 melhores filmes do ano, como era árdua realizar a triagem. Havia, para se ter uma idéia, mais de 30 filmes que mereciam entrar na relação, mas, a lista, não se sabe por que, sempre restrita a uma dezena, dava dor de cabeça ao colunista. A situação, nos dias que correm, é totalmente diferente. Há de se suar para se achar 10 filmes convincentes e capazes de figurar numa lista dos melhores filmes do ano. Neste ano, por exemplo, encontrei somente 8 filmes que merecem, realmente, entrar numa relação desse tipo, e mesmo assim...
O que conduz a este resultado paradoxal: os dez melhores filmes de 2010 são oito. Há outros filmes que gostei, mas que não merecem a lista ou a lista não os merece, a exemplo de Um homem sério, dos Irmãos Coen, O segredo de seus olhos, de Juan José Campanella, A ilha do medo, de Martin Scorcese, O homem que engarrafava nuvens, de Lírio Ferreira. Um filme que, tenho quase certeza, estaria no topo seria, se o tivesse visto, Tetro, de Francis Ford Coppola. Também Film socialismo, de Jean-Luc Godard, somente o vi depois de ter já elaborado a lista. 
1.) VINCERE (Vincere, 2009), de Marco Bellocchio, com Vittoria Mezzogiorno, Filippo Timi, Fausto Russo Alezi, Michela Cescon. Filme operístico, realizado por um dos mais talentosos cineastas italianos da atualidade (De punhos cerrados, O diabo no corpo, Bom dia, noite), Vincere acondiciona as três constantes temáticas do autor: o sexo, a loucura e a história italiana, na história da primeira mulher, Ida Dalser, do ditador Benito Mussolini que, ao alcançar o poder, rejeita-a e, para fugir à sua perseguição, interna-a num sanatório. Obra de pathos, ópera e cinema delirante.
2.) O ESCRITOR FANTASMA (The ghost write, 2009), de Roman Polanski, com Ewan McGregor, Pierce Brosnan, Kim Cattrall. Ainda que sem a genialidade, a surpresa, a inovação, o frescor, do pretérito, Polanski é um realizador de extraordinário domínio formal de seu veículo comunicante. Sua habilidade está aqui presente nesta obra derradeira que mereceu, no Festival de Berlim, o troféu de melhor diretor. Um homem (Ewan McGregor) é contratado para reescrever e terminar um livro de memórias de um ex-primeiro-ministro britânico (interpretado pelo ex-007 Pierce Brosnan), porque o ghost writer anterior cometera suicídio. A tarefa, porém, se mostrará cheia de acidentes e reviravoltas. Cinema e ao mesmo tempo prazer do cinema.
3.) A FITA BRANCA (Das weisse band, 2009), de Michael Haneke, com Sussane Lothar, Gabriela Maria, Ulrich Tukur, Joseph Bierbchler. Palma de Ouro no Festival de Cannes, filme estranho e insólito (que dá a impressão de uma obra de Dreyer pela plástica das imagens e pela criação do clima, mas sem a espiritualidade deste, muito pelo contrário), Das weisse band reflete sobre as origens do mal numa sociedade rígida, preconceituosa e extremamente rigorosa nos seus mandamentos educacionais. A ação se passa em 1913, numa vila protestante na Alemanha. Crianças e adolescentes de um coral, educadas com rigor, são vítimas de estranhos acidentes que tomam a forma de um ritual punitivo.
4.) BAARIA (Baaria, 2009), de Giuseppe Tornatore, com Francesco Scianna, Margareth Madè, Ângela Molina. Tornatore, diretor de Nuevo Cinema ParadisoO homem das estrelas, entre outros, é um dos poucos cineastas italianos contemporâneos que fazem jus à tradição do belo cinema de seu país. Baaria é um painel admirável sobre quatro décadas da história italiana, através do acompanhamento de seu personagem desde os anos 30, quando criança problemática, passando pela Segunda Guerra Mundial, até o seu romance proibido e seu ingresso no Partido Comunista Italiano. Saga épica, a vida e a morte, o amor e o ódio. Extraordinária! Partitura do maestro Ennio Morricone.
5.) O BRILHO DE UMA PAIXÃO (Bright star, 2009), de Jane Campion, com Abbie Cornish, Thomas Sangster, Paul Schneider. Neozelandesa que se notabilizou porO piano, ainda que não muito considerada pela crítica arrogante em seus filmes posteriores, mostra, aqui, em O brilho de uma paixão, uma extrema sensibilidade e capacidade narrativa poética para contar o relacionamento do poeta inglês John Keats, um amor poético etéreo e platônico, com a jovem Fanny. O que encanta no filme é o equilíbrio narrativo, e, nos filmes de Campion a arte é mais do que uma forma de expressão, é a forma como personagens transpõem barreiras físicas ou emocionais.
6.) GUERRA AO TERROR (The hurt locker, 2009), de Kathryn Bigelow. Neste filme inesperado, que venceu o Oscar, realizado por uma mulher que foi casada com James Cameron (Avatar), a paisagem da guerra é uma paisagem insípida, desoladora, ainda que com os riscos iminentes, e que faz lembrar algumas obras do grande Samuel Fuller para quem o único heroísmo que existe num conflito bélico é a sobrevivência. Soldados que integram o batalhão anti-bombas no Iraque comem o pão que o diabo amassou. Cada dia concluído de trabalho é um dia a mais na vida deles. Bigelow expõe o vazio existencial da guerra e mostra o aspecto viciante ao qual estão expostos os soldados de um ponto de vista até, poder-se-ia dizer, psicanalítico.
7.) SEMPRE BELA (Belle toujours, 2006), de Manoel de Oliveira, com Michel Piccoli, Bulle Ogier, Lawrence Foster. Como se poderia fazer uma homenagem ou uma revisão de um clássico como A bela da tarde (Belle de jour), de Luis Buñuel? O resultado seria previsível: uma catástrofe. Mas o centenário diretor português Manoel de Oliveira assim não considerou e fez um filme de certa forma surpreendente. Quase quarenta anos depois, as duas personagens de Belle de jour voltam a se encontrar (Piccoli conserva o seu papel original). Mas ela tenta por todos os meios evitá-lo. Oliveira é um cineasta que não pode ser comparado com seus pares, mas separado.
8.) TROPA DE ELITE 2, de José Padilha, com Wagner Moura, André Ramiro, Maria Ribeiro. Nascimento (Wagner Moura), agora coronel, foi afastado do BOPE por conta de uma mal sucedida operação. Desta forma, ele vai parar na inteligência da Secretaria de Segurança Pública do Estado. Contudo, ele descobre que o sistema que tanto combate é mais podre do que imagina. A corrupção da polícia é mostrada como uma ferramenta de um jogo de poder muito mais complexo. Padilha mostra que tem poder como metteur-en-scène, e, abstraindo-se juízos de valor ideológicos, o filme é eletrizante. Já superou, na bilheteria, Dona Flor e seus dois maridos, como o filme brasileiro mais visto em todos os tempos.

