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15 junho 2014

André Setaro por Cláudio Leal

Eisenstein me perdoe”. André Setaro dedilha um cigarro do bolso da camisa. “Não aguento mais rever o Encouraçado Potemkin. Quando aparece aquele marinheiro gritando com a mão na boca, eu já fico a favor dos oficiais”. Risos enevoados no parapeito da Faculdade de Comunicação (Ufba), em Salvador. “Apresento aos alunos: é uma obra-prima. E venho fumar aqui fora”. Barba de trotskista exilado, expressão rubra, a ironia apontada para dentro, Setaro profana o clássico soviético como quem esconde a devoção de quatro décadas a uma cachoeira de imagens.Os recortes de velhos artigos, empilhados em seu apartamento durante os anos de batucadas diárias na máquina Olivetti, se condensam nos três volumes de “Escritos sobre cinema – trilogia de um tempo crítico” (Azougue/Edufba). Esse patrimônio de coragem intelectual e de erudição ainda se sustenta numa dignidade rara nos ofidiários do jornalismo. Contra as vilezas provincianas, Setaro formou quatro gerações de leitores em sua coluna na Tribuna da Bahia, onde analisou os clássicos, as obras-primas nascentes, as pencas de lançamentos de Hollywood e, porque não é pecado, o corpo de Brigitte Bardot. Desde 2007 ele é colunista de Terra Magazine.
Fundador do Clube de Cinema, em 1950, o advogado e ensaísta Walter da Silveira iniciou a formação de uma cultura cinematográfica na Bahia, irradiada pelas sessões do Cine Guarany, onde fazia romaria o jovem Glauber Rocha. A partir da década de 1970, Setaro passou a cumprir essa missão, desta vez como solitário herdeiro da “responsabilidade humana e social” da crítica, defendida por Walter da Silveira. Ele superou o mestre no conhecimento da linguagem cinematográfica, da estética, da montagem, do “específico filmíco”: a sintaxe que move o cinema e o autonomiza diante de outras artes, a manipulação humana capaz de tornar Lillian Gish (a atriz dos filmes de D.W. Griffith) em algo mais que o regador dos irmãos Lumière.
André Setaro carregou o cinema aos bares de Salvador, no aprendizado de Jeniffer Jones e cerveja, de Luis Buñuel e cigarro, os “recuerdos” precedidos de uma sentença: “Concordo com Buñuel: o homem é a sua memória”.

De André Bazin, o extraordinário crítico do Écran Français e dos Cahiers du Cinéma, Setaro extraiu o rigor da análise e a certeza de que “todos os filmes nascem livres e iguais”. Bazin é um herói para os que amam o cinema, não somente por ter desbravado uma linguagem à procura de reconhecimento, mas também por salvar François Truffaut do desamparo de um reformatório. Num paralelo menos dramático, André Setaro salvou a nós outros, desgarrados do centro do Brasil, de uma ignorância monumental da história do cinema, nos tempos pré-download.
Dizia Truffaut, em 1955, que nenhum “enfant de France” sonharia em ser crítico de cinema quando crescesse (ele trataria de assassinar a própria frase). Em sentido contrário, os textos e a personalidade de Setaro estimulavam os alunos a ambicionar a ginástica da crítica. O resultado tanto podia ser um amontoado de pedantismos quanto o início de um interesse sincero pelo estudo do cinema. Setaro sabe identificar os dois tipos de alunos. Não concebe um espectador sem escolhas afetivas, impulsos, paixões. E assim exerce o jornalismo: devoto do papel, da tinta pregada nos dedos. Há quatro anos, infartado, ele convocou uma ambulância. A pontada mais violenta nasceria nos minutos seguintes, ao lembrar-se que seu artigo seria publicado, naquele sábado, no caderno cultural de “A Tarde”. Sob o risco de morte fulminante, desceu à banca de revista, pagou o jornal e subiu a ladeira para esperar o médico.
O relicário de paixões se enrosca no passado. Morte de Marlon Brando, em 2004. Passo uma semana à espera de sua coluna, e apenas silêncio. Telefonema: “Setaro, quando sai o necrológio?”. Brota uma voz macia: “Não consegui. Vou lhe dizer a verdade: ainda não me recuperei”. No hospital, outra vez infartado, ele aguarda uma cirurgia. Por desgraça astrológica, Antonioni e Bergman morrem no mesmo dia: 30 de julho de 2007. Peço aos amigos para lhe preservarem da tragédia. Entro no quarto, Setaro levanta a mão direita, inconsolável: “Bergman e Antonioni morreram!”. Um espírito de porco lhe dera a notícia por telefone.
“Godardiano” educado pelas leituras “antigodardianas” do crítico do Correio da Manhã, Antonio Moniz Vianna, Setaro sustenta o anúncio da morte do cinema. Melhor dizer: um certo tipo de cinema. Nenhuma de suas teses provoca mais irritação do que esta de enterrar o cinematógrafo. Se provocado, ele desdobra com a morte do humanismo, como fez numa conversa:
– O cinema que morreu, na verdade, é o dos grandes inventores de fórmulas. Cristalizada a linguagem cinematográfica em meados dos anos 60, a sintaxe se tornou estilo de cada realizador, sem contar, evidentemente, os artesãos que apenas ilustram um roteiro. A formação pelo cinema, a educação sentimental pelo cinema e a educação pelo cinema acabaram. Neste sentido, o de formador de público, o cinema está morto e enterrado.
Sem distanciar-se da imprensa, André Setaro carregou o cinema aos bares de Salvador, no aprendizado de Jeniffer Jones e cerveja, de Luis Buñuel e cigarro, os “recuerdos” precedidos de uma sentença: “Concordo com Buñuel: o homem é a sua memória”. Nas mesas, a arte estava inseparável dos fracassos da vida que poderia ter sido, e foi. Homem de obsessões machadianas, Setaro é essencialmente memorialístico. A crítica não ocorre em sua vida como um acidente, mas uma reflexão do seu desprezo ao tempo. Na forma silenciosa com que observa as pessoas, o desejo de retê-las para sempre.
A imposição da lembrança como prazer e dor, que o aproxima da obra de Alain Resnais, empurrou-o uma tarde à sua Marienbad, a casa da infância no bairro de Nazaré: reviveu o corredor imenso, as correntes e o cheiro do ar condicionado do Cine Guarany, o jambo da antiga Faculdade de Filosofia, a banca de Seu Paranhos, as árvores, a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, a figura do Padre Lemos. A casa resistia, apesar das esquadrias de alumínio. Inspirado pelo escritor Pedro Nava, descreveu uma outra vez cada detalhe do antigo Cinema Pax, na Baixa dos Sapateiros. “Escritos sobre cinema” recompõe André Setaro no exercício da crítica e da memória. O que prevalece é a trajetória de um olhar, o mesmo que insiste em retornar aos corredores da infância, ainda inviolado pelo primeiro filme de Catherine Deneuve.
Escrito pelo jornalista Cláudio Leal.

08 junho 2014

Olhando para o bico de meu sapato

Com a decadência dos suplementos culturais no jornalismo brasileiro, a crítica de arte sofreu severo revés, e, aí, incluindo as artes plásticas, cinema, teatro, literatura, e ‘et caterva’. Já se foi o tempo no qual os jornais dedicavam cadernos imensos, verdadeiros calhamaços, mas calhamaços agradáveis, dentro dos quais se encontravam, em letras miúdas, ensaios e artigos brilhantes que o leitor, feita a leitura, e sem o contemporâneo afogadilho da pressa, ficava com pena de dar ao lixo as ‘gazetas’ do dia anterior. A imperiosa necessidade, porém, de não se puder acumular tudo, era resolvida com a tesoura, que recortava as matérias mais interessantes, que, arquivadas em pastas, de vez em quando se davam às consultas.

