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03 maio 2009

Velocidade das tomadas está a destruir o espetáculo

A estética do vídeoclip, que, como metástase, invade a indústria cultural cinematográfica, está a destruir a linguagem fílmica. Os filmes são fragmentados, picotados, como se uma máquina de costura fosse a montadora das películas, a destruir, com isso, o clima, a ambientação, a durée – leia-se conceito de duração. Admite-se tal velocidade para o vídeoclip como tal, mas quando a sua estética se expande para a dramaturgia cinematográfica vê-se, neste caso, um perigo real e imediato para o cinema. Os grandes cineastas sempre tiveram em mente o conceito de duração que proporciona o clima, o envolvimento e, neste, a instalação do poder de convencimento capaz de tornar o espectador um cúmplice do espetáculo.

Acontece que a nova geração, a do audiovisual, perdeu, por causa da asfixia proporcionada pela indústria cultural, a capacidade de contemplar e, sem contemplar, não existe possibilidade de se adentrar na coisa para a conhecer. Tudo se passa muito rápido, as tomadas se sucedem em questão de segundos, e a maioria dos filmes contemporâneos redunda na nulidade. Exemplares, nesse sentido, Chamas de vingança, do virtuoso Tony Scott, ou A supremacia Bourne, com Matt Dillon (o terceiro Boune é diferente e bastante palatável), ou, mais recentemente, As duas faces de um crime, de Jon Avnet, com Robert De Niro e Al Pacino péssimos todos pela preferência que adotaram na montagem pela estúpida e destruidora estética do vídeoclip, que parece uma pandemia (para ficar na onda global que ataca o mundo) a assolar os espetáculos oriundos de Hollywood. É por isso que, quando surgem filmes como Onde os fracos não têm vez e Sangue negro a sensação é de algo diferente, de obras que passam uma emoção e uma reflexão, com clima e eficiência dramática, que seriam impossíveis dentro da estética da tesourinha ou da máquina de costura.

Sofre, com isso, a linguagem cinematográfica, que, com a incorporação da estética do vídeoclip ao espetáculo cinematográfico, se encontra num processo de marcha-a-ré. É impossível se assistir a um filme, atualmente, com o maneirismo demencial de dar ao espectador apenas alguns segundos de uma tomada. Viciada, a nova geração não mais aceita um filme normal, com a durée controlada e precisa, que, por desvio, tende a considera-lo um filme lento e chato – e não se está a falar aqui de obras realizadas em planos seqüenciais, mas de películas nas quais o realizador concebe a duração dentro dos padrões normais de acompanhamento da atenção. A síndrome matriz, antes de fornecer algo de novo e interessante, estabeleceu um ritmo e um padrão capazes de por o prazer de se ir ao cinema por água abaixo. Como se já não bastasse a instauração dos efeitos especiais como conditio sine qua non do sucesso comercial. E, neste particular, existe um culpado: George Lucas, em 1977, com seu Guerra nas estrelas (Stars war), que, com as continuações dos anos 90, permitiram a emergência da irritabilidade em espectadores menos comprometidos com a velocidade rítmica.

Se o cinema hollywoodiano atual é um cinema dirigido por executivos estranhos ao assunto (Coca-Cola, Mitsubichi, Sony, etc), no passado, entretanto, as coisas eram diferentes. Existiam os grandes estúdios (que foram fundidos com suas características totalmente desaparecidas), regidos por chefões que, poderosos, apesar da ânsia do lucro, gostavam e entendiam de cinema (Harry Cohn, da Columbia, Jack Warner, da Warner, Louis B. Mayer, da Metro, David Selzsnick...).

A planilha da produção, hoje, é uma linha de montagem como uma fábrica de salsichas: tantos filmes de ação, tantos filmes de monstros e alienígenas, e por aí vai. Os efeitos especiais se sobrepuseram em detrimento da construção psicológica dos personagens, da estruturação destes como pessoas de carne e osso. Vê-se marionetes e títeres, a correr dos perigos, a se desvencilhar dos obstáculos, mas, nunca, personagens com poder de convencimento e envolvimento. É verdade que há um Clint Eastwood para salvar o pobre cinéfilo, e, para se ser sincero, mais alguns, como Scorsese, os fratelli Coen, William Friedklin, Paul Thomas Anderson, Robert Zemeckis, entre poucos.

O cinéfilo de antigamente se transformou em mero consumidor. Ver filmes virou sinônimo de comer pipocas e se abastecer, até o afrontamento do estomago, de hambúrgueres, refrigerantes post-mix de 750 ml, guloseimas a perder de vista. Os exibidores revelaram que os complexos Multiplex tiram maior renda com a venda de fast-food do que com os ingressos propriamente ditos. Quem quiser uma prova basta dar uma olhada em sessão noturna de dia de semana, excetuando-se as da quarta cujos ingressos são mais baratos.