28 dezembro 2010

"A cidade dos desiludidos", de Vincente Minnelli

Em Uma viagem pessoal pelo cinema americano, de Martin Scorsese (com excelente tradução de José Geraldo Couto), o realizador de Taxi driver traça um panorama da evolução da cinematografia estadunidense através de seu gosto pessoal. O livro, editado pela Cosanaify, é uma aula de cinema e pode ser adquirido nas melhores livrarias do Brasil. Nesta obra, e esta a razão de tê-lo citado, Scorsese destaca A cidade dos desiludidos (Two weeks in another town, 1963), de Vincente Minnelli, com Kirk Douglas, Cyd Charisse, Edward G. Robinson, Claire Trevor, George Hamilton, Rossana Schiaffino etc. Minnelli, assim como fizera dez anos antes no extraordinário Assim estava escrito (The bad and the beautiful, 1953), com o mesmo Kirk Douglas, realiza uma visão ácida e crítica da indústria de cinema em Hollywood. E em Two weeks in another town sua crítica vai mais além, porque mostra uma Hollywood já em franca decadência. Tout est dans la mise-en-scène. O vídeo que mostro abaixo, do You Tube, foi tirado de uma versão do trailer em VHS.



26 dezembro 2010

Olhando para o bico de meu sapato

Quadro de Edward Hooper
Com a decadência dos suplementos culturais no jornalismo brasileiro, a crítica de arte sofreu severo revés, e, aí, incluindo as artes plásticas, cinema, teatro, literatura, e et caterva. Já se foi o tempo no qual os jornais dedicavam cadernos imensos, verdadeiros calhamaços, mas calhamaços agradáveis, dentro dos quais se encontravam, em letras miúdas, ensaios e artigos brilhantes que o leitor, feita a leitura, e sem o contemporâneo afogadilho da pressa, ficava com pena de dar ao lixo as gazetas do dia anterior. A imperiosa necessidade, porém, de não se puder acumular tudo, era resolvida com a tesoura, que recortava as matérias mais interessantes, que, arquivadas em pastas, de vez em quando se davam às consultas.

O jornalismo cultural foi definhando com o passar do tempo, mas, ainda nos anos 80, sem o vigor das outras décadas, ainda se podia ver, aqui e ali, reflexões críticas. Com o avanço tecnológico e a instauração do império do audiovisual, e para ficar, apenas, nos limites daquilo que um dia se chamou de crítica cinematográfica, esta se metamorfoseou em resenhas e comentários, deixando de se constituir em ensaios ou, mesmo, críticas na expressão do vocábulo. Há muito tempo, hoje, para se ver imagens – mas ver sem contemplar, e, pouco, muito pouco, para ler. As humanidades estão mortas, escreveu há alguns anos, na Folha, Nelson Ascher. Tudo, nesta contemporaneidade tão deplorável, está dirigido para o pragmatismo, para o imediato, para o consumismo desenfreado e doentio.

A crítica de cinema praticamente desapareceu da imprensa escrita, e, em seu lugar, estão as resenhas, que orientam em função do consumo e sempre acopladas ao mercado, à programação do circuito comercial. Os estudos mais sérios sobre o cinema se encontram nas universidades, mas perderam, com o jargão acadêmico, o prazer da leitura que, antes, proporcionavam críticos como Walter da Silveira, Paulo Emílio Salles Gomes, Francisco Luiz de Almeida Salles, José Lino Grunewald, Antonio Moniz Vianna, entre muitos outros. O cinéfilo fica então na condição de um sem-crítica, pois, geralmente, não tem acesso às elucubrações teóricas fabricadas nos desvãos da academia e, abandonado pela crítica, amarga as resenhas insossas. Há o espaço virtual, onde já se pode contar com boas críticas, mas me reservo, aqui, aos jornais e revistas.

Acontece que os críticos de cinema mais antigos eram homens cultos, preparados, que sabiam escrever. Novamente se volta à questão de que as humanidades estão mortas, pois nas escolas os professores generalistas, de ampla cultura, causers, deram lugar aos pragmáticos e aos especialistas. Uma aula de Direito, há algumas décadas atrás, era uma aula de filosofia, de história, acionada por um mestre que dominava a oratória. Nos dias atuais, que viceja no pântano contemporâneo, existem os ‘técnicos’ em Direito, especialistas, preocupados com este tão pestilento e ameaçador ‘mercado’, que virou o Deus da pós-modernidade inculta.

A sociedade de consumo determina a degenerescência do saber, promovendo a apatia genuflexória, o entusiasmo fogo-de-palha, os arruídos do vácuo. A ver tudo isso, a melhor opção talvez seja, como a de um personagem de Luis Buñuel, passar a maior parte do tempo a olhar o bico de seu sapato. Vai-se a um cinema como se vai a um fast food, e a sala exibidora, voltando, mais uma vez, ao assunto, virou mesmo um fast food. E as livrarias, ‘butiques’ mal assanhadas e mal ajambradas, de livros capengas que mistificam o saber na tentativa de uma frustrada e enganosa auto-ajuda. O politicamente correto ceifa o humor e restringe a liberdade de expressão, condicionando os seres a uma postura ‘certinha’ e desinteressante. E aqueles que pensam estar à vanguarda não passam de modernosos e vanguardeiros de ocasião, desconhecendo que a grande revolução estética nas artes se deu na década de 20 com uma reciclagem na de 60. A partir dos anos 80, com a ascensão dos ‘yuppies’, a vinda catastrófica do neoliberalismo, e a instalação de um ‘cientificismo’ desvirtuador, o homem ficou à míngua, ao léu e, mesmo, poder-se-ia dizer, ao deus-dará.



