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12 julho 2009

A montagem como fundamento da expressão cinematográfica

A Montagem Intelectual ou Ideológica: operação com um objetivo mais ou menos descritivo que consiste em aproximar planos a fim de comunicar um ponto de vista, um sentimento ou um conteúdo ideológico ao espectador. Eisenstein escreveu na justificativa de sua montagem de atrações: "uma vez reunidos, dois fragmentos de filme de qualquer tipo combinam-se inevitavelmente em um novo conceito, em uma nova qualidade, que nasce, justamente, de sua justaposição (...) A montagem é a arte de exprimir ou dar significado através da relação de dois planos justapostos, de tal forma que esta justaposição dê origem à idéia ou exprima algo que não exista em nenhum dos dois planos separadamente. O conjunto é superior à soma das partes".
Amparado nestes ditos de Eisenstein, há de se ver que, no cinema, como em quase todos os ramos das ciências, quando se reúne elementos (no sentido amplo) para obter um resultado, este é freqüentemente diferente daquele que se esperava: é o fenômeno dito de emergência. Aprende-se, por exemplo, em biologia, que pai e mãe misturam seu patrimônio hereditário para criar uma terceira personagem não pela soma desses dois patrimônios, mas, ao contrário, pela combinação deles em um novo patrimônio inédito. Em química, sabe-se ser possível misturar dois elementos em quaisquer proporções, mas não é possível combiná-los verdadeiramente em um corpo novo se não tem proporções perfeitamente definidas (Lavoisier). Da mesma forma, na montagem de um filme, os planos só podem ser reunidos numa relação harmoniosa.
A montagem ideológica consiste em dar da realidade uma visão reconstruída intelectualmente. É preciso não somente olhar, mas examinar, não somente ver, mas conceber, não somente tomar conhecimento, mas compreender. A montagem é, então, um novo método, descoberto e cultivado pela sétima arte, para precisar e evidenciar todas as ligações, exteriores ou interiores, que existem na realidade dos acontecimentos diversos.
A montagem pode, assim, criar ou evidenciar relações puramente intelectuais, conceituais, de valor simbólico: relações de tempo, de lugar, de causa, e de conseqüência. Pode fazer um paralelo entre operários fuzilados e animais degolados, como, por exemplo, em A Greve (1924), de Eisenstein. As ligações , sutis, podem não atingir o espectador. Eis, aqui, um exemplo da aproximação simbólica por paralelismo entre uma manifestação operária em São Petersburgo e uma delegação de trabalhadores que vai pedir ao seu patrão a assinatura de uma pauta de reivindicações (exemplo extraído do filme Montanhas de ouro, do soviético Serge Youtkévitch).
- os operários diante do patrão
- os manifestantes diante do oficial de polícia
- o patrão com a caneta na mão
- o oficial ergue a mão para dar ordem de atirar
- uma gota de tinta cai na folha de reivindicações
- o oficial abaixa a mão; salva de tiros; um manifestante tomba.
A experiência de Kulechov demonstra o papel criador da montagem: um primeiro plano de Ivan Mosjukine, voluntariamente inexpressivo, era relacionado a um prato de sopa fumegante, um revólver, um caixão de criança e uma cena erótica. Quando se projetava a seqüência diante de espectadores desprevenidos, o rosto de Mosjukine passava a exprimir a fome, o medo, a tristeza ou o desejo. Outras montagens célebres podem ser assimiladas ao efeito Kulechov: a montagem dos três leões de pedra - o primeiro adormecido, o segundo acordado, o terceiro erguido - que, justapostos, formam apenas um, rugindo e revoltado (em O Encouraçado Potemkin, 1925, de Eisenstein); ou ainda a da estátua do czar Alexandre III que, demolida, reconstitui-se, simbolizando assim a reviravolta da situação política (em Outubro).
