Seguidores

25 janeiro 2009

Cinema Baiano (14): De um curso inesquecível


O sonho de Walter da Silveira era implantar, na Universidade Federal da Bahia, um curso de cinema. Quando do reinado de Edgard Santos, chegou, inclusive, a publicar na imprensa artigos sugerindo a sua criação. Não sei se um curso de graduação, como o atual da FTC, mas, talvez, a inclusão de disciplinas na grade programativa de uma Escola de Belas Artes, por exemplo. Em fins de 1967, no reitorado de Roberto Santos, o ensaísta conversou nesse sentido com o diretor do Departamento Cultural da UFBA - assim se chamava nesta época, Professor Valentin Calderon de la Barca, que passou a mensagem ao reitor que, ao contrário de seu pai, o mitológico Edgard, achou a idéia viável e exequível. Resolveu instituir um curso de cinema livre, com a duração de um ano. Não se exigia diploma universitário, mas havia um teste e um módulo de não sei quantos alunos. Estudante do Colégio Estadual da Bahia, o saudoso Central, ainda por fazer 18 anos, consegui passar e o frequentei, oportunidade na qual travei conhecimento com Walter da Silveira durante o ano letivo - já o conhecia do Clube de Cinema da Bahia de vista e de chapéu. E, batendo esta, um dolorosa constatação: tenho 58 primaveras!
Eis que chega no cais soteropolitano um navio que vinha da Tchecoslováquia, trazendo, nele, Guido Araújo e sua esposa tcheca, Ludmila. Guido tinha passado neste país mais de 10 anos e conheceu Ludmila porque ela, estudante de Letras, se especializara na língua portuguêsa. O criador das jornadas baianas tinha ido à Tchecoslováquia como uma espécie de prêmio por seu trabalho como assistente de Nelson Pereira dos Santos em Rio 40 graus e Rio zona norte - na verdade, segundo os créditos dos filmes, fora continuista. Nelson pediu a Guido que levasse Rio zona norte para um festival internacional. E Guido foi ficando até se estabelecer em Praga, onde trabalhou em programas de rádio, entre outros afazeres na área cultural. Vale ressaltar, que Barravento, de Glauber Rocha, que ganhou o principal prêmio do Festival de Karlovy Vary, foi Guido quem o inscreveu.
Na chegada de Guido, estavam no cais a esperá-lo, além de Walter da Silveira, com o qual tinha relações de amizade, Ney Negrão e sua esposa, na época, a advogada Ronilda Noblat (que morreu recentemente), Walter Pinto Lima, entre outros. Quem sabe bem dessa história é Waltinho. Desempregado, Guido precisava arranjar um trabalho e Walter da Silveira o colocou no Departamento Cultural da UFBA. A partir da entrada de Guido neste setor da universidade é que tem início a estruturação do Curso Livre de Cinema, através da criação do Grupo Experimental de Cinema (GEC). Com duração de um ano, o curso foi dado à noite, às 20 horas, sempre às terças e quintas, na Casa da França que, depois que saiu do guarda-chuva da UFBa, veio a morrer lentamente na Mouraria, e o espaço deu lugar a Biblioteca Central, que no reitorado de Luiz Fernando Macedo Costa, construído um prédio grande no campus de Ondina, para lá se transferiu. E a Faculdade de Comunicação passou a ocupar o antigo prédio da Casa da França. Walter da Silveira ensinava às terças, História e Estética do Cinema, e Guido Araújo, às quintas, Teoria e Prática.
Fui colega de muitas pessoas que se tornaram, depois, cineastas, pesquisadores e críticos, como André Luiz de Oliveira, que fez Meteorango Kid entre outros, José Umberto (O anjo negro, Revoada), José Frazão (Akpalô, O último herói do gibi, O mistério do Colégio Brasil... - por falar nele, onde anda Frazão?), e pessoas que estudaram, depois, cinema, a exemplo de Geraldo Machado, Jairo Farias Goes, etc. Vou parar por aqui para não omitir nomes. E Ney Negrão, que também tomou o curso.Uma noite inesquecível foi quando Walter da Silveira levou Glauber Rocha para fazer uma palestra. O cineasta estava filmando em Milagres O dragão da maldade contra o santo guerreiro, que ganharia, no ano seguinte, um prêmio importante em Cannes. Glauber fez uma radiografia brilhante da situação do cinema brasileiro, lamentou que o governo do Estado lhe negou até uma kombi, não recebendo da administração Luiz Viana Filho um centavo sequer, respondeu perguntas. Estávamos em maio e Glauber estava com um casaco preto de couro.Em 1969, por motivos de saúde, Walter não pôde mais dar aulas. Um câncer lhe corroía o corpo efêmero. Morreu aos 55 anos em novembro de 1970. Mas o Curso Livre de Cinema continuou por muitos anos comandando, apenas, por Guido Araújo.
UMA OUTRA HISTÓRIA
Quando se podia transitar na urbis soteropolitana, antes que a violência tomasse conta da cidade, lá pelos anos 60, um exibidor de um cinema do bairro da Liberdade, o Cine São Jorge - que formava com o Brasil e o São Caetano as salas exibidoras do bairro, resolveu passar, à meia-noite dos sábados, "filmes de putaria", segundo sua própria expressão. Eram filmes mal feitos, péssima fotografia, mal focados, quase que não se podia ver direito o que estava acontecendo no interior do enquadramento. Para compensar a qualidade deficiente dos celulóides em 35, o exibidor comprou um projetor 8mm - nada de Super 8, que não existia - em Marota, um comerciante antigo da Cidade Baixa que negociava com material de cinema. Instalando este projetor na sala, mandou buscar filmes suecos e dinamarqueses "de putaria grossa", que tinham, apesar da bitola menor, o 8mm, uma qualidade fotográfica excelente.As sessões ficavam abarrotadas, porque em matéria de "putaria", os homens se contentavam com as histórias em quadrinhos de Carlos Zéfiro, vendidas clandestinamente, mas fáceis de encontrar na Praça Municipal. Não sei se o Macaco de Blair pegou esta época ou se chegou mesmo a ir às famosas "sessões de meia-noite". Fui a uma delas, e vim andando da Liberdade para casa em Nazaré perto das duas da manhã. Tudo era muito calmo. Dava prazer se viver em Salvador.
Mas a polícia, um belo dia, invadiu o São Jorge, mandou parar a sessão, prendeu o exibidor. Todos os jornais estamparam em manchetes. A Tarde fez um editorial moralista da lavra calmoniana. Mas Cruz Rios riu do episódio. Dois meses depois, Walter da Silveira fez um acordo com o exibidor Francisco Python para projetar "filmes de arte" no Guarany da Praça Castro Alves - que com a morte de Glauber tomou o nome do cineasta.Considerando que a cidade era muito pacata, a sessão da meia-noite do Clube de Cinema da Bahia, aos sábados, constituiria-se numa opção para o fim de semana. Walter programou, para abrir com chave de ouro a programação, O túmulo do sol, um filme japonês muito premiado sobre um menino que gostava de contemplar o sol. Filme mágico e encantado e próprio para todas as idades. Mas, por causa do horário, meia-noite, menor não podia entrar. No dia marcado, desde às 11 horas filas se desdobravam pela Praça. Walter achou esquisito, pois o filme seria para um público mais restrito. Filas para comprar ingresso e outras filas para entrar. Um sufoco. A sala de espera abarrotada, e na hora que a corrente foi aberta, pessoas sendo empurradas, uma confusão dos diabos. Na sala, gente sentada no chão. Eis que começa o filme. Passados quinze minutos, as pessoas começaram a gritar, gerando, com isso, um tumulto. Resultado: a maioria das poltronas do Guarany foi arrebentada.Tudo porque, estando ainda fresca na memória dos baianos a notícia da invasão policial do São Jorge, os soteropolitanos pensaram que, naquele horário, os filmes seriam de "putaria grossa". Python rasgou o contrato com Walter, tendo a aquiescência deste.