25 dezembro 2010

"Adorável pecadora", de George Cukor

Marilyn Monroe canta My heart belongs to Daddy, música e letra de Cole Porter, numa sequência de Adorável Pecadora (Let's make love, 1960), das umas melhores comédias de George Cukor.



Neste Natal. tirei da minha tosca deveteca esta jóia de comédia que é Adorável Pecadora (Let's make love), de George Cukor, que a comprei em disquinho há alguns anos motivado por sua lembrança quando a vi pela primeira vez, ainda garoto, aos 11 anos, em 1961, um ano depois de sua realização, no cinema Guarany, em Salvador. Marilyn Monroe, extremamente sexy, ainda que um pouco gorda para os padrões atuais (mas, quem gosta de osso?), está radiosa, e sua visão para um adolescente provocou uma espécie de tsunami erótico. O filme começa com aquelas fanfarras da Fox (que Alain Resnais as utiliza em Ervas daninhas/Les herbes folles). Sempre achei essas fanfarras emocionantes, principalmente depois que vieram acompanhadas do em CinemaScope (os filmes neste formato estão sendo destruídos pelos canais televisivos, mesmo aqueles que se dizem cults).

Yves Montand é um milionário que, indo investigar pessoalmente um show onde ele é satirizado em sua vida de playboy, acaba por se apaixonar pela cantora e atriz, que é interpretada por ninguém menos do que Marilyn Monroe. A paixão o leva a se candidatar para fazer o seu próprio papel, apesar dos avisos em contrário de seu conselheiro Wilfrid Hyde-White. Para ter sucesso no teste, já que está longe de ser um comediante, pede ajuda a Gene Kelly, Bing Crosby e Milton Berle, que aparecem no filme com suas próprias identidades.

Cukor leva tudo com luva de pelica, com a sua finesse peculiar, e o resultado é surpreendente. Montand, casado com Simone Signoret, não resistiu aos apelos de Marilyn e teve, durante as filmagens, um affair com ela. Mas Signoret, aborrecida a princípio, perdoou o marido, e ficaram casados até a morte dela. 

Embora não creditado, o dramaturgo Arthur Miller, que estava casado, na época, com Marilyn, deu palpites no roteiro. A partitura é de Lionel Newman. E no elenco tem ainda Tony Randall.