E para coroar a decadência do cinema contemporâneo – pelo menos o cinema que se oferece na bandeja do circuito – surgiu a prática odiosa da tesourinha, isto quer dizer: a introdução da estética do vídeo-clip na narrativa cinematográfica. As tomadas rápidas, a insistência da ação contínua e a velocidade excessiva imprimida ao ritmo do filme não deixam margem à respiração e à contemplação. E contrariamente aos filmes dos grandes mestres, que sabiam dosar os momentos fortes e os momentos fracos, nas películas atuais praticamente só existem os primeiros. Não há pausas, necessárias, que preparam o espectador para o clímax. Pena que assim seja, pois os amantes do bom cinema estão se afastando das salas de projeção e se recolhendo ao conforto caseiro para ver filmes de sua preferência em DVD. A oferta destes está excelente. Há filmes para todos os gostos. E não se tem que suportar os celulares vazios, as pipocas em mandíbulas alheias, as conversinhas de débeis mentais, a ambiência, enfim, de um inferno. É de se ter imensa saudades das soirées de um Liceu, de um Guarany, de um Bahia, entre outros, quando a cidade de Salvador ainda conservava alguma educação e boas maneiras.

Há, hoje, uma falta de educação avassaladora que faria corar pessoas de tempos idos.

6 comentários:

Jonga Olivieri disse...

Sua tese do cineclipe é fantástica e merece que um dia reuna tudo o que você escreveu sobre ela e a publique em um livro.
Sem dúvida a nova "estética" está a devorar a linguagem cinematográfica transformando-a num 'patchwork' de cenas desconexas de quem ninguém se lembra no final. Confuso... Tudo muito confuso... Propositalmente confuso...

André Setaro disse...

Obrigado Jonga. Atualmente, os filmes oriundos da indústria cultural de Hollywood, com raras exceções, são todos montados na estética do videoclip, com tomadas rapidíssimas que impedem o espectador de contemplá-las, de, mesmo, 'pensar' sobre elas. É tudo muito rápido. Peguei para ver 'As duas faces de um crime', com Pacino e De Niro, em DVD, e não aguentei a velocidade. Por outro lado, vi, recentemente, no Telecine Cult, um inédito Lumet: 'Child's play', filme pausado, ótimo de se ver, com o extraordinário James Mason, Robert Preston, Beau Bridges (ainda muito jovem, é o irmão de Jeff). Antigamente o cinema comercial de Hollywood tinha nível alto. O atual é um lixo, uma parafernália tecnológica, que não dá para ver, salvo se o sujeito não é amante do bom cinema e acha que o cinema é uma montanha-russa. Gosto de filmes pausados, mesmo aqueles de ação. Um filme como 'Operação França', de William Friedklin, que é um grande filme, é mais acelerado, mas dentro de um equilíbrio, de um sentido de 'durée' que os aloprados cineastas da contemporaneidade perderam para sempre.

Emmanuel Mirdad disse...

Pois é... Quando será que teremos em livro todo esse imenso, preciso e precioso conteúdo deste blog, caro mestre amigo?

Rodrigo disse...

A trilogia Bourne consegue fugir um pouco dessa ordem de cortes extremos. Salvo algumas cenas específicas, o resto é bem cadenciado. E o nome do ator é Matt Damon.

O clássico "O Terceiro Homem" também não teria uma montagem mais "nervosa"? A cena final, da perseguição nas galerias subterrâneas da cidade, não seria também um exemplar de uma montagem mais ágil? Li ótimos comentários sobre esse filme justamente por conseguir colocar em cena essa maneira de montagem que décadas depois seria padrão. Veja bem, sem comparar o clássico filme de Carol Reed com nenhum outro da atualidade...

Eu, um jovem de 24 anos, até entendo sua indignação. Como todo processo artístico, o cinema é perfeitamente mutável, mesmo sendo uma arte de pouco mais de 100 anos. Ainda veremos muitas mudanças que farão antigos amantes do cinema se revirarem de raiva. Porém, acho - e permita-me falar isso - que é uma atitude limitadora tentar negar a mutação das coisas, principalmente em se tratando de um processo artístico. Como já dizia alguém que não me lembro, o jovem JAMAIS vai agradar os mais velhos; suas atitudes serão sempre alvo de críticas ardilosas e pensamentos do tipo "ah, no meu tempo...". Até eu já enfrento isso achando que certas atitudes infantis são ridículas em relação ao que eu já vivi.

Cristiano disse...

Eu nasci nos anos 1980, mais ou menos quando o cinema já estava dentro do processo de aceleração das tomadas. Tendo pego o trem andando, sem ter acompanhado o cinema clássico, para mim era uma tentativa meio abstrata tentar entender o que é que o cinema havia perdido.

Isso começou a mudar aos poucos, enquanto eu assistia, cada vez mais, a filmes alternativos ou mais antigos. Mas a exemplificação mais concreta e detalhada que eu já vi foi no livro Figures Traced in Light. Foi aí que eu me dei conta de verdade do quanto o cinema "mainstream" havia perdido. Fiquei muito feliz quando esse livro foi finalmente lançado no brasil (Figuras traçadas na luz).

André Setaro disse...

A estética do videoclip incorporada à narrativa cinematográfica não implica, caro Rodrigo, em avanço da estética e da linguagem cinematográficas, mas um retrocesso. É um recurso da indústria cultural hollywoodiana para se moldar mais ao 'gosto' da platéia imbecilizada de hoje. É por isso que disse que esta estética está a destruir o espetáculo cinematográfico.