O jornalismo cultural foi definhando com o passar do tempo, mas, ainda nos anos 80, sem o vigor das outras décadas, ainda se podia ver, aqui e ali, reflexões críticas. Com o avanço tecnológico e a instauração do império do audiovisual , e para ficar, apenas, nos limites daquilo que um dia se chamou de crítica cinematográfica, esta se metamorfoseou em resenhas e comentários, deixando de se constituir em ensaios ou, mesmo, críticas na expressão do vocábulo. Há muito tempo, hoje, para se ver imagens – mas ver sem contemplar, e, pouco, muito pouco, para ler. As humanidades estão mortas. Tudo, nesta contemporaneidade tão deplorável, está dirigido para o pragmatismo, para o imediato, para o consumismo desenfreado e doentio.

A crítica de cinema praticamente desapareceu da imprensa escrita, e, em seu lugar, estão as resenhas, que ‘orientam’ em função do consumo e sempre acopladas ao mercado, à programação do circuito comercial. Os estudos mais sérios sobre o cinema se encontram nas universidades, mas perderam, com o jargão acadêmico, o prazer da leitura que, antes, proporcionavam críticos como Walter da Silveira, Paulo Emílio Sales Gomes, Francisco Luiz de Almeida Salles, José Lino Grunewald, Antonio Moniz Vianna, entre muitos outros. O cinéfilo fica então na condição de um ‘sem-crítica’, pois, geralmente, não tem acesso às elucubrações teóricas fabricadas nos desvãos da academia e, abandonado pela crítica, amarga as resenhas insossas.

Acontece que os críticos de cinema mais antigos eram homens cultos, preparados, que sabiam escrever. Novamente se volta à questão de que as humanidades estão mortas, pois nas escolas os professores generalistas, de ampla cultura, ‘causers’, deram lugar aos pragmáticos e aos especialistas. Uma aula de Direito há algumas décadas atrás era uma aula de filosofia, de história, acionada por um mestre que dominava a oratória. Nos dias atuais, que viceja no pântano contemporâneo, existem os ‘técnicos’ em Direito, especialistas, preocupados com este tão pestilento e ameaçador ‘mercado’, que virou o Deus da pós-modernidade inculta.

A sociedade de consumo determina a degenerescência do saber, promovendo a apatia genuflexória, o entusiasmo fogo-de-palha, os arruídos do vácuo. A ver tudo isso, a melhor opção talvez seja, como a de um personagem de Luis Buñuel, passar a maior parte do tempo a olhar o bico de seu sapato. Vai-se a um cinema como se vai a um ‘fast food’, e a sala exibidora, voltando, mais uma vez, ao assunto, virou mesmo um ‘fast food’. E as livrarias, ‘butiques’ mal assanhadas e mal ajambradas, de livros capengas que mistificam o saber na tentativa de uma frustrada e enganosa auto-ajuda. O politicamente correto ceifa o humor e restringe a liberdade de expressão, condicionando os seres a uma postura ‘certinha’ e desinteressante. E aqueles que pensam estar à vanguarda não passam de modernosos e vanguardeiros de ocasião, desconhecendo que a grande revolução estética nas artes se deu na década de 20 com uma reciclagem na de 60. A partir dos anos 80, com a ascensão dos ‘yuppies’, a vinda catastrófica do neoliberalismo, e a instalação de um ‘cientificismo’ desvirtuado, o homem ficou à míngua, ao léu e, mesmo, poder-se-ia dizer, ao ‘deus-dará’.

Sobre ser o crítico de cinema um intérprete privilegiado da obra cinematográfica, na suposição de ter um repertório fílmico capaz de capacitá-lo como exegeta, não significa, com isso, que proceda, na sua análise, de maneira arrogante, impositiva e pedante. Mas muito pelo contrário: a verdadeira crítica deve ser um condutio para evidenciar ao leitor as valências ocultas de um filme. O crítico deve ser um intérprete e dar, nos seus escritos, a sua impressão sustentada por um embasamento teórico.
                                  
Existem várias espécies de críticos: o ensaísta, o crítico, o comentarista e o resenhista. Se, em outros tempos, o crítico de um jornal tinha uma titularidade no seu veículo, nos dias que correm, no entanto,  todo mundo se acha no direito de ser crítico de cinema, assim como todo brasileiro se considera um técnico de futebol. O vocábulo crítico caiu numa geléia geral de tal modo foi degradado e vulgarizado.

Quando me perguntam o que é a crítica cinematográfica, gosto de responder: a rigor, a função da crítica de cinema é ajudar o espectador a percorrer o itinerário do filme com um mínimo de conhecimento da sua linguagem, de modo a permitir que se reconheça, durante o trajeto, aquilo que é importante e o que não é. Uma função, portanto, que, mesmo antes de se reportar à apreciação estética da obra considerada no seu conjunto, incide sobre a sua sucessiva racionalização, quer dizer, a tradução em termos lógico-discursivos do sentido poético que ela exprime através dos procedimentos de significação que lhe são próprios. É necessário que o aspirante a crítico construa primeiro um repertório para depois se aventurar na análise fílmica. A crítica é a arte da paciência.

Quando se faz uma crítica a um filme estrangeiro ou mesmo a um brasileiro, tomando o olhar de um crítico que exerce a sua função na Bahia, a exegese, quando depreciativa, cai na vala comum do esquecimento. Mas quando se trata de filme baiano, tudo se modifica, considerando que o crítico conhece os realizadores da província e, de hábito, um comentário, mesmo que fundamentado e diplomático, é visto como ofensa ou tentativa de denegrir o cineasta. Surge, portanto, para o crítico, a angústia de criticar o cinema baiano, a aflição de, constatando a ausência de inspiração desse ou daquele realizador, emitir uma opinião desfavorável. E não se pode fechar os olhos para as dificuldades imensas que é se fazer cinema na Bahia. A angústia crítica, que interfere, inclusive, no processo neurovegetativo do crítico, é avassaladora. Devo confessar que, quando vou ver um filme baiano, entro sempre na sala de projeção querendo gostar da obra anunciada. Por outro lado, muitas vezes, o crítico, para não ferir suscetibilidades - e aqui não se trata de covardia ou omissão, mas compreensão de um panorama de mendicância, confere à sua imaginação as asas da ficção, dando ao texto um tom mitológico e até parnasiano.

P.S: Já comentei aqui por várias vezes que a incorporação da estética do vídeo-clip à narrativa cinematográfica prejudica sobremaneira a sua perfeita fruição, dando ao espetáculo um verniz de superficialidade. Nada contra o vídeo-clip em si, que pode ser muito bom (Thriller, com Michael Jackson, entre tantos!), mas é intolerável que seja incorporado ao discurso cinematográfico. Capitães de areia, de Cecília Amado, neta do escritor Jorge Amado, sofre muito dessa pressa narrativa, ainda que bem produzido, bem alinhavado. E se a estética referida investe com força na primeira parte, por outro lado, a injeção de romantismo da segunda tira, ao filme, um corpus estrutural uniforme. Capitães de Areia, o filme, é muito inferior ao livro, sendo, apenas, pálido reflexo deste. Li Capitães de areia na minha adolescência ao lado dos outros livros de Jorge Amado, excelente narrador, criador de tipos interessantes. Amado, com raríssimas exceções, não tem sorte com as adaptações de seus livros. Nelson Pereira dos Santos, sim, ele mesmo, o grão-duque do cinema brasileiro, matou Jubiabá, e desconfigurou Tenda dos milagres. Carlos Diegues fez turismo em Tieta do agreste. Marcel Camus carnavalizou Os pastores da noite. E Cecília Amado ilustrou Capitães de areia em função das expectativas narrativas da contemporaneidade.