23 dezembro 2010

A miséria cultural baiana

Retirantes, de Portinari

Diz-se que a Bahia já teve o seu Século de Péricles, uma alusão ao período efervescente que se situou nos anos 50 e na primeira metade dos 60, quando Salvador congregava o que havia de mais criativo na expressão artística. Estimuladas pela ação da Universidade Federal da Bahia, comandada, e com mão de ferro, pelo Reitor Edgard Santos, as artes desabrocharam com o surgimento do Seminário de Música, da Escola de Teatro, do Museu de Arte Moderna, dos inesquecíveis concertos na Reitoria, da porta da Livraria Civilização Brasileira na rua Chile, dos papos ao por do sol frente à estátua do Poeta, no bar e restaurante Cacique, dos debates calorosos da Galeria Canizares (no Politeama), da "boite" Anjo Azul (na rua do Cabeça), entre tantos outros pontos que faziam da Bahia um recanto pleno de engenho e arte.
Na Escola de Teatro, por exemplo, que, inicialmente, foi dirigida por Martim Gonçalves, montava-se, lá, de Bertolt Brecht, passando por Ibsen, Eugene O'Neill, entre tantos, a Strindberg, com um rigor inusitado, e tal era a excelência de seus espetáculos que vinham pessoas do sul do País, e até do exterior, vê-los encenados "in loco". No curso de preparação de ator, o estudante levava alguns anos para poder participar de uma montagem teatral, iniciando a sua trajetória como um mordomo mudo ou de poucas falas. Somente ter o seu nome no programa da peça já era um prêmio, uma alegria, um consolo.
O recente livro, "Impressões Modernas - Teatro e Jornalismo na Bahia", de Jussilene Santana, analisa a configuração do teatro como temática na imprensa baiana em meados do século XX e, pela primeira vez, faz justiça a Martim Gonçalves, o responsável pela excelência das montagens teatrais, criador da Escola de Teatro (que hoje tem o seu nome), mas muito criticado na sua época e até mesmo denegrido pelos opositores. Após a leitura deste livro imprescindível, a conclusão é única e inequívoca: sem Martim Gonçalves não se teria um teatro baiano do nível a que chegou, ainda que, décadas depois, tenha perdido todo o seu vigor, transformando-se num grande proscênio destinado à proclamação de "besteiróis", honradas as exceções de praxe.
Cinquenta anos depois, meio século passado, a realidade cultural baiana é uma antípoda da efervescência verificada, uma época que foi chamada, inclusive, de avant garde pela sua disposição de inovar, pela marca de vanguarda da mentalidade de seus artistas e intelectuais. Atualmente, a Bahia regrediu muito culturalmente a um estado, poder-se-ia dizer, pré-histórico, e o homo sapiens do pretérito se transformou no "pithecantropus erectus" do presente. Aquele estudante do parágrafo anterior, por exemplo, não existe mais.
Na Bahia miserável da contemporaneidade, qualquer um pode pular em cima de um palco, qualquer um se sente apto a dirigir uma peça, mexer com cinema, fazer filmes. Com as sempre presentes exceções de praxe, o teatro que se pratica na Bahia é um teatro besteirol, que faria corar aqueles que participaram da antiga escola de Martim Gonçalves.
A Bahia não está apenas mergulhada em bolsões de pobreza, na violência diuturna e desenfreada, com seu povo excluído de tudo - e até mesmo dos cinemas, mas do ponto de vista cultural a miséria é a mesma. Miséria cultural, descalabro, ausência do ato criador, apatia, desinteresse. Eventos existem para a satisfação de pseudo-intelectuais que não possuem as bases referenciais necessárias para a compreensão do que estão a ver ou a ouvir. O momento presente, se comparado aos meados do século passado, assinala uma regressão cultural sem precedentes. Como disse Millor Fernandes, a cultura é regra, mas a arte, exceção, o que se aplica sobremaneira sobre o estado atual da cultura baiana. Cultura se tem em todo lugar, mas arte é difícil, e a arte baiana praticamente não existe.
Com o desaparecimento dos suplementos culturais e o advento de normas editoriais que privilegiam o texto curto, além da incultura reinante pela assunção do império audiovisual em detrimento da cultura literária (vamos ser sinceros: ninguém hoje lê mais nada), a crítica cultural veio a morrer por falência múltipla das possibilidades de exercício da inteligência numa imprensa cada vez mais burra e superficial.
Sérgio Augusto, crítico a respeitar, que militou nos principais jornais cariocas, em entrevista ao "Digestivo Cultural", site da internet (vale a pena lê-la na íntegra:http://www.digestivocultural.com/entrevistas/entrevista.asp?codigo=10), do alto de sua autoridade no assunto, afirmou que o jornalismo cultural está morto e enterrado, ressaltando que se fosse um jovem iniciante não entraria mais no jornalismo porque não vê, nele, perspectivas para a crítica de cultura (área de sua especialidade).
Dava gosto se ler o Quarto Caderno do Correio da Manhã com aqueles artigos copiosos, imensos, que abordando cultura e artes em geral, eram assinados por Paulo Francis, Otto Maria Carpeaux, Álvaro Lins, José Lino Grunewald, Antonio Moniz Viana, entre tantos outros. A rigor, todo bom jornal que se prezasse tinha seu suplemento cultural. Aqui mesmo em Salvador, vale lembrar o do Diário de Notícias e o do Jornal da Bahia (em folhas azuis), o Suplemento Cultural de A Tarde, inexplicavelmente, acabou.
A inexistência da crítica de arte não diz respeito apenas ao soteropolitano. É uma constatação geral no jornalismo brasileiro. Mas, e os cadernos culturais e asilustradas da vida? Caracterizam-se pela superficialidade e servem, apenas, como guia de consumo, com suas resenhas ralas. Atualmente, os cadernos dois, assim chamados, são até contraproducentes porque elogiam o que deveriam criticar, colocando na posição de artistas personalidades que deveriam, no máximo, estar no departamento de limpeza de estações rodoviárias.
A crítica de arte serve justamente para isso: para, construtivamente, sem insultos, mas com argumentos sólidos, desmontar aquilo que não presta. Que falta não faz uma crítica de teatro séria, que, semanalmente, venha a apreciar o que se está a apresentar na cidade como literatura dramática! Ou uma crítica de artes plásticas. A interferência de um crítico faria corar muitos pintores que estão expondo na Bahia e posando como artistas. Assim também uma crítica de cinema que fosse menos paternalista com os "coitados' dos cineastas baianos cujas imagens são a de franciscanos em busca da expressão cinematográfica, mas cujos resultados, em sua grande maioria, remetem o espectador aos braços de Morpheu, quando não à aporrinhação.
Se a miséria da cultura baiana é cristalina, a miséria da crítica cultural é, também, imensa. Que esmola pode ser dada para se acabar com ela?

20 dezembro 2010

Da narrativa cinematográfica

Filme de grande força e de inusitada importância que parece desaparecido da memória da crítica: Estranho Acidente (Accident, 1968), de Joseph Losey.


A construção de uma narrativa cinematografia obedece a diversos critérios assim como um projeto arquitetônico corresponde a determinadas opções. Há uma construção narrativa que se pode considerar simples e outra que se desenha como complexa. Dois tipos de estruturas, portanto, mas que se deve ter em conta e ressaltar que a simplicidade ou a complexidade são noções exclusivamente inerentes ao como do discurso e não à sua coisa. Isto quer dizer: pode haver histórias intrincadíssimas mas de estrutura simples, elementar, e, pelo contrário histórias lineares, com começo, meio e fim e progressão dramática tradicional mas que se tornam intrincadas por uma disposição particular dos segmentos narrativos.Dentre as narrativas de estruturas simples estão: a linear, a binária e a circular.

Narrativa linear. Percorrida por um único fio condutor que se desenvolve de maneira seqüencial do princípio ao fim sem complicações ou desvios do caminho traçado. A narrativa de estrutura linear é a de mais fácil leitura e é concebida de modo a respeitar todas as fases do desenvolvimento dramático tradicional. O esquema que se obedece é aproximadamente o seguinte: a) introdução ambiental; b) apresentação das personagens; c) nascimento do conflito; d) conseqüências do conflito; e) golpe de teatro resolutório. Este esquema da narrativa linear repete ao pé da letra o que era a estrutura base do romance psicológico do século XIX. Incluem-se nesse tipo de narrativa aquela nas quais o elemento poético e metafórico é reduzido ao mínimo e os motivos de interesse residem exclusivamente na fábula (story), excetuando-se os eventuais casos de erosão dentro do referido esquema - que se constituem uma exceção à regra.

Narrativa binária. Este tipo de narrativa é percorrido por dois fios condutores a reger a ação como só acontece nos casos de narrativas paralelas baseada na coexistência de duas ações que podem entrecruzar-se ou manter-se distintas. Garantia certa de tensão dramática, a binária é empregada em fitas de ação - thrillers, westerns, etc - porque valoriza o paralelismo e o simultaneismo, fornecendo, assim, amplas possibilidades de impacto. Exemplo clássico da narrativa binária está em David Wark Griffith (Intolerância, 1916, O lírio partido, 1918, Broken blossoms no original). A linguagem cinematográfica tomou impulso com a descoberta da ação paralela e da inserção de um plano de detalhe no plano de conjunto.

