Marcos Pierry, jornalista e professor de cinema, dá, aqui, a sua impressão crítica de Pau Brasil, o primeiro longa de Fernando Belens, recebido com entusiasmo quando de sua avant-première em julho durante o Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual. O filme também me surpreendeu, como atesta o comentário infra neste blog. Originariamente, o texto de Monsieur Pierry foi publicado na revista eletrônica Terra Magazine, o bem sucedido empreendimento virtual noticioso e opinativo do já consagrado jornalista Bob Fernandes. Pau Brasil acaba de participar do Festival de Cinema de Curitiba e, na nossa modéstia opinião, tem tudo para agradar e receber prêmios no exterior. Vamos logo, porém, e sem mais delongas, ao texto pierryano.
Acaba de nascer o cinema baiano do século 21, pelo menos em termos de longa-metragismo. O rebento que marca essa virada atende pelo nome de Pau Brasil e o seu criador é Fernando Belens. Tudo isso pode ser dito do filme em questão sem maiores constrangimentos, afinal, a última década viu a produção local mover-se de tudo que era jeito para (re)encontrar seu lugar ao sol no mercado brasileiro e mesmo entre o público(?) baiano. Portanto, Pau Brasil é um passo e tanto nessa busca e devemos ficar atentos a esse aspecto.
Por outro lado, transformar o primeiro longa de Fernando em asterisco de ouro de uma gincana infernal a que os realizadores da terra vem se submetendo desde 3 Histórias da Bahia não deixa de ser muito redutor e, em última instância, prejudicaria, inclusive, a própria/suposta causa em questão – a do nosso eterno complexo de inferioridade como pólo de produção cinematográfica desde que aquele boom do ciclo passou por aqui de 1959 a meados da década de 60. Esse é um marco que se tornou um entrave na medida em que, de modo consciente ou não, se evoca, de tempos em tempos, o panteão de Glauber, Roberto Pires e companhia como exemplo de força catalisadora e produtiva. Glauber que, enquanto um cineasta exclusivamente baiano, realizou aqui uma ínfima parte de sua filmografia. E que, quando retorna no momento da transição para a abertura política para realizar A Idade da Terra, depara-se com o deserto.
Fernando, em certos momentos da carreira que já soma 40 anos, até liderou grupos e teve voz ativa em processos importantes do cinema local, como nos clinchs políticos da Jornada de Cinema nos idos dos anos 70. Mas nunca se pretendeu um líder das massas. Seu cinema tem, sim, uma dimensão política inequívoca; e isso reaparece em Pau Brasil. Passados, porém, os anos de chumbo, e de todo o formigamento ideológico que se pretendia redentor, a aposta é que sua produção daquele tempo revela olho e mão autorais que fizeram as obras não passarem simplesmente. Viva o Cinema, Experiência 1B Transformada, Ora Bombas e outros trabalhos trazem a assinatura de uma época sem, com isso, terem envelhecido. Seriam carregadas de determinado ingrediente íntimo que garante a fagulha de originalidade desse realizador nascido em Poções, mesmo berço de Geraldo Sarno. Seus temas-tabu ganham credibilidade sem fazer força porque há um sentimento verdadeiro por trás.
Não é diferente com Pau Brasil, com o inegável avanço da impecabilidade técnica que acaba recobrando o tão discutido complexo de origem. Agora não se trata mais de provar que sabe fazer, de garantir o raccord, a fotometragem etc. Está tudo lá, e, no que diz respeito aos departamentos técnicos, muito como sintoma do amadurecimento profissional de uma geração.
O que cabe, a partir deste ponto, é o debate sobre a coerência de Fernando Bélens com o seu universo para estabelecer seu êxito na aventura do longa. Trata-se de uma história que o Fernando quer filmar há muito tempo. Em 1996, a imprensa local escrevia que estava por vir “mais uma obra insólita” de Belens. E uma visita aos arquivos dos jornais baianos vai mostrar que, mesmo antes dos anos 90, este diretor-psiquiatra já tinha Pau Brasil, o filme, em mente. Um roteiro a quatro mãos, fruto da parceria do cineasta com a escritora Dinorath do Valle, que, com Pau Brasil, o romance, ganhou o prêmio cubano Casa de Las Américas em 1982.