O que Kulechov entendia por montagem se assemelha à concepção do pioneiro David Wark Griffith, argumentando que a base da arte do filme está na edição (ou montagem) e que um filme se constrói a partir de tiras individuais de celulóide. Pudovkin, outro teórico da escola soviética dos anos 20, pesquisou sobre o significado da combinação de duas tomadas diferentes dentro de um mesmo contexto narrativo. Por exemplo, em Tol'able David (1921), de Henry King, um vagabundo entra numa casa, vê um gato e, incontinente, atira nele uma pedra. Pudovkin lê esta cena da seguinte forma: vagabundo + gato = sádico. Para Eisenstein, Pudovkin não está lendo - ou compreendendo o significado - de maneira correta, porque, segundo o autor de A Greve a equação não é A + B, mas A x B, ou, melhor, não se trata de A + B = C, porém, a rigor, A x B = Y. Eisenstein considerava que as tomadas devem sempre conflitar, nunca, todavia, unir-se, justapor-se. Assim, para o criador da montagem de atrações, o realizador cinematográfico não deve combinar tomadas ou alterná-las, mas fazer com que as tomadas se choquem: A x B = Y, que é igual a raposa + homem de negócios = astúcia. Em Tol'able David, quando Henry King corta do vagabundo ao gato, tanto o primeiro como o segundo figuram proeminentemente na mesma cena. Em A Greve (Strike), quando Eisenstein justapõe o rosto de um homem e a imagem de uma raposa (que não é parte integrante da cena da mesma forma que o gato o é em Tol'able David, porque, para King, o gato é um personagem),esta é uma metáfora.
Em Estamos construindo (Zuyderzee, 1930), de Jori Ivens, várias tomadas mostram a destruição de cereais (trigo incendiado ou jogado no mar) durante o débacle de 1929 da Bolsa de Valores de Nova York, a depressão que marcou o século XX. Enquanto apresenta os planos de destruição de cereais, o realizador alterna -os com o plano singelo de uma criança faminta. Neste caso, o cineasta, fotografando uma realidade, recorta uma determinada significação. Os planos fotografados por Jori Ivens podem ser retirados da realidade circundante, mas é a montagem quem lhes dá um sentido, uma significação. Os cineastas soviéticos, como Serguei Eisenstein e Pudovkin, procuravam maximizar o efeito do choque que a imagem é capaz de produzir a serviço de uma causa.
Considerada a expressão máxima da arte do filme, a montagem, entretanto, vem a ser questionada na sua supremacia como elemento determinante da linguagem cinematográfica com a introdução - em fins dos anos 30 - das objetivas com foco curto que permitiu melhorar as filmagens contínuas - a câmera circulando dentro do plano - com uma potenciação de todos os elementos da cena e com um tal rendimento da profundidade de campo (vide Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, Os melhores anos de nossas vidas, 46, de William Wyler) que possibilitou tomadas contínuas a dispensar os excessivos fracionamentos da decupagem clássica. A tecnologia influi bastante na evolução da linguagem fílmica, dando, com o seu avanço, novas configurações que modificam o estatuto da narração - o próprio primeiro plano - o close up - tão exaltado por Bela Balazs como "um mergulho na alma humana" - com o advento das lentes mais aperfeiçoadas já se encontra, esteticamente, com sua expressão mais abrangente e menos restrita.