Narrativa circular. Este tipo de narrativa tem lugar quando o final reencontra o início de tal modo que o arco narrativo acaba por formar um círculo fechado. É menos frequente e mais ligada a intenções poéticas precisas com um propósito de oferecer uma significação da natureza insolúvel do conflito de partida e denota a desconfiança em qualquer tentativa para superar a contradição assumida como motor dramático do filme. A significação implícita a este gênero de escolha estrutural poderia ser: "as mesmas coisas repetem-se". Em A faca na água (Noz W Wodzie, Polônia, 62), o primeiro longa metragem de Roman Polansky, assim como também em O fantasma da liberdade (Le fantôme de la liberté, 74) de Luis Buñuel, e Estranho Acidente (Accident, 68), de Joseph Losey, para ficar em três exemplos, as coisas que se observam no início voltam a surgir no final, a despeito das tentativas registradas pela narrativa para se libertar delas e da sua influencia nefasta. A construção das obras citadas obedece e exprime a visão do mundo de seus autores do que, propriamente, à matéria da fábula, que pode se apresentar tranquila e jocosa e destituída de relevância maior.

Dentre as narrativas de estrutura complexa estão: a estrutura de inserção, a estrutura fragmentada e a estrutura polifônica.
Narrativa de inserção. Consiste numa justaposição de planos pertencentes a ordens espaciais ou temporais diferentes cujo objetivo é gerar uma espécie de representação simultânea de acontecimentos subtraídos a qualquer relação de causalidade. Os segmentos narrativos individuais interatuam entre si, produzindo, com isso, uma complicação ao nível dos significantes que potencializa o sentido global do discurso. A contínua intervenção do flash-back pode provocar um entrelaçamento temporal que esvazia a noção do tempo cronológico em favor do conceito de duração. Por outro lado, as frequentes deslocações espaciais conferem aos lugares uma unidade de caráter psicológico mas não de caráter geográfico. Na narrativa de inserção, a realidade é vista de modo mediatizado, isto é, a realidade é refletida pela consciência do protagonista ou pela do realizador omnisciente. Seguem esta narrativa de inserção filmes como 8 ½ (Otto e mezzo, 64), de Federico Fellini, A guerra acabou (La guerre est finie, 66), Providence, entre outros trabalhos de Alain Resnais, Morangos Silvestres (Smulstronstallet, 57) de Ingmar Bergman, etc. Nestes exemplos, o receptor/espectador é posto diante de um desenvolvimento narrativo que não é lógico mas puramente mental: o velho Professor Isaac contempla a própria infância (Bergman), o cineasta Guido (Marcello Mastroianni) no cemitério conversa com seus pais já falecidos (Fellini), a projeção do desejo de um escritor moribundo (John Gielgud) imaginando situações (Resnais). O desenvolvimento puramente mental determina, por sua vez, um jogo de associações visuais e emotivas que cria um universo fictício exclusivamente psicológico.

Narrativa fragmentada. Estrutura-se pela acumulação desorganizada de materiais de proveniência diversa, segundo um procedimento análogo ao que, em pintura, é conhecida pelo nome de colagem, A unidade, aqui, não é dado pela presença de um fio narrativo reconhecível, porém pelo ótica que preside à seleção e representação dos fragmentos da realidade. Se, neste caso, da narrativa fragmentária, a intenção oratória do cineasta prevalece sobre a fabulatória, mais acertado seria considerar o filme como um ensaio do que um filme como narrativa. A expectativa de fábulas, no entanto, encontra-se presente no homem desde seus primórdios e o cinema, portanto, desde seu nascedouro possui uma irresistível vocação narrativa. Poder-se-ia, então, ainda que esta irrefreável expectativa do receptor diante de um filme, falar de um cinema-ensaio ao lado de um cinema-narrativo. O exemplo de, novamente Alain Resnais, Meu tio da América (Mon oncle d'Amerique) vem a propósito, assim como Duas ou Três Coisas Que Eu Sei Dela (Deux ou trois choses que je sais d'elle, 66) de Jean-Luc Godard - um minitratado sobre a reificação que ameaça o homem na sociedade de consumo, La hora de los hornos (68), de Fernando Solanas - obra nascida como ato político que utiliza documentos, entrevistas, cenas documentais e trechos com o objetivo de proporcionar a tomada de consciência revolucionária por parte do espectador.

Narrativa polifônica. Estrutura-se pelo número de ações apresentadas que confere uma feição coral à narrativa, impedindo-a de afirmar-se de um ponto de vista que não seja o do realizador-narrador. Os acontecimentos que se entrelaçam são múltiplos, dando a impressão de um afresco, que se forma pelas situações captadas quase a vol d'oiseau. Utilizando-se desse tipo de narrativa complexa, o cineasta capta de maneira sensível, se capacidade houver, o clima social de uma determinada época, como fez Robert Altman em Nashville (1975). Neste filme, vinte e quatro histórias se entrecruzam para compor um mosaico revelador da realidade dos Estados Unidos durante a década de 70. Outro exemplo do mesmo Altman é Short cuts. (Short cuts, EUA, 91).As estruturas examinadas são todas elas do tipo fechado, segundo as coordenadas estabelecidas por René Caillois. 

Porque, assim fechadas, estas estruturas servem de suporte à narrativas concluídas do ponto de vista de seu desenvolvimento, não importando o seu significado poético. Existem, no entanto, casos de estruturas abertas, nas quais a conclusão do discurso é deixada em suspenso ou então prolongada para além do filme. O que caracteriza a obra cinematográfica como um trabalho em devir, um filme que busca ainda o seu desfecho ou, então, como um texto que se oferece à meditação do espectador. Em Apocalypse now (1978), de Francis Ford Coppola, o cineasta apresenta três finais todos igualmente legítimos e solidários com o contexto narrativo. Já em Dalla nube nulla ressitenza (81), de Jean-Marie Straub, formado por blocos de sequências fixas, a solução final é deixada ao subsequente trabalho de reflexão do espectador/receptor. Trata-se de uma obra que faz uma reflexão, por meio de representações dialogais, sobre a passagem da idade feliz do Mito para a idade infeliz da História.O caráter aberto da narração, todavia, em nada desfalca a contextualidade orgânica do discurso, contextualidade que se mantém íntegra apesar da suspensão da fábula. A solidariedade estrutural, ressalte-se, constitui a conditio sine qua non de qualquer discurso cinematográfico que pretenda considerar-se artístico