Pau Brasil é um lugarejo, um fim de mundo nesses rincões agrestes do interior brasileiro. Lá iremos encontrar dois homens, Joaquim (Oswaldo Mil) e Nives (Bertrand Duarte), e, intermediando os extremos que cada um representa, aparece uma mulher. Seu nome é Juracy (Fernanda Paquelet) e, longe de propor uma simetria, sua presença constitui muito mais a garantia do desajuste naquela comunidade diminuta e ocre. A grande promessa de Juracy, enquanto ente feminino, é um exercício de liberdade que acaba custando caro a todos que a rodeiam, menos a ela. E por que motivo? A madona gauche, de ancas, sorriso e coração largo, é o único ser realmente livre de Pau Brasil? Ela está entre os dois homens assim como a estrada de barro que, na tela, põe em margens opostas a casa do autoritário Joaquim e do marceneiro Nives, com quem a doce rebelde é casada.
Os três não formam propriamente um triângulo amoroso em nenhum momento. Mas podemos pensar na geometria quase barroca desse trio como uma imagem possível a partir da compreensão de cada vértice como uma individualidade distinta, com visões distintas sobre o amor e o mundo. Nives é calado, recluso, um homem que carrega um segredo. Mas, definitivamente, veremos ao longo dos oitenta e poucos minutos, não é o comportamento generoso de Juracy com caminhoneiros e quetais que o faz retrair-se. Joaquim, ao contrário, à base de berros e piadas de mau gosto, assume o papel do pregador dos bons costumes. E é ela, como um corante a ressaltar o abismo, que separa os dois. Mas, da mesma forma que o seu jeito de ser leva à desagregação coletiva e à revolução pessoal de cada um, será Juracy, ao final, a responsável pela sutura existencial e prática no destino do conjunto de personagens. Porque aquela é uma revolução sem armas, ou quase, pois Nives investe contra Joaquim quando este extrapola em seu machismo e preconceitos derivados.
Juracy é apenas uma adúltera? Nives é um bunda mole? As crianças e adolescentes dali estão cegos e desorientados, entregues à própria sorte? Em Pau Brasil, a opinião pública é moralista e empurra para debaixo do tapete a verdadeira podridão humana? As indagações ajudam a constatar que Pau Brasil é um filme em camadas. E, nesse sentido, a politização de suas metáforas pode ser tomada quase como uma opção do espectador, apesar de uma rápida menção a instrumentos de tortura física propor um link inequívoco com o período do regime de exceção da ditadura canarinho. O certo é que a obra cresce, e bastante, quando provoca o chamado mal-estar da platéia, efeito difícil de se obter sem cair na grotesquerie e que é uma das marcas de Fernando. Os momentos de leveza e humor são tão raros quanto precisos e apontam outra faceta do diretor, recobrando algo da pegada de filmes bem diferentes, como Héteros, Pixaim ou do lírico Anil.
Pau Brasil, o filme, é obra tecida por camada e assim deve ser visionada, curtida, avaliada ou mesmo contestada. O desempenho de seu elenco, para insistir na dramaturgia dos personagens, é um assombro. Atores novos e veteranos se superam na condução de tipos-limite que nos exasperam na poltrona – e nos fazem lembrar do Belens exímio preparador de elenco de Superoutro, o média-metragem dos anos 80 que alçou Edgard Navarro e Bertrand Duarte ao reconhecimento nacional. Medo ou regozijo? Gozo ou obediência? Alienação absoluta ou liberdade plena? O caldeirão dramático transfere a questão para o arbítrio do espectador, então será natural se os mais covardes evitarem ou rejeitarem o Pau Brasil.
O filme, porém, não tem necessariamente um final aberto. Muito pelo contrário, as coisas estão muito bem amarradas em sua narrativa. Fãs de carteirinha do diretor, especialmente os da fase superoitista, podem até grunhir um “às favas com a linearidade, Fernando”. Mas logo cederão a contundência, e a consistência, de Pau Brasil. Em que pese o momento favorável ao menu de certas bizarrices presente no cinema nacional de hoje (na linha de O Cheiro do Ralo, A Festa da Menina Morta, Feliz Natal e Baixio das Bestas), Pau Brasil não dever ser confundido com esse subgênero de melodrama que se tornou para a crítica o gênero da hora no Brasil. Mesmo que a estampa geral do longa remeta, à primeira vista, no saldo de mise-en-scène, ao protocolo de eficácia do modelo contemporâneo da produção brasileira. O cinema baiano apresenta sinais vitais e passa muito bem. Um filme desses não vem do nada.