04 junho 2014

Da ação e da reflexão

John Wayne em Rastros de ódio (The seachers), de John Ford
Carlos Heitor Cony, em artigo recente na Folha de S.Paulo, escreveu sobre a literatura de ação e a literatura de reflexão, e citou Glauber Rocha, que disse certa ocasião que a obra de José de Alencar é um rio caudaloso enquanto a de Machado de Assis uma torneira que pinga. Queria o realizador de Deus e o diabo na terra do sol dizer que nos livros de Alencar a ação prepondera em detrimento da reflexão enquanto nos de Machado é esta que determina a sua fruição. O mesmo poderia ser aplicado ao cinema.

O que se convencionou chamar erroneamente de cinema de arte não passa, na verdade, de uma falácia. O cinema de arte não existe e, inclusive, a expressão foi dada pelos exibidores (que são comerciantes) para designar, na década de 50, os filmes de tomadas demoradas, sem ação, quando da explosão no mercado das obras de Ingmar Bergman, Michelangelo Antonioni, Robert Bresson, Roberto Rossellini, entre tantos outros. Os exibidores é que denominaram estes de filmes de arte porque filmes que não tinham ainda muito público e o mercado era restrito. Queriam eles dizer, na verdade, se tivessem mais noção da arte do filme, que os filmes de arte se caracterizavam pela reflexão em detrimento da ação.

O fato é que não existe, a rigor, cinema de arte. O filme pode ser excelente seja ele de ação ou de reflexão. Sobre produzir um monte de lixo, a indústria cultural de Hollywood também realiza grandes filmes, como, por exemplo, e filmes do ano em curso, Sangue negro, de Paul Thomas Anderson, Onde os fracos não têm vez, dos Irmãos Coen. E os primorosos filmes de Clint Eastwood, Martin Scorsese, Sidney Lumet, entre outros tantos, não são oriundos da indústria? Se vingar a expressão cinema de arte como a significação do verdadeiro e bom cinema, filmes que são obras-primas como Rastros de ódio (The seachers), de John Ford, por serem de ação, estariam fora dela. O que seria um absurdo e uma patologia mental.

O que determina o valor de uma obra cinematográfica é a maneira pela qual o realizador articula os elementos da  sua linguagem. Não importa se a articula em função da ação ou da reflexão. O que importa, na verdade, é o talento, o engenho e a arte. Também na literatura o que determina o valor literário de um livro é a maneira pela qual o escritor articula a sintaxe da língua. A ação pela ação (e também a reflexão pela reflexão), se não estiver apoiada numa escrita bem articulada, nada vale.

A confusão, porém, ainda é muito grande. A maioria dos pseudo-cinéfilos que toma conta das salas alternativas da cidade somente considera filmes válidos aqueles voltados para a reflexão. Mas se a reflexão não tiver aporte numa expressão estilística elevada não tem valor e, muitas vezes, é veículo para a aporrinhação do espectador. Neste caso, muito mais vale um filme de ação bem articulado do que um de reflexão de pouca polivalência no estilo.

Um belo dia, deparei-me com um impertinente pseudo-cinéfilo, desses que gostam mais de ficar na sala de espera para ser visto do que no interior da sala exibidora, e ele ficou admirado quando manifestei minha admiração pelos filmes de Clint Eastwood. "Mas não é aquele cowboy italiano que depois virou o perseguidor implacável?"

Existem, por outro lado, cineastas que a priori pensam fazer cinema de arte e, na verdade, seus filmes são estímulos fortíssimos à sonolência. O verdadeiro cineasta faz seu filme de acordo com a sua necessidade de expressão. Se vai conseguir um bom mercado exibidor ou ficar restrito às salas alternativas, isto, outra história.

Howard Hawks, brilhante realizador americano, fez um filme que mistura ação e reflexão numa solução de gênio em Onde começa o inferno (Rio Bravo, 1959), com John Wayne, Dean Martin, Angie Dickison. Western clássico, a ação de Rio Bravo, tirante poucos momentos de ação, transcorre quase toda dentro de uma pequena sala da delegacia ou no interior de um hotel das circunvizinhanças. A reflexão, a análise do comportamento dos personagens, e os diálogos são mais importantes do que a ação. Em outro filme desse genial diretor, Hatari!, a sua maior parte está concentrada na espera da caça e não nesta, quando se tem a ação. Hatari!, filmado in loco, na África, é sobre um grupo de caçadores de nacionalidades diferentes que está à procura de animais selvagens para os levar para os zoológicos de seus países. Mas Hawks concentra todo o filme nos momentos fracos, nos momentos de pausa, nos momentos em que os personagens estão à espera da caçada. Uma característica de Hawks, um realizador que se dividiu entre os westerns e as comédias com admirável talento (inexistente no cinema contemporâneo).

O cinema de arte, portanto, é uma falácia e uma grande mentira.



01 junho 2014

A vida íntima de Sherlock Holmes

Pouco apreciado, porque, quando lançado em sua época, e retirado de cartaz, nunca mais exibido, A vida íntima de Sherlock Holmes é um Wilder em plena sensibilidade de seu humor e de seu cinema com um acento hitchcockiano que o faz ainda mais saboroso. Trata-se também do primeiro filme que Wilder (vienense radicado no cinema americano) realiza na Inglaterra (os interiores nos estúdios Pinewood) e Escócia (exteriores em Inverness). Produzido em 1970, com roteiro do inseparável I. A. L. Diamond, baseado nos personagens de Sir Conan Doyle, A vida íntima de Sherlock Holmes, sobre ser um espetáculo de grande finura, humor, e observação de comportamentos, é uma obra que se incorpora a uma filmografia quase única da história do cinema como mais uma variante de sua verve versátil e amplitude temática. A influência de Hitchcock se faz notável, mas influência benéfica, mais que soma do que diminui, como acentua Paulo Perdigão, o grande crítico, em comentário que posto abaixo.

Inativo, ocioso, Sherlock Holmes (interpretado por Robert Stephens) passa o tempo a tomar cocaína, apesar dos reclamos de seu biógrafo e amigo Dr. Watson (Colin Brakely). Aceitando o convite para assistir ao balé russo, Holmes é levado à presença da primeira-bailarina, Petrova (Tamara Toumanova), que, a desejar um filho genial, escolhe Holmes como o pai ideal. Polidamente, como é do seu feitio, o detetive recusa, a alegar ser um homossexual (é audacioso, para a época, a insinuação desta condição), declaração que deixa atônito o Dr. Watson totalmente desconfiado de sua misoginia. Dias depois, uma jovem, Gabrielle (a insinuante Geneviève Page), que tentara o suicídio no Tâmisa, é levada à residência de Holmes (rua Baker, 221-B). Ela viera da Bélgica para descobrir o paradeiro do marido, um engenheiro. O fleumático private eye segue uma pista, apesar das advertências em sentido contrário de seu irmão, Mycroff (interpretado pelo emblemático Christopher Lee).

Em Inverness, na Escócia, descobre Holmes a existência de um estranho submersível testado pelo governo, e que tem a forma do lendário monstro marinho Long Ness. Mycroff, que trabalha no projeto, revela a Holmes que Gabrielle é, na verdade, uma espiã alemã. Frustrado, o detetive volta à sua Londres enquanto Gabrielle é presa. Mais tarde, Holmes vem a saber, transtornado, que a moça fora executada. A solução, e solução wilderiana, diga-se de passagem, será voltar à cocaína.