19 dezembro 2010

Restaurado "O Leão de Sete Cabeças"

Guardado durante 30 anos na Cineteca Nazionale di Roma, o filme Leão de Sete Cabeças, primeira produção de Glauber Rocha fora do Brasil, foi finalmente restaurado e será exibido em sessão especial segunda, dia 20 de dezembro, às 21 horas, no Espalo Unibanco Glauber Rocha.  A restauração faz parte da segunda fase do projeto Coleção Glauber Rocha, que, na primeira, já restaurou os filmes Barravento, Terra em Transe, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro e A Idade da Terra. O texto a seguir é o de um release que recebi para a divulgação da restauração


"A iniciativa é uma realização do Tempo Glauber e da filha do cineasta, Paloma Rocha, tem o aporte financeiro do Fundo de Cultura da Bahia, Governo da Bahia, e das Secretarias de Fazenda e Cultura do Estado da Bahia, e contou com o apoio da Associação Baiana de Cinema e Vídeo(ABCV), da Cinemateca Brasileira e da Cineteca Nazionale di Roma. O projeto também abarca as restaurações dos filmes Cabeças Cortadas, Claro, Câncer e História do Brasil.
A história da restauração de Leão...

O original do filme do filme foi repatriado da Itália parao Brasil em 2009, quando a parceria entre Tempo Glauber, Cinemateca Brasileira, ABCV e Cineteca Nazionale di Roma foi formalizada, com incentivo da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia. A restauração consistiu primeiramente no escaneamento no formato 4K e o restauro digital em 2K realizado pelos Estúdios Mega. 
O processo possibilitou a confecção de uma nova matriz, em alta definição, e um novo negativo em 35mm. A versão original do áudio em vários idiomas foi recuperada a partir de uma única cópia 35mm - que estava em avançado estado de deterioração - e de fitas Umatic. O restauro foi executado pela JLS Facilidades Sonoras.
O filme
O cenário de Leão de Sete Cabeças é o Congo Brazaville de 1969. Vivendo no exílio imposto pela ditadura militar brasileira, o cineasta baiano Glauber Rocha, principal nome do Cinema Novo, expõe neste filme o colonialismo europeu que domina a África a as tentativas do povo nativo em se libertar desse domínio. Assim Glauber continuou retratando as mazelas que tanto afligem os países pobres e fez disso marca da sua obra cinematográfica.
Quando Leão de Sete Cabeças estava sendo produzido, os críticos acreditavam que Glauber deveria filmar apenas paisagens em seu próprio país. Mas, quando o filme foi concluído, viram que o argumento se mostrou falho. O  longa demonstrou perfeita integração com a evolução estética glauberiana, embasada na linguagem visual e cênica de uma espécie de “pan-terceiromundismo”, e apresentou personagens arquétipos, todos com algum tipo de poder.
De um lado, os pilares do imperialismo - invasores europeus e norte-americanos, além da Igreja e seu eterno cortejo ao poder. A elite local era um fantoche denominado e coroado presidente. Do outro, os revolucionários locais, contraditórios em suas lutas e indecisos entre a centralização do movimento e a manutenção do sentimento tribal, mesmo em busca de um objetivo em comum: a liberdade perante o colonialismo estrangeiro.
Mais que denunciar as injustiças existentes no continente africano, Glauber apresentou dados para que a consolidassem como estados soberanos.  Para a professora de Cinema e ensaísta  da UFRJ, Ivana Bentes, “o que Glauber parece dizer é que nenhuma explicação histórica, sociológica, marxista ou capitalista, pode dar conta da complexidade e tragédia da experiência da pobreza”, constata.
Glauber imaginou o filme como uma epopéia africana, pensando-a como ponto de vista do homem do Terceiro Mundo, se opondo aos filmes comerciais que tratavam de safáris, ao modelo de concepção dos brancos em relação àquele continente. Para ele, trata-se de uma teoria sobre a possibilidade de um cinema político, feito na África justamente porque o cineasta acreditava ser o lugar que possuía os mesmos problemas do Brasil.
Ele complementa esse pensamento declarando sua aversão à leitura sociológica da miséria feita pela esquerda, visto no manifesto Estetyka do Sonho, escrito em duas versões(1966 e 1971), e que bebe nas fontes dos seus filmes realizados nesse período. Neste texto ele relata sua impotência e perplexidade perante as ditaduras militares, a fragilidade de intelectuais, artistas e militantes em combatê-las, além da acomodação popular que resulta nessa tragédia. 
Glauber acredita que para superá-la é preciso seguir pelo caminho dos sonhos do cinema, provocando distúrbios nos códigos (sociais, políticos, estéticos, de comportamento), algo que já vinha sendo explorado em sua obra. Para alguns autores, Leão de Sete Cabeças pode ser visto como o elo perdido entre Terra em Transe e A Idade da Terra, a chave do enigma que liga a primeira parte da carreira de Glauber (os anos 60) com a segunda (de 1970 a 1980).
Preservação da obra de Glauber Rocha
Um dos objetivos da restauração de Leão de Sete Cabeças é dar continuidade à disseminação da obra de Glauber Rocha em alta qualidade, já que há grande aumento na demanda pelos filmes do cineasta, tanto nas escolas de cinema, quanto nos festivais nacionais e internacionais, e, por fim, para uso de trechos em documentários. 