Por outro lado, transformar o primeiro longa de Fernando em asterisco de ouro de uma gincana infernal a que os realizadores da terra vem se submetendo desde 3 Histórias da Bahia não deixa de ser muito redutor e, em última instância, prejudicaria, inclusive, a própria/suposta causa em questão – a do nosso eterno complexo de inferioridade como pólo de produção cinematográfica desde que aquele boom do ciclo passou por aqui de 1959 a meados da década de 60. Esse é um marco que se tornou um entrave na medida em que, de modo consciente ou não, se evoca, de tempos em tempos, o panteão de Glauber, Roberto Pires e companhia como exemplo de força catalisadora e produtiva. Glauber que, enquanto um cineasta exclusivamente baiano, realizou aqui uma ínfima parte de sua filmografia. E que, quando retorna no momento da transição para a abertura política para realizar A Idade da Terra, depara-se com o deserto.
Fernando, em certos momentos da carreira que já soma 40 anos, até liderou grupos e teve voz ativa em processos importantes do cinema local, como nos clinchs políticos da Jornada de Cinema nos idos dos anos 70. Mas nunca se pretendeu um líder das massas. Seu cinema tem, sim, uma dimensão política inequívoca; e isso reaparece em Pau Brasil. Passados, porém, os anos de chumbo, e de todo o formigamento ideológico que se pretendia redentor, a aposta é que sua produção daquele tempo revela olho e mão autorais que fizeram as obras não passarem simplesmente. Viva o Cinema, Experiência 1B Transformada, Ora Bombas e outros trabalhos trazem a assinatura de uma época sem, com isso, terem envelhecido. Seriam carregadas de determinado ingrediente íntimo que garante a fagulha de originalidade desse realizador nascido em Poções, mesmo berço de Geraldo Sarno. Seus temas-tabu ganham credibilidade sem fazer força porque há um sentimento verdadeiro por trás.
Não é diferente com Pau Brasil, com o inegável avanço da impecabilidade técnica que acaba recobrando o tão discutido complexo de origem. Agora não se trata mais de provar que sabe fazer, de garantir o raccord, a fotometragem etc. Está tudo lá, e, no que diz respeito aos departamentos técnicos, muito como sintoma do amadurecimento profissional de uma geração.
O que cabe, a partir deste ponto, é o debate sobre a coerência de Fernando Bélens com o seu universo para estabelecer seu êxito na aventura do longa. Trata-se de uma história que o Fernando quer filmar há muito tempo. Em 1996, a imprensa local escrevia que estava por vir “mais uma obra insólita” de Belens. E uma visita aos arquivos dos jornais baianos vai mostrar que, mesmo antes dos anos 90, este diretor-psiquiatra já tinha Pau Brasil, o filme, em mente. Um roteiro a quatro mãos, fruto da parceria do cineasta com a escritora Dinorath do Valle, que, com Pau Brasil, o romance, ganhou o prêmio cubano Casa de Las Américas em 1982.
Pau Brasil é um lugarejo, um fim de mundo nesses rincões agrestes do interior brasileiro. Lá iremos encontrar dois homens, Joaquim (Oswaldo Mil) e Nives (Bertrand Duarte), e, intermediando os extremos que cada um representa, aparece uma mulher. Seu nome é Juracy (Fernanda Paquelet) e, longe de propor uma simetria, sua presença constitui muito mais a garantia do desajuste naquela comunidade diminuta e ocre. A grande promessa de Juracy, enquanto ente feminino, é um exercício de liberdade que acaba custando caro a todos que a rodeiam, menos a ela. E por que motivo? A madona gauche, de ancas, sorriso e coração largo, é o único ser realmente livre de Pau Brasil? Ela está entre os dois homens assim como a estrada de barro que, na tela, põe em margens opostas a casa do autoritário Joaquim e do marceneiro Nives, com quem a doce rebelde é casada.