The private life of Sherlock Holmes é vigésimo - segundo filme da carreira do diretor e o nono em parceria com o roteirista Diamond (trabalham juntos desde Amor na tarde/Love in the afternoon, 1956). Produzido com sete milhões de dólares (uma mixaria em relação aos tempos faraônicos da Hollywood atual), é o centésimo vigésimo filme a apresentar a figura do detetive criado por Conan Doyle e aqui abordado livremente.

Como homenagem a este filme pouco apreciado de Billy Wilder e, também, como homenagem ao grande crítico que foi Paulo Perdigão, publico aqui uma crítica de sua lavra publicada no antigo Guia de Filmes do INC (Instituto Nacional de Cinema, que também publicava a revista Filme/Cultura. Nos bons tempos da crítica cinematográfica. Perdigão morreu em janeiro de 2007, o que se constituiu numa perda enorme para os escritos sobre a arte do filme. Tinha Perdigão como o seu melhor filme Os brutos também amam (Shane, 1953), de George Stevens. Chegou a ir, sob os auspícios da Filme/Cultura, entrevistar Stevens, que, a princípio arredio, com o desenrolar da conversa, assombrou-se com o conhecimento de Perdigão sobre Shane. No final da entrevista, disse que Perdigão conhecia mais o filme do que ele, seu diretor. Eis seu comentário:

"Elementar, meu caro Wilder. É o que o roteirista Diamond deve ter comentado com o diretor Billy Wilder quando ambos resolveram decifrar – sem consulta à fonte Conan Doyle – um mistério chamado A vida íntima de Sherlock Holmes. As pistas deixadas pelo fiel Dr. Watson dentro de uma caixa top secret eram dignas da imaginação, do faro e da irreverência do mais célebre detetive de todas as épocas; além da clássica indumentária sherlockiana (o boné de camurça, o cachimbo, a écharpe, a lente de aumento), já estavam os relatos que Watson não teve coragem de publicar em The Strand Magazine por serem indiscretos demais. Quatro episódios reveladores da personalidade de Sherlock e que, como diz Wilder com seu conhecido cinismo, “também refletem a imagem de certa Inglaterra”.

Antes da atual aventura, Sherlock esteve 127 vezes na tela – numa delas (alemã de 1963) interpretado por Christopher Lee, que aqui faz o irmão de Holmes, Mycroft. Mas só agora, sob os traços do shakespeariano Robert Stephens, ele foi examinado por um cineasta à altura de sua sofisticação diabólica. Wilder identifica-se com Holmes e evidentemente o admira: “Ele é um dos maiores personagens da literatura, comparável a Hamlet e Cyrano de Bergerac”. Por isso, as inconfidências sobre a intimidade do herói não atingem o plano da sátira devastadora; contém-se respeitosamente na fina ironia, numa reconstituição muito fleumática e astuciosa do mundo em que viveu Holmes, a velha Inglaterra vitoriana com seus personagens nobres, céticos e calculistas. Na carreira de Wilder, dominado por tantas provocações indômitas (A montagem dos sete abutres, Quanto mais quente melhor, Beija-me idiota), este filme ocupa posição mais discreta, porém, em quase tudo refletindo a sofisticação que o diretor guardou de suas antigas ligações com o mestre Lubitsch, como roteirista de A oitava esposa do Barba Azul e Ninotchka.

The private life of Sherlock Holmes é também como uma inesperada homenagem que o cinema presta a Hitchcock. O estilo e o tom da narrativa têm o mesmo sabor de velhos thrillers ingleses de Hitch e muitas imagens – a velha paralítica na loja deserta, os monges misteriosos do trem, os anões do cemitério – chegam a ser acintosamente hitchcockianas. Há, inclusive, na cena das ovelhas, uma citação de Os 39 degraus e, na seqüência do balé russo, a repetição de uma passagem idêntica de Cortina rasgada, com a mesma e sinistra Tâmara Toumanova. Até quando se diverte com a velha Inglaterra (a Rainha Vitória, de metro e meio de altura, protesta contra a falta de cortesia na guerra e manda destruir o submarino porque “não se pode atacar o inimigo sem aviso prévio”). Billy Wilder parece estar querendo fazer de A vida íntima de Sherlock Holmes o filme mais hitchcockiano que o Hitchcock da fase inglesa não dirigiu, conclui o grande Perdigão.