5 comentários:

Jonga Olivieri disse...

Grande aula!
Mas eu lembrei de uma fato que nos foi contado (se não me engano) naquele curso que fizemos na Ladeira da Barra que amontagem na verdade foi criada por uma acaso num filmagem em fins do século XIX, em que a camera emperrou ao filmar um bonde.
Qaundo foi consertada esperaram o bonde chegar no mesmo loca e continuaram a filmar.
Para surpresa do diretor el estava repleto de freiras.

CHICO VIVAS disse...

É quase irresistível não se pensar em como GLAUBER ROCHA estaria vendo nossa realidade, e repercutindo-a em forma de arte; como SERGEI EISENSTEIN olharia sua Rússia. Conflitos não nos faltam; as ideologias estão mortas - ou quase; e o cinema, mais "vivo" do que nunca, é acessório para o ócio, sequer, muitas vezes, criativo. Mas nós não desistimos.

Tucha disse...

Não sou uma estidiosa da arte cinematografica, apenas cinefila. Mas gosto de observar a dinâmica do uso da imagens e seu post foi realmente uma aula sobre montagem.

Stela Borges de Almeida disse...

Lendo esta postagem voltei a consultar meus rascunhos de aulas e eis que encontro:

La hermosa palabra "montaje" significa la acción de armar algo (...) Que el ensamblaje de las unidades de influjo en un todo único reciba esa doble significación, semiindustrial, semi de music-hall reunindo en sí esas dos palabras(...) Es interesante recordar que aquí aparece como elemento decisivo el espectador, y, partiendo de ello, se hizo el primer itento de organizar el influjo y reducir todas as formas de influjo sobre el espectador a un denominador común (...) Ello ayodó en el futuro también a la preconcepción de las peculiaridades del cine sonoro y se plamó definitivamente en la teoría del montaje vertical. in: Serguéi Einsenstein. Anotaciones de un diretor de cine. Editorial Progreso Moscu. 1946.

Isso só para dizer que valeria muito outro curso de cinema em que pudéssemos contar com gente que sabe e gosta desta arte, a saber, do quilate do Professor André Setaro.

Emmanuel Mirdad disse...

Caro amigo Setaro e leitores deste bomblog:

Se tiverem tempo, é uma boa opção ouvir o autêntico músico Roberto Mendes, o novo entrevistado do programa Podcast K7.

“Se Bethânia não fosse de Santo Amaro, eu não gravaria com ela. Não teria nenhum interesse. Mas ela é o estímulo maior da minha obra” - Roberto Mendes

Direto de Santo Amaro da Purificação, a conversa é franca, sem amarras e papas na língua.

Confira o Podcast K7 #09 - Roberto Mendes no blog El Mirdad - Farpas e Psicodelia, no endereço www.elmirdad.blogspot.com

A paixão por Santo Amaro, a chula, amigos, família, confronto Brasil Real x Oficial, a defesa do orgânico e da memória, a relação com a intérprete Maria Bethânia, as cacetadas na política, publicidade, crítica musical, mercado, classe média, entre outros assuntos, são os destaques da nona entrevista do programa Podcast K7.

Abaixo, algumas tiradas interessantes de Roberto Mendes:

“Eu não tenho nada além do que preciso para viver feliz aqui. Por isso que costumo dizer que eu não sou brasileiro, sou santamarense”.

“O câncer da cultura nacional é a agência de publicidade”.

“Não faço música pro mercado. Não tenho nenhum vínculo com ele”.

“A arte é um conteúdo cultural refém da forma”.

“Hoje a cultura política é a cultura da canalhice. Ser político no Brasil é ser canalha”.

“Eu sou a reprodução do meu equívoco”.

“A classe média no Brasil ainda arruma a casa para receber visita. Depois que a visita vai embora, o lixo continua”.

“É a minha cara dizer que alguém não canta nada”.

“Eu tenho pena de quem não me ouve porque perde o melhor de mim”.

Link direto para a entrevista: http://elmirdad.blogspot.com/2009/07/podcast-k7-09-roberto-mendes.html

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Músico da efervescente geração baiana dos anos 70, que continuou morando no lugar onde nasceu por opção, Roberto Mendes é uma figuraça rara, autêntico até o talo, franco em seus equívocos, violonista de uma técnica singular e compositor de extensa obra, gravada por diversos nomes de destaque da música brasileira, dentre os quais, Maria Bethânia. Possui hoje nove CDs lançados e um DVD, além de livros de pesquisa sobre os ritmos do recôncavo.