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01 novembro 2007

A produção de sentidos no cinema



A maioria das pessoas que vai ao cinema recebe uma avalanche de imagens e não se encontra apta a identificá-la enquanto uma linguagem. O que interessa, apenas, é a história, a intriga, o desdobramento das situações - aquilo que se chama de fábula. Assim, o espectador comum não percebe que o filme tem uma narrativa e é esta que, por assim dizer, ’puxa’ a fábula - a história. Por narrativa se entende a maneira pela qual o realizador cinematográfico manipula os elementos da linguagem fílmica. Ou seja: o conjunto das modalidades de língua e de estilo que caracterizam o discurso cinematográfico.

O que precisa ficar bem entendido é o seguinte: o que merece crédito na obra cinematográfica não é o que se diz 'no' filme, mas, sim, o que o filme diz. E este fala por meio de sua linguagem específica, assim como na literatura o escritor se expressa por um conjunto de palavras que formam frases, orações e períodos. A expressão daquele que escreve se dá através da sintaxe. E o cinema também tem uma sintaxe que se cristaliza pelo relacionamento dos planos, das cenas, das seqüências. Assim, os elementos básicos da linguagem cinematográfica, os chamados elementos determinantes, podem ser assim considerados: a planificação (os diversos tipos de planos - geral, de conjunto, americano, médio, close up...), os movimentos de câmera (travelling, panorâmica, na mão...) e a angulação (plongée, contre-plongée...). E a montagem, existindo também os elementos componentes, mas não determinantes (fotografia, intérpretes, cenografia...).

É necessário, para uma melhor compreensão de um filme, aprender a reconhecer a linguagem do cinema e a captar qualquer mínima manifestação sua. Importa mais estar atento ao comportamento que a câmera adota em relação a determinado personagem do que seguir o seu comportamento na tela. É mais importante a verificação dos sinais efetuados pela câmera referente ao personagem do que tentar entender o que este está a fazer no desenvolvimento da história. A câmera dificilmente renuncia a uma opinião sua, mesmo quando parece estar silenciosa e perfeitamente alheada. Os modos que dispõe para qualificar a realidade são múltiplos e nem sempre imediatamente compreensíveis.

Um exemplo está em Frenesi (Frenzy, 1972), penúltimo filme de Alfred Hitchcock, um cineasta inventor de fórmulas, um artista da mise-en-scène, cujos significados muitas vezes emergem do comportamento da câmera e, por extensão, do uso que faz da linguagem cinematográfica. Assim, em Frenzy, o movimento aparentemente vagabundo da câmera tem a função de indicar a atitude moral assumida pelo autor - no caso o mestre Hitch - relativamente à matéria tratada. Numa cena dessa obra exponencial, uma mulher (Anna Massey, a namorada do falso culpado Jon Finch) é assassinada em seu apartamento pelo hóspede (Barry Foster, o estrangulador que o espectador já conhece) ocasional que ela própria convidara confiando na sua extrema simpatia. A câmera acompanha os dois quando se dirigem ao prédio onde ela mora - o público já pressente o pior, pois ciente de que o homem é um assassino perigoso, mas, entrando neste, a máquina de filmar abandona os dois ’à sua própria sorte’, pois começa a recuar lentamente, sai do edifício e se detém apenas quando o exterior deste fica enquadrado num plano geral. Todo o movimento se procede através de um movimento de câmera chamado travelling, a princípio ’para frente’ e, quando do recuo, para trás. O grito da pobre moça é abafado pelos ruídos do bairro popular onde se localiza uma feira muito barulhenta. Que outra coisa pretende dizer Hitchcock com este travelling em derrière se não que o Mal está entre nós e que opera das maneiras mais insuspeitas? Trata-se, na verdade, de um caso em que a ’metafísica’ do autor recorre, para se manifestar, à física de uma óbvia escolha estilística.

Hitchcock procura também, com seu humor negro habitual, brincar com o espectador, que sabe ser um sado-masoquista e adoraria, no caso, presenciar o estrangulamento da mulher pelo perverso homicida. A significação, por conseguinte, se faz pela linguagem, pelo comportamento da câmera em relação ao personagem. Se neste exemplo, a significação decorre de um movimento de câmera, em outro, desse mesmo filme, ela advém pela montagem na seqüência na qual o estrangulador procura, dentre muitos sacos cheios de batatas, aquele no qual se encontra o cadáver da mulher que matara no apartamento a fim de lhe tirar um broche de suas mãos, as quais, no momento da agonia, agarram o objeto. A manipulação de Hitch é tal que o espectador torce para que o brutal homicida encontre, tal a sua aflição - e a aflição provocada pela montagem, pela ’mise-en-scène’, o broche que o denunciaria como criminoso.