25 maio 2014

Hiroshima, mon amour

O Cineclube Glauber Rocha - de quinze em quinze dias no Espaço Itaú )Praça Castro Alves) está resgatando o prazer de se ir ao cinema ver grandes clássicos. Dia 3 de junho, às 20 horas ( e a preços módicos) - anotem aí, cinéfilos, Hirosima, mon amour, do grande Alain Resnais
Entre os grandes autores de cinema de todos os tempos (Chaplin, Welles, Fellini, Dreyer, Bergman, tantos!), um dos meus preferidos é Alain Resnais, inventor de fórmulas, realizador do específico cinematográfico, e não poderia, neste 2009, deixar de registrar, aqui, os 50 anos de uma obra-prima, de um filme “divisor-de-água”, que traumatizou durante a linguagem cinematográfica então estabelecida. E este filme é “Hiroshima, mon amour”, que nos introduz, pela primeira vez, como notou a ensaísta Nathalie Weinstoc, no procedimento dialético da consciência, no processo da subjetividade. Em imagens de cinzas, noite e luz.
A visão de “Hiroshima, mon amour” ainda adolescente me fascinou e se constituiu num filme “propulsor” para o meu entendimento do cinema como um veículo de expressão artística. Não o vi, porém, em seu lançamento, mas quatro anos depois numa sessão matinal no cine Guarany, de Salvador, quando, aos sábados, acontecia as projeções do Clube de Cinema da Bahia patrocinadas por Walter da Silveira.
Nestas sessões, que eram bem frequentadas (a sala ficava cheia) por intelectuais, universitários, amantes do cinema em geral, havia também a presença de muitos alunos do Colégio Estadual da Bahia (Central), centro de educação emblemático da soterópolis (onde Glauber Rocha e amigos instalaram “As Jogralescas”). Lembro-me que, quando da exibição de “Hiroshima, mon amour”, uma turma deste estabelecimento, pela estranheza da composição estética do filme, começou a fazer algazarra. Walter da Silveira mandou interromper a projeção e fez um discurso para uma platéia estupefata. E deu continuidade a exibição. O público restou em profundo silêncio.
A descrição sumária de sua “história” nem de longe pode dar a idéia da obra cinematográfica. Esta cabe perfeitamente na clássica definição de André Bazin: “Quanto mais fácil se expõe pela narrativa oral a história de um filme, menos cinematográfico ele é, enquanto que quanto mais difícil é explicá-la oralmente, mais cinematográfico ele é.” É o caso desta obra-prima de Alain Resnais, que permanece 50 anos depois com uma atualidade poética impressionante.
“Hiroshima, mon amour” narra algumas horas na vida de um casal em Hiroshima, no mês de agosto de 1957. Ela (Emmanuelle Riva), uma atriz francesa, veio atuar num filme internacional sobre a paz. Ele (Eiji Okada), japonês, arquiteto e casado. Os dois se amam livremente num quarto de hotel. A lembrança dos “dez mil sóis de Hiroshima” os atormenta. Esta cidade, que foi palco de extremo horror, agora é feita na medida do amor.
Quando a bomba explodiu em Hiroshima, ela se encontrava em Nevers, na França, onde viveu um amor de juventude que a perturbou profundamente. Amante de um soldado alemão, que foi morto durante a Libertação, ela teve a cabeça raspada pela multidão (Claude Lelouch copia esta cena em “Retratos da vida”/”Les uns et les autres”) e foi trancafiada num porão por seus pais, mortos de vergonha. A lembrança desse drama reflui à sua memória. O japonês ouve-a.
E por falar em Walter da Silveira, o grande ensaísta e pensador baiano do cinema, não resisto a transcrever aqui um trecho de sua brilhante análise sobre esta obra-prima publicada em “Fronteiras do cinema”, reunião de ensaios antológicos do mestre. Este se chama “Da oralidade em Alain Resnais”:
“O tem e o estilo se formam de palavras ou de imagens, equivalendo-as, sobrepondo-as, diminuindo-as, de acordo com as relatividades do momento. Mas, há um fator artístico em “Hiroshima, mon amour” que não vem das palavras nem das imagens, porém assume, em alguns instantes, um papel da mesma grandeza: o silêncio. Não o silêncio no velho sentido cinematográfico, superfície de linguagem. O silêncio, aqui, tem um significado mais profundo. Age como um continuador da palavra. É uma expressão narrativa. Interfere como som, embora seja a sua negação. Em poesia, freqüentemente surge como um problema de ritmo. Em “Hiroshima, mon amour”, aparece como uma questão de fundo, de essência dramática. Todas as cenas de Nevers são mudas, não há uma voz, uma palavra, um som ¿ apenas a música de Giovanni Fusco acompanha as imagens. Se Nevers era a evocação, a vida reconstituída, a vida contada, em Nevers nada poderia se escutar, somente poderia se ver, graças à narrativa de Emmanuelle Riva, a adolescência sofrida daquela atriz, o seu primeiro amor, os primeiros encantamentos e os primeiros martírios na cidade distante.”
Mais Walter: “A voz era a do presente, teria trinta e cinco anos. A figura era do passado, teria vinte anos. O fluxo da vida, esvaindo-se em carne, mas reconstituindo-se em espírito como em “Van Gogh”. Da face gasta de Emmanuelle Riva a visão se transpõe, mediante um corte rápido, num recuo introspectivo, para a face jovem da namorada do soldado alemão: dois tempos da mesma mulher. A vida morta e a vida em vivência em um cruzamento contínuo. O esquecimento se fazendo lembrança. A lembrança se dissolvendo em esquecimento. Num brevíssimo instante, clarão de memória riscando um segundo de olhar, a mão repousada do amante na cama é substituída pela mão morta do amante alemão na terra. Continuamente, pela magia cinematográfica, ao contrário da literatura, e em contraste com a pintura que modernamente tenta partir do sensível para o abstrato, a abstração se transforma em figura, a alma torna-se matéria. Cada silencia de Nevers corresponde à recuperação do passado perdido. Essa recuperação possui um rosto, como os retratos antigos. Diz-se um nome, de um pai ou de um amado, e a sombra move-se no tempo. Mas exatamente por sombra, porque unicamente lembrança, toda a fala desaparece. Em certos filmes até banais, esse sistema narrativo já fora empregado. Na fita de Alain Resnais, tem um ar de descoberta, de experiência fundamental.. Além de justapostos à constância das palavras, os silêncios imaginários constroem, sob um aspecto totalmente novo, aquele contraponto sonoro que Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov reclamavam como a essência do cinema.”

13 maio 2014

"A Noite", de Michelangelo Antonioni

Um dos filmes que me despertaram, no decorrer dos anos 60, para a compreensão do cinema como uma verdadeira expressão da arte, foi, sem dúvida, “A Noite” (1961), de Michelangelo Antonioni. Visto pela primeira vez no Clube de Cinema da Bahia, “La Notte”, com o domínio da anti-narrativa, promovia o êxtase diante de um cinema que procurava mostrar as difíceis relações entre as criaturas humanas, principalmente no se refere à incomunicabilidade que se manifesta na rotina de um casal. “La Notte” se constituiu, por assim dizer, numa introdução à cultura superior cinematográfica, formado que era, então, e apenas, pelo cinema de gênero oriundo de Hollywood. A partir de “La Notte”, vim a conhecer não somente os outros filmes de Antonioni, como as obras dos grandes autores no já citado Clube de Cinema da Bahia (que, neste ano de 2010, cumpre os seus 60 anos de fundação): Resnais, Godard, Truffaut, Kurosawa, Welles, Kenji Mizoguchi, Eisenstein, Fellini, Buñuel, entre tantos. Foi a minha iniciação.

Falar de "A Noite", de Michelangelo Antonioni, é falar de uma obra-prima, de um filme emblemático da história do cinema. Responsável pela sublimação da linguagem no ser fílmico, Antonioni praticou um corte longetudinal na evolução da narrativa cinematográfica, com a desdramatização, ou seja, a recusa do espetáculo, a desteatralização, que pode também ser vista em Roberto Rossellini em seu fundamental "Viagem à Itália" ("Viaggio in Itália", 1953), que, a bem da verdade, precedeu o realizador de 'La Notte". Segundo Marcel Martin, a partir dos anos 50, assiste-se a um progressivo ultrapassar da linguagem, àquilo que se poderia chamar de rejeição das regras tradicionais - da gramática de ferro - para fazer da narrativa fílmica não mais um meio, um veículo de sentimentos e idéias, mas um fim em si: a própria narrativa tornando-se o objeto primeiro da criação. Assim, ficou mais difícil aplicar aos filmes que se colocaram na vanguarda da pesquisa estilística - como a famosa trilogia de Antonioni constituída de "A Aventura"/"L'Avventura", 1960, "A Noite", e "O Eclipse"/"L'eclisse", 1962 - os velhos esquemas da "explicação de textos" habitual, ou seja, a distinção escolástica entre a forma e o conteúdo se tornou impossível e absurda. Antonioni, pode-se dizer, instaurou a estética do filme.

Giovanni Pontano (Marcello Mastroianni), um escritor de sucesso, encontra-se prisioneiro em um universo fictício, incapaz de escrever algo sério, verdadeiro. Sua mulher, Lídia, (Jeanne Moreau) se sente excluída do mundo do marido. A morte de um amigo de ambos (interpretado pelo diretor alemão Bernhard Wicki) faz ainda mais patente o abismo aberto entre eles. Gherardini, o poderoso industrial, tenta comprar o escritor, apesar de seu elevado nível de vida e o orgulho que sente por seu poderio capitalista. Sua filha Valentina (Mônica Vitti), afogada no vazio de seu próprio ambiente burguês, sente uma urgente necessidade de se libertar. Cada um desses personagens de Michelangelo Antonioni permanece preso num beco sem saída. Está exposta a equação existencial tão ao gosto do cineasta de "A Aventura".
Antonioni, que rodou o filme em Milão, fixou sua atenção sobre os meios industriais e intelectuais da populosa cidade italiana. A mesma Milão que serviu de cenário a outra obra-prima do cinema italiano: "Rocco e seus Irmãos"("Rocco i suoi Fratelli", 1960), de Luchino Visconti, tragédia exemplar que estabelece a cinematografia italiana como a mais poderosa do momento cinematográfico nos sessenta, agrupando verdadeiros gênios como Antonioni, Visconti, Fellini, entre tantos outros como Valério Zurlini. Assim, a fixação da inação em Milão não é aleatória, mas tem um objetivo e um propósito. Antonioni quando elege a profissão de seus personagens sabe perfeitamente o que está a fazer: "Exijo sobretudo intelectuais, porque são os que têm a consciência mais exata da realidade, além de uma sensibilidade, uma intuição, mais sutil, através da qual posso filtrar a realidade que desejo expressar." A expressão dessa realidade nos seus filmes se faz pelo exterior ou pelo interior.