3 comentários:

Jonga Olivieri disse...

Muito interessantes essas recordações do passado, principalmente das sessões de "putaria", e, sem dúvida nenhuma o fato de se poder andar pelas cidades (não só Salvador, mas qualquer uma) na calada da madrugada.
E, obviamente, o papel de Walter da Silveira ao cinema e à cinematografia baianas.

Allex Rocha disse...

A violência expurga a criatividade das ruas e praças. Na verdade e infelizmente a grande massa foi adestratada para assistir "putaria das braba". Já fui em inúmeras sessões da sala Walter da Silveira onde vi preciosidades, mas o público é minúsculo e poucas pessoas.

Luiz Brasileiro disse...

Este estória de violência está mal contada. Não aceito. A verdade é que a imprensa e pesudos letrados estão vendendo esta estória de violência como se as pessoas estivessem surtado e de um momento para outro resolvessem tudo à bala, como cowboys em uma sexta-feira sem lei.

O que estes cínicos chamam de violência são os crimes contra o patrimônio, roubo (art. 157 do Código Penal), que o povo chama de assalto ou sequestro relâmpago, o roubo qualificado (§ 3º do mesmso artigo), o famoso latrocínio, roubo com morte da vítima do roubo, extorsão (art. 158), extorsão mediante sequestro (art. 159.

Todos estes crimes são crimes contra o patrimônio, não são crimes contra a pessoa, o que poderia ser chamado de violência. Nos crimes contra o patrimônio mencionados a violência é secundária, só eventeualamente é cometida contra a pessoa, o objetivo do criminoso é a apropriação de bens materiais da vítima e a violência usada é só o meio.

Estes crimes contra o patrimônio são em substância e nos elevados índices em que acontecem a crise social deflagrada pela concentração de renda, é a DISTRIBUIÇÃO DE RENDA FEITA NA PONTA DO CANO DAS ARMAS.

Chamar esta crise social de violência é uma indecência, é acobertar a própria crise e seus beneficiários e responsáveis.

Esta crise tem sido a causa da dizimação da juventude pobre, mestiça, negra, moradora da periferia das grandes cidades ou como queiram chamar, pois a média de vida destas pessoas dificilmente ultrapassa 25 anos.

A imprensa e seu repetidores são os responsáveis por seu acobertamento chamando-a de "violência", chamando-a por outro nome, em uma operação de conivência jamais vista em qualquer outro país democrático.