Em O Açougueiro (Le Boucher, 1969), de Claude Cahbrol - um discípulo de Hitchcock e autor, com Eric Rohmer, de um livro importante sobre o diretor de Vertigo -,há uma cena na qual o protagonista - um carniceiro que se sabe torturado pela mania homicida - confessa o seu afeto à ignara professora da aldeia - ele é Jean Yanne, ela, Stéphane Audran, naquela época companheira do diretor. A declaração tem lugar num bosque onde os dois se deslocaram para colher cogumelos. A atmosfera seria das mais tranqüilizantes, não fora passar-se - durante o colóquio entre ambos - algo que não pode deixar de alarmar o espectador atento. E esse algo não se refere ao comportamento das personagens - que continuam a dialogar num cenário idílico - mas, precisamente, ao comportamento da câmera. Esta última, quase inadvertidamente, começa a deslocar-se lateralmente até o primeiro plano de um tronco de árvore se interpor entre ela - a câmera - e o par, escondendo o homem cujas palavras, contudo, continua-se a ouvir. A vista é desimpedida com a saída do tronco do campo da visão, mas pouco depois desaparece novamente quando o movimento se repete em sentido contrário, conduzindo a câmera à posição inicial. Eis um caso em que um simples travelling se encarrega de denunciar ao espectador a atitude reticente da personagem, 'encobrindo-a' da vista no momento em que se revela ao ouvido. Denúncia essa dirigida ao público e não, infelizmente, à desventurada professora, que se manterá por um bom pedaço na ignorância das verdadeiras intenções do carniceiro degolador.

8 comentários:

Jonga Olivieri disse...

Sabe o que eu acho, André? O espectador não precisa necessariamente entender o porquê entendeu. Entende?
Mas, afinal, o que eu quero dizer com isso? A linguagem e/ou gramática do cinema é algo sutil para a maioria das pessoas. Em outras palavras, elas não entendem aquilo que assistem do ponto de vista teórico, mas apreendem o sentido das coisas.
Os exemplos que você contou são uma prova disto. Quem assiste um filme do Hitch, seja até analfabeto, há de compreender o corte, a trilha, as sombras, o suspense que lhe é passado de uma forma clara.
É aquela coisa de se fazer psicoterapia sem ter lido Freud. O paciente teoriza menos, elabora menos as suas neuroses. Quando se tem uma informação psicanalítica mais densa, pelo contrário, fica mais difícil se fazer analisado.
Sei que são casos diferentes, mas servem como exemplo de que nem tudo que se vê tem-se que saber a razão que há por trás daquilo.
Quem entra numa sala para assistir um filme, o entende, saiba ou não a teoria de construção do mesmo.

Anônimo disse...

Caro Setaro, sobre esse tema altamente pertinente costumo exemplificar para os meus alunos da seguinte forma: ninguém é obrigado a conhecer as regras do futebol para adentrar num estádio e acompanhar uma partida, porém quem conhece as regras aproveita melhor o ingresso.

Stela Borges de Almeida disse...

Professor André está nos convidando para um debate mais exigente. Fala-nos hoje dos sentidos da linguagem cinematográfica e nos provoca para consultar seus textos de introdução ao cinema (aula 11) e referências tais como,Marcel Martin, Jacques Aumont, Saussure, entre outros.
Veja professor, diz Lucia Santaella que o mundo da imagem se divide em dois domínios, o primeiro é o domínio das imagens como representações visuais, desenhos, pinturas, gravuras, imagens cinematográficas, etc. O segundo é o domínio imaterial das imagens na nossa mente. Os conceitos unificadores dos dois domínios da imagem são os conceitos de signo e de representação. Então, nesse sentido, o cinema é a representação de uma linguagem.
E ainda, o espectador comum, o homem comum, não passou por um curso de cinema para perceber estilo, discurso cinematográfico, comportamento da câmara, a sintaxe e a semântica do filme, enfim o que vc. está considerando como a essência cinematográfica. Mas, possui ( alguns pelo menos) atenta e aguçada sensibilidade para a linguagem poética.
Quanto as verdadeiras intenções de carniceiros degoladores, isso escapa ao meu entendimento.

Anônimo disse...

O que se pode dizer de Chabrol? Seus filmes sao uma boa merda, e ele nem comeu as atrizes que participaram deles.

André Setaro disse...

Sobre ser um dos mais aclamados realizadores do cinema de animação baiano e,
quiça, brasileiro, Caó Cruz Alves, cujos prêmios recebidos já não lhe
cabem mais no espaçoso armário de seu apartamento, lê, no entanto, o meu
blog por vias travessas, e sempre está a empregar uma certa linguagem chula.
Não sei, caro Caó, se Chabrol vem a 'conhecer' (no sentido bíblico) suas
atrizes e não é, aliás, da minha conta. Também não sei o motivo de querer
vir a citá-lo a propósito da postagem sobre a produção de sentidos no
cinema. Não acho Claude Chabrol chato, mas você tem todo o direito de
achá-lo, e defenderei até a morte o direito de você assim considerá-lo,
aplicando, desse modo, o dito de Voltaire do qual sou ardoroso defensor.
Quem está a ser chato nas postagens, ainda que não me importe com isso, é
você, caro Caó. E, além do mais, você é um cineasta de animação e desenhista
que se caracteriza pelo senso de humor. Aqui nos comentários que
anda a fazer no blog vejo que, mesmo que momentaneamente, perde sempre o
humor para ganhar um tom de crítica franciscana, um modo de discordar
'capuchino' e muito sem graça. Tenha, por favor, mais engenho e arte quando
comentar alguma coisa. Ou não o faça. Os comentários no Setaro's Blog são
moderados e poderia recusar os seus. Mas não faço isso. Recuso somente
aqueles que vêm para esculhambar pura e simples. Penso, entretanto, não ser
este o seu caso.