Antonioni em "A Noite" aprofunda a linha estabelecida em "A Aventura". O esquema dramático maneja uma série de abstrações até então inéditas no cinema de Antonioni. Que, pela primeira vez, reúne Jeanne Moreau e Mônica Vitti, as duas atrizes que melhor souberam expressar as facetas da mulher moderna - a mulher contemporânea dos anos 60, quando a libertação se fazia urgente e o cinema um ‘conduto’ que muito bem expressava o profundo estado de crise da sociedade burguesa. Um estilo que se caracteriza pelas tomadas longas, estabelecendo, com isso, uma espécie de anti-narrativa cuja exasperação chegou em "O Eclipse".

Em"A Noite", o industrial Gherardi e sua esposa são realmente figuras da alta burguesia milanesa, assim como em sua maioria os convivas são sócios do Barlassina Golf Club (perto do lago Como), transformado em residência daqueles. Antonioni não incide no jogo duplo em relação a esses atores voluntários. Sua serenidade de artista permite-lhe colocar, ao lado da análise implacável nos diálogos e nos planos, o orgulho do capitalismo que escreve ou roteiriza segmentos da História com personagens verdadeiros, casas verdadeiras, cidades verdadeiras.

Walter da Silveira, ensaísta baiano, após a primeira visão de "La Notte", entusiasmado, escreveu um ensaio sobre Antonioni do qual destaco aqui esta parte - que se encontra no livro "Fronteiras do Cinema": "Ao contrário do que se tem dito, Antonioni seria, por um paradoxo, o cineasta que mais acredita na sensibilidade e na inteligência do público, dispensando-se de ser evidente para ser claro. E se constrói seu relato fílmico sem excluir o elemento não visual do cinema, dando-lhe a importância de um fator de interpretação ou acentuação da imagem, no final de cada filme transmite-nos uma longa cena silenciosa em que só o gesto define e comunica toda a sua essência vital, ética. Em "A Aventura", a mão de Claudia desce, hesita, volta a descer sobre o ombro de Sandro, numa indecisa porém insistente vontade de existência a dois, numa dolorosa porém aguda intuição de que, malgrado todas as demissões, resta ainda ao homem uma tênue possibilidade de libertar-se. Em "A Noite", o par cujo casamento já no décimo ano foi tomado pelo tédio, a lassidão conduzindo à incerteza, abraça-se sobre a relva numa cópula de desespero, inseguro da permanência além da madrugada. E em "O Eclipse" já nem se vêem os recantos em que se encontravam - documentação e também metáfora de uma vida comum abandonada."


A iluminação dessa obra-prima é de um artista: Gianni Di Venanzo.

04 maio 2014

João Carlos Sampaio

A morte, sempre implacável, tirou de nosso convívio o crítico de cinema João Carlos Sampaio. A Bahia perde o mais atento jornalista na cobertura das coisas de cinema. Sampaio era um workaholic em relação a seu trabalho, pois sua coluna em A Tarde (jornal soteropolitano), além de ter críticas bem pensadas sobre os lançamentos mais importantes, pontuava, com regularidade, o movimento do cinema baiano - não se recusava, inclusive, a fazer matérias de páginas inteiras sobre os filmes e cineastas. No momento atual do jornalismo baiano, quando a cultura está indo pra o brejo, como assinalou o poeta Ruy Espinheira Fillho, a falta de João Carlos Sampaio é imensa. Era uma pessoa de lhano trato, terno, de sensibilidade à flor da pele. Minha homenagem a este homem que amava o cinema. E a seu querido Esporte Clube Vitoria. Leia mais sobre Sampaio aqui: http://cadernodecinema.com.br/blog/o-cinema-baiano-chora/

01 maio 2014

Entrevista com o blogueiro no Dia do Trabalho

O gerente deste blog no dolce far niente

Entrevista realizada comigo pela crítica paulista Teeh Schwarz há alguns aos atrás. As cervejas foram pagas por ela.
1) Qual foi o motivo do interesse pelo cinema? Como se deu esse envolvimento?

André Setaro - Comecei a me envolver com o cinema desde que comecei a frequentá-lo lá pelos meados do século passado. A primeira vez que entrei numa sala de exibição tinha 6 anos de idade. Naquela época, década de 50, menino de calças curtas (era o tempo das calças curtas para garotos) via muito filmes americanos e chanchadas brasileiras, melodramas mexicanos, além, claro, de desenhos animados tipo Tom & Jerry. Minha formação cinematográfica inicial se dá, portanto, com o cinema de gênero made in Hollywood (os musicais inesquecíveis da Metro, os thrillers, os filmes de guerra, os épicos históricos, e, principalmente, o western, que, na definição do grande crítico francês André Bazin, é o cinema americano por excelência). O cinema brasileiro, com raras e honrosas exceções, produzia quase que somente chanchadas. Com o passar do tempo, comecei a frequentar o Clube de Cinema da Bahia, programado por um grande ensaísta da arte cinematográfica, Walter da Silveira. Foi ele quem, no seu clube, mostrou aos baianos os filmes do expressionismo alemão, do neorrealismo italiano, do realismo poético francês, da escola soviética (Eisenstein, Pudovkhin…), o cinema japonês etc. Tinha por volta de 15 anos quando percebi que o cinema, sobre ser um entretenimento, um espetáculo, era também uma expressão de arte. Fiquei impressionado com A aventura (1959), de Michelangelo Antonioni,La dolce vita, de Federico Fellini, Os 7 samurais, de Akira Kurosawa, O encouraçado Potemkin, de Eisenstein etc. Era já um adolescente cinéfilo antes de penetrar na juventude e, mais tarde, na chamada idade da razão. Há, segundo o filósofo Jean-Paul Sartre, a idade da ilusão e a idade da razão. O rito de passagem de uma a outra é problemática e varia de pessoa a pessoa. Vale ressaltar que me tornei um amante de cinema por meio autodidata. Via os filmes com interesse (os mais importantes mais de uma vez) e lia bibliografia especializada e críticas dos grandes suplementos, principalmente os do eixo Rio-São Paulo. Nasci no Rio, em 1950 (já estou me sentindo velho), mas, desde tenra idade, vim morar em Salvador, ainda que todo ano fosse passar, nas férias, um mês na Cidade Maravilhosa. Anotava, num caderno, todos os filmes que via, ficha técnica completa, cinema onde foi visto o filme, e fazia ligeiros comentários.
Meu envolvimento com o cinema se deu por uma afinidade eletiva, por uma relação de assombro e admiração ou, se se quiser, por um ato de amor à arte cinematográfica. Findo o hoje chamado segundo grau, fiz vestibular para a Faculdade de Direito, onde me formei em 1974, tornando-me um advogado sem futuro. Mas, na faculdade, fiquei responsável pela programação do seu cineclube e redigia comentários sobre os filmes exibidos que eram distribuídos na porta de entrada. Em 1974, comecei a publicar textos sobre cinema no jornal soteropolitano Tribuna da Bahia e, meses depois, fui convidado para escrever uma coluna diária que se alastrou por 20 anos até que, em 1994, passei a escrever a coluna apenas uma vez por semana. Meu envolvimento com o cinema se dá, assim, pela crítica. Mas, preguiçoso, achava que fazer um filme dava muito trabalho e, naquele tempo, não havia a facilidade do digital. Era tudo muito difícil. Mas, mesmo assim, para aprender alguma coisa, trabalhei como assistente de direção de alguns filmes baianos (Voo interrompido, 1968, de José Umberto, filme underground, do chamado Cinema Marginal), fui ator em O cisne também morre (1982), de Tuna Espinheira e realizei um Super 8 cujo título, esdrúxulo, é Pizzaria Eisenstein (1984).
Frustrado com a experiência como advogado, fui fazer Comunicação (Jornalismo) e, depois, Mestrado em Artes Visuais, cuja dissertação versou sobre cinema: Narrativa e fábula no discurso cinematográfico. Em 1979, entrei para ser professor da área de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, onde ensino até hoje disciplinas da área como Oficina em Comunicação Audiovisual, Linguagem Cinematográfica, etc. Publiquei Panorama do Cinema Baiano, em 1976, e Alexandre Robatto Filho, um pioneiro do cinema baiano, em 1992, ambos editados pela Fundação Cultural do Estado da Bahia. Estou, no prelo, com três livros, que fazem parte de Escritos sobre cinema.
De nada adiantam cursos de cinema se a pessoa não se interessar. Os cursos ajudam e podem ser proveitosos desde que o indivíduo se interesse pela coisa. O que se aplica, aliás, às demais atividades. É importante que se conheça os chamados filmes essenciais, os filmes-faróis da história do cinema, os filmes divisores de água, que contribuíram para o desenvolvimento da linguagem cinematográfica, a exemplo de O encouraçado Potemkin(1925), de Eisenstein, Ladrões de bicicleta (1948), de Vittorio De Sica (para se ter uma idéia da importância do neorrealismo italiano), Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, Hiroshima, mon amour (1959), de Alain Resnais, Morangos silvestres (1957), de Ingmar Bergman, Oito e meio (1963), de Federico Fellini, a trilogia de Michelangelo Antonioni (A aventura, A noite, O eclipse), Aurora (1927), de Murnau, La passion de Jeanne D’arc (1928), de Carl Theodor Dreyer, Acossado e O desprezo, ambos de Jean-Luc Godard, entre muitos outros. A citação se faz aqui apressada e de memória.