Todos querem assistir à obra de Glauber, em bom ou mal estado, mas isso tem obrigado os detentores das cópias não restauradas a fornecer material de má qualidade, incompleto e deteriorado, o que causa constrangimento e não divulga a sua obra como deveria. A partir de 2003, com o advento da Coleção Glauber Rocha, esta realidade começou a mudar.
As cópias restauradas em formato de cinema digital, DVD e película de 35mm permitem que os filmes sejam distribuídos para mostras nacionais e internacionais, além da exibição em salas de cinema comerciais, universidades e outros espaços onde a obra de Glauber tem um alcance bastante significativo. O filme Terra em Transe, por exemplo, após a restauração, atingiu a marca de 10 mil espectadores nas salas de cinema, em apenas duas semanas em cartaz.
Extras do DVD
Os DVD’s contêm documentários especialmente realizados sobre cada filme, dirigidos por Paloma Rocha e Joel Pizzini. Neles estão reunidas entrevistas com elenco e equipe, cenas de arquivo, entrevistas inéditas com Glauber Rocha, o trailer original, artigos e reportagens, análise crítica feita por especialistas, versões de roteiros, roteiros, cartazes, trilha sonora, desenhos e story-board, tudo o que compreende o processo de criação e de produção intelectual do artista.
O patrimônio histórico e cinematográfico de Glauber reunido e vivo
O próprio Glauber, em 1980, escreveu uma carta preocupado com a recuperação dos negativos originais destes filmes. O documento foi editado e utilizado na apresentação do projeto, que ainda relata a necessidade da atenção e dos cuidados urgentes com os negativos originais para que seu processo de deterioração, já avançado, não acabe por prejudicar de modo irreparável a história do cinema brasileiro, no caso da perda definitiva de algum filme.
Glauber revolucionou a linguagem do cinema contemporâneo. Sua expressão artística influenciou movimentos políticos e culturais dos anos 60 como "Maio de 68" na França e o "Tropicalismo" no Brasil, entre outros, deixando um precioso legado de idéias e criações, impressas em filmes, vídeos, livros e uma extensa produção que ainda hoje permanece inédita – poemas, desenhos, peças de teatro, romances, roteiros de filmes não realizados.
E é todo esse conteúdo inestimável que precisa continuar vivo, e com a restauração, poderá ser conhecido pelas gerações futuras. Como disse o Secretário de Cultura da Bahia Márcio Meirelles: “Glauber continua vivo, um pensamento vivo, em ebulição. Um pensamento inesgotável, perturbador, ainda pouco compreendido no Brasil e no mundo.”
Ficha técnica
O Leão de Sete Cabeças

Direção: Glauber Rocha

Elenco: Rada Rassimov, Jean-Pierre Léaud, Giulio Brogi, Hugo Carvana, Gabrielle Tinti, René Koldhoffer, Baiack, Miguel Samba, André Segolo, Aldo Bixio, povo e dançarinos do Congo

Dedicatória: a Paulo Emilio Sales Gomes

Companhia produtora: Polifilm

Produtores: Gianni Barcelloni e Claude Antoine
Diretor de produção: Giancarlo Santi
Gerente de produção: Marco Ferreri
Assistente de direção: André Gouveia
Argumentistas e roteiristas: Gianni Amico e Glauber Rocha
Diretor de fotografia: Guido Cosulich
Som direto: José Antônio Ventura
Montadores: Eduardo Escorel e Glauber Rocha
Letreiros: Francesco Altan
Música: Folclore africano, Baden Powell e uma versão do Hino Nacional francês cantada por Clementina de Jesus
Locações: Brazzaville (Congo)
Equipe de restauro

Direção do projeto: Paloma Rocha

Curadoria e pesquisa: Joel Pizzini

Direção de produção: Márcia Cardim

Direção de fotografia: Luis Abramo
Assistente de direção: Sara Rocha
Restauração de imagem Mega e
Restauração de Imagem Mega e Som: Cinemateca Brasileira, Estúdios Mega e JLS Facilidades Sonoras
Apoio Financeiro: Fundo de Cultura da Bahia, Governo da Bahia e Secretaria Estadual de Fazenda e Cultura
Realização: Paloma Cinematográfica, Cardim Projetos e Soluções Integradas e Associação Baiana de Cinema e Vídeo - ABCV
Apoio: Associação dos Amigos do Tempo Glauber e Comunika Press 

18 dezembro 2010

Uma entrevista com o autor deste blog

Teeh Schwarz, uma apaixonada por cinema e que escreve no blog Cinema & Afins, resolveu entrevistar este blogueiro. Embora nada mais tenha a dizer, a entrevista, graças a ela, excelente entrevistadora, saiu bastante informativa e esclarecedora. Schwarz, que mora em São Paulo, desponta como um talento de sua geração no que se refere à apreciação de tudo que seja relacionado ao cinema. O cinema, verdade seja dita, fez a cabeça, como se diz, de várias gerações de cinéfilos praticantes. O imaginário do homem foi invadido pelas imagens em movimento. Mas vamos logo à entrevista que pode ser lida aqui neste link: http://cinemaeafins.com/2010/12/17/entrevista-com-andre-setaro/

16 dezembro 2010

Em homenagem a Blake Edwards

Em homenagem a Blake Edwards, que morreu, um momento de seu deslumbrante Victor/Victoria (1982), uma das melhores comédias da segunda metade do século passado. 

A pantera cor-de-rosa está de luto com a morte de Blake Edwards

Morreu há pouco Blake Edwards, talvez o último grande comediógrafo do cinema americano. Era casado, há décadas, com Julie Andrews.

