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10 fevereiro 2007

A mão



"O homem é consciência e mão"
São Tomás de Aquino

Passou a mão pelo cabelo e pensou comprar um xampu na loja em frente; passou a mão pelo bolso vazio e sentiu ter esquecido a carteira em casa. Como pagar, então, o extrato do cartão de crédito que estava na data do vencimento? Passou a mão novamente - e inconscientemente - na barba por fazer e se lembrou que não tinha dinheiro sequer para comprar um simples aparelho de barbear. Ah!, esta mão! Passou-a na nuca e sentiu um aperto forte, uma dor aguda, sinal de tensão alta; passou a mão na testa e a sentiu quente, com febre, mas como procurar um atendimento se seu plano de saúde fora cancelado? A mão, no entanto, sinalizadora de seus tormentos, indicativa de suas aflições, não ficou imóvel na caminhada que praticava todo santo dia em direção à pracinha perto de sua casa. Passou novamente a mão na camisa áspera e sentiu-a com um pequeno rasgão; passou a mão no outro bolso, que, furado, permitiu-a tocar a cueca; levou-a aos cabelos em desalinho, que, sem ver a cor de um sabonete há séculos, denunciava um deslizar sebáceo. Bem que sua namorada, um belo dia, ainda que chuvoso, chamara-lhe de seboso. Homem gorduroso. Nojento. Onde andaria Emerenciana, mulher que chegara a gostar, apesar de possuir uma perna menor que a outra? Admirava-lhe, porém, o mancar, pois, isto, a diferenciava das demais. A lembrança de Emerenciana fê-lo fraquejar e deambular, os passos incertos, riscando, como um bêbado, tonto, agarrando-se às paredes, quase caindo. Passou a mão nas paredes de uma igreja, ferindo os dedos, que sangravam, e por que sangravam, chupava o sangue, penitenciando-se das aflições. Retrato perfeito de um homem acabado, pária da vida cujo único consolo sentia-o nas mãos. O estomago roncava, pedia-lhe uma boquinha, algo que pudesse preencher as suas mucosas. Passou a mão nos dentes esburacados, nas gengivas despossuídas e sentiu, asqueroso, a halitose denunciadora. Passou a mão numa garota bonita que lhe atravessava o caminho, rebolativa, insinuante, mas o troco fora um tapa bem aplicado em seu rosto sofrido e humilhado. O bofetão, de tão violento, conduziu-o ao chão, esparramado numa poça de lama. Lembrou-se, então, do evangelho: Levanta-se Lázaro!. E levantou-se, considerando-se um morto, que, de repente, ressuscitara. Caminhando mais alguns passos, deparou-se com uma linda mulher, mas, reparando bem, era uma imagem estampada num cartaz de cinema. Mais adiante é que resolveu atacar, já desesperado, no mais fundo dos poços, uma madame, de aparência da alta sociedade. Roubou-lhe a bolsa, apesar dos gritos dela, mas conseguiu dobrar a esquina e chegar a sua moradia. Entrando em casa, abriu o objeto do assalto e constatou, eufórico, apopléctico, muitas notas de 100 reais. Pensou num futuro mais risonho e franco. Mas, de repente, um dor lancinante apertou-lhe o coração, tal qual uma fogueira que lhe queimava o peito. Não teve tempo de pedir socorro. O enfarte agudo do miocárdio determinou-lhe a queda na cama, com a língua mordida, esfacelada em duas, a face roxa, desfigurada pela agonia. Uma semana depois os vizinhos sentiram o cheiro de carne putrefata. Arrombaram a porta de seu quarto. Foi enterrado na Quinta de Lázaro numa vala comum. Chamava-se Eusébio Bispo dos Santos

2 comentários:

Anônimo disse...

Esquisito, com um olhar sem piedade sobre a condição humana, ácido, eis o que 'vi' no que li, caro Setaro.

Jonga Olivieri disse...

Fantástica esta narrativa.
Lembrou-me o Carlos Heitor Cony dos tempos em que escrevia romances ambientados numa Copacabana nua e crua, com personagens marcados, marcantes em sua agonia, numa sociedade tão fedorenta quanto os cabelos de Eusébio Bispo dos Santos.
Parabéns.