2) Desde o inicio já pretendia atuar profissionalmente na área? Afinal, muita gente acha isso pouco viável, excentricidade. Inclusive, ainda, atualmente.

André Setaro - Se atualmente o cinema é estudado nas universidades de todo o mundo, antes, porém, a coisa era diferente. O cinema era considerado apenas um entretenimento, um divertissement, um passatempo para os momentos de ócio. Com os estudos efetuados a partir da segunda metade do século passado, principalmente por sociólogos e comunicólogos, verificou-se que o cinema invadiu o imaginário coletivo das pessoas e, por isso, era preciso ser estudado. O cinema mudou hábitos, comportamentos, influenciou o way of life. Assim, quando comecei a escrever diariamente sobre a chamada sétima arte, a ganhar alguma coisa com isso, ainda nos anos 70, e principalmente numa velha província como Salvador, certo dia mostrei a uma tia carrancuda minha coluna impressa no jornal e ela me respondeu: “Você não tem nada para fazer, não?”. Sim, o cinema não era levado a sério profissionalmente, considerado uma utopia, uma excentricidade como você bem frisa na pergunta. Ainda hoje, o profissional da área é marginalizado, inclusive no Brasil.

3) Como cinéfilo, oque acha da qualidade do cinema nacional e sua ‘baixa valorização’ no próprio território?

André Setaro - O nó górdio do cinema brasileiro está no tripé produção-distribuição- exibição. O mercado exibidor brasileiro está completamente tomado pelas multinacionais (os complexos de cinemas Cinemark, Multiplex etc), e é muito difícil para um realizador iniciante encontrar guarida neste mercado. Se a produção de filmes nacionais passa dos 70 por ano, incentivada, principalmente pelas leis de incentivo, que gera a famigerada captação de recursos, a maioria deles, no entanto, não é exibida. O cineasta que consegue exibir seus filmes é aquele que faz parceria, na produção, com as multinacionais. O que adianta produzir um filme se ele não é exibido? A grande platéia do cinema brasileiro se encontra nos festivais que proliferam país afora. O cinema brasileiro está maduro do ponto de vista técnico, mas seus realizadores se subordinam muito ao mercado, porque precisam captar recursos e as empresas apenas se dispõem a doar recursos àqueles filmes que possuem viabilidade e exequibilidade comerciais.
Os filmes brasileiros que são exibidos em boas salas são aqueles cujos produtores entram em parceria com as multinacionais, a exemplo de Luis Carlos Barreto, Daniel Filho, Walter Salles, Cacá Diegues etc
Mas não se pode negar que tecnicamente, na última década, o filme brasileiro tem padrão internacional. Tecnicamente falando, devo ressaltar. Mas não possui a criatividade do passado, principalmente dos anos 60, quando explodiram o Cinema Novo e o Cinema Marginal (dois exemplos de obras-primas: Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, e O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla. Os cineastas não se aventuram na busca do novo por impedimento mercadológico. Na época do Cinema Novo, não havia captação, havia mais liberdade de criação.

4) Você diz que Walter da Silveira, de certa forma, foi quem apresentou os filmes internacionais que fogem ao esteriótipo de blockbusters aos soteropolitanos e, inclusive, à você. Mas e quanto as produções nacionais? Quais lhe atingiram?

André Setaro – Conheci o cinema brasileiro nos anos 50 e, nesta época, a maioria dos filmes nacionais era constituído de chanchadadas populares: comédias com Oscarito, Zé Trindade, Grande Otelo, Ankito, Mazzarropi, entre outros. Lembro-me das filas imensas que se formavam nas portas das salas exibidoras. As chanchadas se constituíram em grandes sucessos populares e, creio, foi a melhor época para o cinema brasileiro em termos de bilheteria. Mas os críticos, a maioria deles, as abominava. Foi preciso que o tempo passasse para que, décadas depois, elas viessem a ser revalorizadas, e atualmente, inclusive, são objeto até de dissertações e teses de mestrados e doutorados. Recordo-me de muitas delas: Marido de mulher boa, Mulheres à vista, O massagista de madame, O batedor de carteiras, Chico Fumaça. As melhores, contudo, eram as dirigidas por Carlos Manga, satíricas e paródicas, a exemplo de O homem do sputnick, com Oscarito, Nem Sansão nem Dalila, também com Oscarito (um gênio!) ao lado de Grande Otelo, e, também com estes, Matar ou correr (paródia do clássico western Matar ou morrer/High Noon, de Fred Zinnemann, com Gary Cooper). Gostei particularmente de De vento em pôpa, também de Manga. Se a chanchada predominava, havia também os filmes da Vera Cruz. O cangaceiro(1953), de Lima Barreto, constituiu-se num grande êxito, assim como Sinhá Moça, de Tom Payne, sobre as tentativas abolicionistas no século retrasado numa cidade de Minas Gerais. E Nelson Pereira dos Santos, a seguir o exemplo do neorrealismo italiano, plantava as sementes do Cinema Novo com seu pioneiro Rio quarenta graus (1955), seguido de Rio Zona Norte (1958). Com a decadência das chanchadas, surgiu o Cinema Novo, que acompanhei, praticamente, filme por filme, a destacar o impacto que me causou a primeira visão de Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, assim como Vidas secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos.