Os três não formam propriamente um triângulo amoroso em nenhum momento. Mas podemos pensar na geometria quase barroca desse trio como uma imagem possível a partir da compreensão de cada vértice como uma individualidade distinta, com visões distintas sobre o amor e o mundo. Nives é calado, recluso, um homem que carrega um segredo. Mas, definitivamente, veremos ao longo dos oitenta e poucos minutos, não é o comportamento generoso de Juracy com caminhoneiros e quetais que o faz retrair-se. Joaquim, ao contrário, à base de berros e piadas de mau gosto, assume o papel do pregador dos bons costumes. E é ela, como um corante a ressaltar o abismo, que separa os dois. Mas, da mesma forma que o seu jeito de ser leva à desagregação coletiva e à revolução pessoal de cada um, será Juracy, ao final, a responsável pela sutura existencial e prática no destino do conjunto de personagens. Porque aquela é uma revolução sem armas, ou quase, pois Nives investe contra Joaquim quando este extrapola em seu machismo e preconceitos derivados.
Juracy é apenas uma adúltera? Nives é um bunda mole? As crianças e adolescentes dali estão cegos e desorientados, entregues à própria sorte? Em Pau Brasil, a opinião pública é moralista e empurra para debaixo do tapete a verdadeira podridão humana? As indagações ajudam a constatar que Pau Brasil é um filme em camadas. E, nesse sentido, a politização de suas metáforas pode ser tomada quase como uma opção do espectador, apesar de uma rápida menção a instrumentos de tortura física propor um link inequívoco com o período do regime de exceção da ditadura canarinho. O certo é que a obra cresce, e bastante, quando provoca o chamado mal-estar da platéia, efeito difícil de se obter sem cair na grotesquerie e que é uma das marcas de Fernando. Os momentos de leveza e humor são tão raros quanto precisos e apontam outra faceta do diretor, recobrando algo da pegada de filmes bem diferentes, como Héteros, Pixaim ou do lírico Anil.
Pau Brasil, o filme, é obra tecida por camada e assim deve ser visionada, curtida, avaliada ou mesmo contestada. O desempenho de seu elenco, para insistir na dramaturgia dos personagens, é um assombro. Atores novos e veteranos se superam na condução de tipos-limite que nos exasperam na poltrona – e nos fazem lembrar do Belens exímio preparador de elenco de Superoutro, o média-metragem dos anos 80 que alçou Edgard Navarro e Bertrand Duarte ao reconhecimento nacional. Medo ou regozijo? Gozo ou obediência? Alienação absoluta ou liberdade plena? O caldeirão dramático transfere a questão para o arbítrio do espectador, então será natural se os mais covardes evitarem ou rejeitarem o Pau Brasil.
O filme, porém, não tem necessariamente um final aberto. Muito pelo contrário, as coisas estão muito bem amarradas em sua narrativa. Fãs de carteirinha do diretor, especialmente os da fase superoitista, podem até grunhir um “às favas com a linearidade, Fernando”. Mas logo cederão a contundência, e a consistência, de Pau Brasil. Em que pese o momento favorável ao menu de certas bizarrices presente no cinema nacional de hoje (na linha de O Cheiro do Ralo, A Festa da Menina Morta, Feliz Natal e Baixio das Bestas), Pau Brasil não dever ser confundido com esse subgênero de melodrama que se tornou para a crítica o gênero da hora no Brasil. Mesmo que a estampa geral do longa remeta, à primeira vista, no saldo de mise-en-scène, ao protocolo de eficácia do modelo contemporâneo da produção brasileira. O cinema baiano apresenta sinais vitais e passa muito bem. Um filme desses não vem do nada.
A IMAGEM MOSTRA O CINEASTA FERNANDO BELENS.
Um comentário:
O cinema baiano ainda existe, ainda tem força.
Naturalmente o citado período que abrangeu parte das décas de 50 e 60do século XX são excepcionais. trancendem.
Depois, houve um certo marasmo, um período em que a cultura (não só baiana) estacionou.
O que se produziu no Brasil naquele entretempo? O que aconteceu com Hollywood então?
E de lá pra cá, quanta coisa mudou para pior?
Pensemos nisto seriamente.
O cinema baiano ressurge. E mais seriamente do que no âmbito nacional.
Você tem citado realizações recentes de filmes sérios em suas intenções de realizar um cinema/cinema;
Vamos aguardar...
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