Un chien andalou (1928), de Luis Buñuel e Salvador Dali
O cineasta, quando realiza um filme,
traduz o real, e, no cinema, há, basicamente, quatro modos de representação da
realidade: (1) o realismo e suas variadas vertentes (neo-realismo, realismo
poético, realismo socialista...); (2) o idealismo (também conhecido como
intimismo cujo apogeu se dá com a idade de ouro do cinema americano – anos 30 e
40); (3) o expressionismo (Alemanha nos anos 10 e 20); e (4) o surrealismo, que
tem em Luis Buñuel
a sua maior expressão. O grande público está mais acostumado com o realismo e o
intimismo. Um filme surrealista sempre deixa nele uma impressão de confusão,
pois habituado a ver tudo mastigado, com uma explicação racional e lógica para
as artimanhas do enredo. Vamos ver aqui em rápidas pinceladas o que vem a ser o
surrealismo no cinema.
O surrealismo parte de uma atitude
revolucionária em filosofia, cujo verdadeiro objetivo não consistiria em
interpretar o mundo, mas, sim, em transformá-lo. Na forma exposta por seu principal
animador, André Breton, o surrealismo revela forte influência do materialismo
dialético, dele retirando sua “lógica da totalidade”. Assim como o sistema
social constitui um todo e nenhuma de suas partes pode ser compreendida
separadamente, a arte não deve ser o reflexo de uma parcela de nossa
experiência mental (a parcela consciente), mas uma síntese de todos os aspectos
de nossa existência, especialmente daqueles que são mais contraditórios.
O surrealismo tenciona apresentar a realidade interior e a
realidade exterior como dois elementos em processo de unificação, e nisto está
sua capacidade de passar do estático para o dinâmico, de um sistema de lógica a
um modo de ação, o que é uma característica da dialética marxista. O cinema se
revelou como o instrumento ideal para a conquista da supra-realidade, pois a
câmera é capaz de fundir vida e sonho, o presente e o passado se unificam e
deixam de ser contraditórios, as trucagens podem abolir as leis físicas, etc.
Quando Buñuel apresentou, em Paris ,O Anjo Exterminador (1961), o exibidor lhe solicitou que
escrevesse alguma coisa para colocar na porta da sala de exibição. Buñuel
rabiscou o seguinte: “A única explicação racional e lógica que tem este filme é
que ele não tem nenhuma”. Noutra ocasião, ao ganhar o Leão de Ouro de Veneza
por A Bela da Tarde (Belle de Jour, 1966), lhe
perguntaram o significado da caixinha de música que um japonês carrega quando
no quarto com Catherine Deneuve. O cineasta respondeu que não sabia. Assim, o
espectador não pode racionalizar dentro de determinada lógica nos filmes
surrealistas. É claro que os significados existem, amplos, dissonantes e
insólitos. E por que os convidados aristocráticos de O Anjo Exterminador, ainda que
não haja nenhum obstáculo que lhes impeçam de sair, não conseguem evadir-se da
mansão? Um recurso surreal para a análise da condição humana, um laboratório criado para se investigar pessoas
numa situação-limite.
Excetuando-se alguns ensaios vanguardistas e sua fugidia
presença em comédias de Buster Keaton, Jerry Lewis, Jim Carrey, em filmes de
Carlos Saura (Mamãe Faz Cem
Anos, etc), Jean Cocteau (O
Sangue de um Poeta/Le sang d’un poete), entre poucos outros, o surrealismo
cinematográfico está inteiramente contido emUn Chien Andalou (1928) e L’Age D’Or (1930), ambos do espanhol Luis Buñuel,
com colaboração de Salvador Dali. A cena inicial do primeiro é famosíssima: o
próprio Buñuel, após contemplar uma enorme lua prateada no céu, afia uma
navalha e corta pelo meio o globo ocular de uma mulher que está sentada. No segundo,
vemos um cão ser arremessado pelos ares, uma vaca deitada sobre a cama, um
bispo e uma árvore em chamas sendo despejados por uma janela, situações de
delírio erótico, baratas numa mão que toca pianola, etc.
A
ambigüidade do termo surrealismo pode sugerir transcendência, predomínio da
imaginação sobre a realidade. Seria pura imaginação de Séverine sua ida ao
bordel todas as tardes? A rigor, isso não importa, A significação é mais ampla, conecta-se mais ao discurso do modo de tradução do real. O surrealismo
pretendia um automatismo psíquico que expressasse o funcionamento real do
pensamento. Você, caro leitor, às vezes não tem pensamentos indesejáveis? É o
inconsciente. Assim, e isto é muito importante, o domínio do surrealismo é o
que acontece na mente humana antes que o raciocínio possa exercer qualquer
controle. O papa surreal André Breton dormia com um caderno em cima do criado
mudo para anotar os seus sonhos, chamando, tal comportamento, de escrita automática.
O automatismo provocado pelo
surrealismo implica numa transfiguração anárquica do mundo objetivo, cujo
efeito imediato é o riso. Mas o humor, aqui, é uma nova ética destinada a
sacudir o jugo da hipocrisia. E o sonho é encarado como uma revelação do
espírito, sendo afirmada a sua riqueza sob o duplo ângulo da psicologia e da
metafísica. Para chegar à consciência integral de si próprio, o homem tem de
decifrar o mundo do sonho, pois deixá-lo na obscuridade representa uma
mutilação do nosso ser.
Un Chien Andalou e L’Âge
d’Or procuravam, pois, o
homem integral, “buscando a recuperação total de nossa força psíquica por um
meio que representa a vertiginosa descida para dentro de nós mesmos, a
sistemática iluminação de zonas ocultas”, como consta do manifesto de Breton.
Neles têm um papel saliente o grotesco, o cruel, o absurdo, tudo com um sentido
de revolta e solapamento.
Segundo Breton, qualquer divisão
arbitrária da personalidade humana é uma preferência idealista. Se o propósito
é o conhecimento da realidade, devemos incluir nela todos os aspectos de nossa
experiência, mesmo os elementos da vida subconsciente. Essa é a pretensão do
surrealismo, movimento artístico que abrangeu além da pintura, escultura e
cinema, também a prosa, a poesia, e até a política e a filosofia.
|
Um comentário:
Agradou-me a sua abordagem elucidativa sobre um tema tão complexo como o surrealismo. Eu tenho uma admiração especial por filmes com esse teor, até por isso um dos meus cineastas prediletos é David Lynch, cuja maioria dos filmes possui o cerne no onírico.
Ontem tive a oportunidade de ver "Gritos e Sussurros" de Ingmar Bergman, não sei se você já o assistiu, mas se houver visto, eu gostaria de saber se ele se encaixa no perfil do surrealismo? Aliás, Bergman é um cineasta adepto desse movimento também certo?
http://omundoemcenas.blogspot.com.br/
Abraço
Postar um comentário