Dos clássicos da ficção-científica


Extensão cinematográfica do gênero literário do mesmo nome, o cinema de ficção-científica conta com antecedentes tão ilustres como Viagem à lua (Le Voyage dans la lune, de Georges Méliès, 1909), Aelita (1924), do russo Yakov Protozanov, Metrópolis (1926) e Uma mulher na lua (Die frau im mond, 1929), ambos de Fritz Lang, entre outros.
Metrópolis é, até então, a mais expressiva ficção-científica do cinema. Realizada ainda na estética da arte muda, tem sua ação localizada no século 21 numa gigantesca metrópole autoritariamente governada por um industrial milionário, que vive com o filho num paradisíaco jardim suspenso. Seus operários são relegados aos subterrâneos e exortados à resignação por uma bela integrante do Exército da Salvação. De repente, um inventor louco fabrica uma mulher artificial que é igual a ela, mas que, ao contrário desta, incita os trabalhadores a uma revolta cujas principais vítimas são os filhos dos operários.
No final, um operário reconcilia-se com o grande patrão, enquanto seu filho se casa com a moça resignada do Exército da Salvação. Apesar da beleza de suas imagens, e do imenso sentido de cinema de Lang, o filme tem uma conclusão bastante reacionária, reformista, pregando a reconciliação entre o capital e o trabalho, a demonstrar que uma revolução provocada pelos operários teria como principais vítimas eles próprios e seus descendentes. George Sadoul, historiador francês, classifica Metrópolis como um filme expressionista e medieval.
O auge do progresso científico nos últimos anos - a energia nuclear, os satélites artificiais, as viagens interplanetárias - oferece grande atualidade ao gênero, que começa a se popularizar cinematograficamente a partir do êxito de Destino à lua (Destination moon), em 1950, dirigido por Irving Pichel, e também, do mesmo ano, Da terra à lua (Rocketship MX), de Kurt Neumann, que fazem emergir uma série de filmes americanos interessantes O enigma de outro mundo (The thing, 1951), de Christian Nyby, O dia em que a Terra parou (The day the earth stood still, 1951), de Robert Wise, Guerra dos mundos (War of the worlds, 1953), de Byron Haskin, baseado em H. G. Wells, O mundo em perigo (Them!, 1954), de Gordon Douglas, Planeta proibido (Forbidden, 1956), de Fred McLeod Wilcox, Vampiros de alma (Invasion of the bodysnatchers, 1956), de Don Siegel, entre outros.
O dia em que a Terra parou pode ser considerado como um dos mais representativos filmes do gênero. Pela primeira vez, o extraterrestre não vem à Terra como invasor e é apresentado como uma figura simpática, pois desce de seu disco voador para evitar uma catástrofe atômica. Mas o filme que, utilizando-se do gênero, propõe-se a uma análise da sociedade americana é Vampiros de almas, que mostra como numa pacata cidade dos Estados Unidos os seus habitantes são, pouco a pouco, substituídos por cópias perfeitas de si próprios (saídas, estas cópias, de enormes vagens de ervilhas). Não estaria Don Siegel, aqui neste filme, numa premonição da clonagem contemporânea?
As cópias perfeitas e iguais dos habitantes são destituídas, no entanto, de sentimentos, de almas e de consciências. Alphaville, de Jean-Luc Godard, da primeira metade dos anos 60, tem influência marcante dessa ficção-científica de 1956. Há, na verdade, em Vampiros de almas, uma grande metáfora de inspiração ideológica: as vagens seriam comunistas infiltrados na sociedade americana (paranóia típica da época em que o filme é realizado, em pleno macarthismo).
Na Inglaterra, também aparecem, neste período, interessantes filmes de ficção-científica, a exemplo de Terror que mata (Quatermass experiment, 1955), de Val Guest, A aldeia dos amaldiçoados (Village of the dammed, 1960), de Wolf Rilla. O mais importante, porém, dos filmes ingleses do gênero, é O mundo os condenou (The damned), do grande cineasta Joseph Losey, realizador de uma obra-prima,O criado (The servant, 1963), entre outros filmes significativos, mas que, atualmente, se encontra esquecido. The damned é sobre crianças contaminadas pela radioatividade que são enclausuradas pelas autoridades inglesas num reduto sigiloso.
A grande maioria, entretanto, dos filmes de ficção-científica, restrito que está, este panorama, aos clássicos, incluindo todos os japoneses, se limita a explorar velhas fórmulas do cinema de terror no esquema de mostrar a aparição de monstros criados pelas explosões nucleares. Diferentemente do que acontece na literatura, que possui excelentes escritores reconhecidos como mestres no gênero e que são capazes de o transcender.
Mas não se pode deixar de registrar algumas tentativas que tentam renovar os clichês do gênero, a exemplo do admirável Ikarie XB 1 (1963), do tcheco Jindrich Pollack, e Alphaville (1964), de Jean-Luc Godard, A décima vítima (La decima vittima, 1968), do italiano Elio Petri, Fahrenheit 451 (idem, 1966), de François Truffaut, Viagem fantástica (Fantastic Voyage, 1966), de Richard Fleischer. Nestes filmes, o cinema de ficção-científica deixa de ser o campo específico da série B para passar com todas as honras ao da A, revelando ambição na abordagem temática e que pretendem dar um testemunho moral e intelectual acerca da civilização do futuro.
Em Fahrenheit 451, por exemplo, filme baseado em novela de Ray Bradbury, num país indefinido, numa época indeterminada, uma decisão governamental proíbe a leitura e condena os livros sob a alegação de que eles perturbam a felicidade e provocam a inquietação. O corpo de bombeiros não mais apaga incêndios (as casas são à prova de fogo), mas é encarregado de queimar todas as obras literárias descobertas. No bosque, escondidos das autoridades, vivem os homens-livros. Cada qual memoriza uma obra-prima literária, a fim de preservá-la para o futuro.
Já em A décima vítima, de Elio Petri, a agressividade dos homens é saciada através de uma grande instituição internacional que promove uma grande caça ao homem, havendo, neste filme, uma nítida preocupação sobre o esmagamento do homem em meio a uma sociedade competitiva. A ação se passa no século XXI, este que já se está, mas A décima vítima é de 1965.
2001: Uma odisséia no espaço (2001: a space odyssey, 1968), de Stanley Kubrick, é um filme que se poderia considerar divisor de águas. A partir dessaspace opera, a ficção-científica no cinema não seria mais a mesma, quer do ponto de vista da temática, quer do ponto de vista estilístico. A época da ficção-científica clássica, cujo apogeu se dá nos anos 50, toma uma nova direção com a utilização do gênero para propósitos de paráfrase, política e indagação filosófica.
Kubrick, aliás, após a sua ópera espacial, retorna à ficção-científica de idéias emA laranja mecânica (A clockwork orange, 1971), tomando como base a narrativa literária de Anthony Burguess. O ficcionista, aqui, colocando-se já no futuro, empreende uma análise cáustica do seu passado que é o nosso presente. Mas a infantilização temática toma conta do cinema americano a partir da segunda metade dos anos 70 com os filmes que se seguiram à explosão mercadológica de Guerra nas estrelas.