Quanto aos comentários outros que estão aqui, a da sempre delicada e gentil
Stela, do poderoso Jonga, e do professor de cinema paraibano Romero, apenas
registrar a honra de tê-los aqui e agradecer o trabalho que
tiveram em postar os comentários. Em relação à apreciação da obra
cinematográfica, quem conhece a sua linguagem tem mais a possibilidade de
apreciar, com mais extensão, o filme, percebendo certos significados que estão
no seu subtexto e que nos são ditos não pelo desenvolvimento da fábula, mas
pelo comportamento da câmera, enfim, pela linguagem. Já cansei de afirmar
aqui que é necessário se ter em mente os dois elos fundamentais da
apreciação cinematográfica: o elo sintático (a linguagem) e o elo semântico
(o que se convencionou chamar de conteúdo). O valor literário de um livro,
por exemplo, encontra-se na maneira de o escritor articular os elementos da
sintaxe de sua língua. É o estilo que faz o homem, como diria Buffon. Ler
Machado de Assis, por exemplo, é apreciar-lhe a maneira de escrever, o
estilo, afinal de contas. Por mais intrigante que seja uma fábula, uma
história, uma trama (viu caro Jonga!), se o escritor não tem um estilo, uma
maneira de escrever com engenho e arte, seus livros não vão possuir valor
literário, a exemplo de Sidney Sheldon, Harold Robbins... O mesmo pode ser
aplicado para o cinema. O espectador comum vê o filme, mas, infelizmente,
não sabe 'lê-lo' na sua integridade. Há, para ele, uma visão 'strictu sensu'
enquanto para aquele que conhece a linguagem, uma visão 'lato sensu'.

Não quero me estender mais no comentário. Hoje é um dia meio 'nublado', chove nas sepulturas, pois dia dos mortos, dia de finados. Ainda bem que estou vivo para contestar a miséria cultural que tanto nos castiga, que tanto nos esculhamba, para usar uma linguagem caotiana.

Cordialmente,

ANDRÉ SETARO

Jonga Olivieri disse...

Caro André. Continuo defendendo a tese de que para se assistir um filme não se precisa ter feito pós-graduação ou mestrado na matéria.
Afinal, é o arte do cinema um fenômeno da cultura de massas, ou não?
Já pensaste que, se todos os que assistem um filme tivessem que entender a gramática cinematográfica teoricamente?
Stela foi mais uma vez brilhante em sua comprovada cultura acadêmica ao se referir à "linguagem poética" no ato de compreender um filme.
E a grande maioria de espectadores está neste nível de visão.
Sem dúvida e não querendo (porém já continuando) uma polêmica que considero saudável e não ofensiva... como aliás, alguns casos por você citados.

Anônimo disse...

Grande Setaro, eleg�ncia � um produto em falta no mercadinho das esquinas. Ainda bem que a sua brota naturalmente, quer seja em Brotas, Federa�o, Boca do rio, Ondina, Rio, Nova York ou Bangladesh. A eleg�ncia � mesmo a prova dos noves e nela voc� tira dez.
E que os mortos enterrem seus mortos.

Romero.

André Setaro disse...

O grande cinema como era visto e sentido no século passado acabou, é verdade. Quando as imagens em movimento eram restritas às salas de projeção e somente eram acessíveis mediante a compra de um ingresso, aí, sim, o cinema era absoluto. Hoje o sujeito nasce e vê, logo, a televisão ligada no monitor do hospital. O próprio aparelho doméstico colorido já oferece uma nitidez extraordinária. Lembro-me do assombro quando vi pela primeira vez a imagem cinematográfica. Fiquei admirado. Estupefato. Atualmente, ainda que a alta tecnologia, os efeitos especiais, não existe mais estupefação diante do espetáculo cinematográfico. Recordo-me que quando vi 'Os dez mandamentos', 'Ben Hur', 'Spartacus', meu assombro foi geral. E o comportamento da platéia, já disse aqui e vou afirmar pela enéssima vez, mudou muito. O que se vê na platéia é um bando de débeis mentais a conversar fora de hora, a atender o dispensável celular, a mastigar, a mastigar, num festival de comilança que faria corar até Marco Ferreri. Reina a falta de educação. Ir ao cinema hoje se constitui num sacrifício, salvo nos horários mais adiantados, quando a platéia é diminuta. O mesmo se aplica às salas alternativas. O público que as frequenta, salvo sempre as honrosas exceções, é constituído de gente metida a entender de cinema e que gosta de se exibir para os outros. Pena.