5) Você cita que as “chanchadas se constituíram em grandes sucessos populares” e que a maioria dos crítico as abominava. Porque você acha que algo que atinge o popular com tanto sucesso, acaba por causar essa repulsa nos que se propoem à falar sobre cinema? Afinal, isso tem certa continuidade quanto aos tempos atuais: as obras ‘meneghelianas’ e os contínuos ‘Didi e não sei lá quem mais’, atraem o grande público, mas quem realmente se considera um amante de cinema, as repudia. Sei que em volta disso está a qualidade tanto das produções, como o enredo em si, mas além disso, pode ser, de alguma forma, preconceito?

André Setaro - A crítica, principalmente na sua fase áurea, caracterizava-se pelo elitismo, a eleger os filmes que possuíam temas nobres como as expressões máximas da arte do filme ou, então, aqueles que influíam na renovação da linguagem cinematográfica (Eisenstein, Orson Welles, Godard etc) e os movimentos também de renovação (expressionismo alemão dos anos 10 e 20, a escola soviética da década de 20, a escola documentarista inglesa, o realismo poético francês, o neorrealismo italiano, a nouvelle vague francesa etc). Os filmes mais populares (à exceção de um Chaplin e poucos), ou popularescos, eram, de imediato, colocados de escanteio. Até mesmo uma boa parte do cinema made in Hollywood (e de alto nível, Billy Wilder, Vincente Minnelli, Nicholas Ray, Robert Aldrich, George Cukor…) não era considerada, excetuando-se um John Ford, um William Wyler, entre poucos. Foi preciso que o revisionismo crítico praticado pela revista francesa Cahiers du Cinema descobrisse o valor de certos cineastas americanos, dando-lhes o relevo e o status que mereciam (Howard Hawks, Alfred Hitchcock, Nicholas Ray…).
Mas se, naquela época, as chanchadas eram ridicularizadas, o passar do tempo se encarregou de pô-las em seu devido lugar. Sérgio Augusto, por exemplo, jornalista e notável crítico de cinema, publicou um livro, Este mundo é um pandeiro, no qual faz uma exegese da importância da chanchada para o cinema brasileiro. E há teses e dissertações de mestrados e doutorados que contemplam as chanchadas como seus objetos de investigação e de estudo.
Há, sim, ainda a responder o questionamento anterior, preconceito em relação ao cinema mais popular. Andrea Ormond, do site Estranho Encontro, procura, por exemplo, através de uma investigação crítica achar atributos em muitos dos filmes que foram rotulados pejorativamente de pornochanchadas. A crítica, e aqui faço uma mea culpa porque também a exerço há mais de trinta anos, é, na maioria dos casos, arrogante e dona da verdade. Tem complexo de superioridade e de autoridade. É necessário mais humildade e mais generosidade. Foi o que aprendi em seu exercício. Muitos filmes dos trapalhões são toscos e simplistas, porém há alguns mais elaborados, mas a crítica os joga na vala comum do esquecimento sem, ao menos, ter o cuidado de observar um por um. Se, por um lado, há este preconceito, como afirmei anteriormente, é o tempo o crítico supremo que irá julgar a permanência de determinadas obras cinematográficas.

6) Quanto à descoberta de o cinema como uma “expressão de arte”, e o encantamento por gênios como Kurosawa e Fellini, o que exatamente acredita que diferencia suas obras das dos demais profissionais? Pois uma vez ouvi dizer que Kurosawa “sente seus filmes enquanto outros os vêem”, e se me fosse permitido encaixar alguém mais em tal posição, incluiria Truffaut (excepcionalmente por Jules et Jim e Baisers volés).

André Setaro – Há, cara Teeh, assim é se me parece, como diria Luigi Pirandello, três espécies de cineastas: o autor, o estilista, e o artesão. O cineasta-autor possui um universo ficcional próprio e um estilo particular, pessoal, uma, por assim dizer, marca registrada. O veículo cinematográfico é um veículo para suas idéias e pensamentos, e, nos filmes de um cineasta-autor, há constantes temáticas e constantes estilísticas, isto é, um tema que perpassa todos os filmes e uma maneira muito própria de manipular a linguagem cinematográfica. Ingmar Bergman, por exemplo, cineasta-autor, utiliza-se do cinema como um conduto para o seu pensamento e a sua visão de mundo. São autores realizadores como Federico Fellini, François Truffaut, Charles Chaplin, Luchino Visconti, Pier Paolo Pasolini, Alain Resnais (para mim, o maior cineasta vivo), Akira Kurosawa, Yasujiro Ozu, Howard Haws, Hitchcock, Jean Renoir, Jean-Luc Godard, Glauber Rocha, entre muitos e muitos outros. Já o cineasta-estilista não tem um universo ficcional próprio, mas possui um estilo particular de se expressar estilisticamente, a exemplo de Steven Spielberg (o que tem a ver Parque dos dinossauros com A lista de Schinder?), John Frankenheimer, James Cameron, Sidney Lumet etc. O cineasta-artesão não tem nem universo ficcional nem estilo, mas sabe contar uma história com fluência narrativa, embora não se possa, a investigar a filmografia de um cineasta-artesão, verificar, nela, constantes temáticas nem estilísticas, pois não as possui. Em relação à sua pergunta, gosto muito de François Truffaut, principalmenteJules et Jim, que considero o seu melhor filme. Em relação a Beijos roubados/Baisers volés, considero-o simplesmente poético e encantador. De Truffaut gosto praticamente de toda a sua obra (há filmes menores, evidentemente), principalmente os citados e As duas inglêsas e o amor/Les deux anglaises et le continent, Um só pecado/Le peau douce,Os incompreendidos/Les quatre cents coups, A noite americana/La nuit americaine, et caterva. Tenho particular admiração por Jean-Luc Godard (da primeira fase: seu Acossado/A bout de souffle, 1959, é uma obra-prima) e Jacques Demy (Les parapluies de Cherbourg, Peau d’âme, Les demoiselles de Rochefort…).

7) E as semelhanças encontradas no neorrealismo italiano e o Cinema Novo? E quanto ao Cinema Marginal?

André Setaro - O neorrealismo italiano se caracterizou pelo despojamento estilístico e pela preocupação em retratar o drama do homem comum e as contradições da sociedade em que vivia. O brado “descer às ruas” de Cesare Zavattini, um dos principais teóricos e roteiristas neorrealistas, significava que os realizadores deviam abandonar os estúdios fechados para que fossem filmar in loco, isto é, nas ruas, abandonando os artifícios dos estúdios e a apreender a realidade em sua essência vital. A problemática social é um dos pontos importantes e a maneira pela qual os realizadores a colocam cinematograficamente, inclusive com a utilização de atores não-profissionais. Ao contrário do herói tradicional do cinema americano, o homem apresentado nos filmes neorrealistas é um não-herói, a diferir, também, do anti-herói da nouvelle vague, cujo maior exemplo talvez esteja no personagem de Michel Poiccard interpretado por Jean-Paul Belmondo em Acossado (A bout de souffle, 1959), de Jean-Luc Godard.
O Cinema Novo também tinha os mesmos pressupostos básicos do neorrealismo: abordagem do drama do homem brasileiro, as contradições de uma sociedade injusta e desigual, filmagens in loco etc. Como exemplo pode ser citado Rio 40 graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos. Vários dos filmes do Cinema Novo são exemplos desses pressupostos: Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, Os fuzis (1963), de Ruy Guerra. Já o Cinema Marginal não tem tais pressupostos. É um cinema anárquico, quase autodestrutivo, que experimenta muito a linguagem cinematográfica, um cinema que proclama o caos e pergunta pela saída de uma situação aparentemente fechada. Veja O bandido da luz vermelha (1968), de Rogério Sganzerla, O anjo nasceu (1970), de Júlio Bressane, Meteorango Kid, o herói integalático (1969), de André Luiz Oliveira etc.