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19 fevereiro 2014

Desimportância dos cineclubes

Mel Ferrer e Ingrid Bergman em As estranhas coisas de Paris (Elena et les homme), de Jean Tenoir
Com o advento do VHS, do laser-disc, do DVD, e, agora, com a possibilidade de se baixar quase tudo da internet, a pergunta que se quer fazer é a seguinte: ainda haveria condições de ser ter um clube de cinema nos moldes do de Walter da Silveira nas décadas de 50 e 60?

Naquela época, difícil era ver certos filmes, que ficavam restritos às cinematecas. O mercado exibidor se restringia aos lançamentos e as constantes reprises de filmes de sucesso. Como, no período que antecedeu o surgimento dos novos suportes, assistir aos filmes neo-realistas, aos do expressionismo alemão, às obras mais independentes de cinematografias desconhecidas, às obras do realismo poético francês, à vanguarda da estética da arte muda? O único jeito era a viagem e, assim mesmo, o mais certo seria ao exterior, às cinematecas de Nova York ou a de Paris, além de outras importantes da Europa. Aqui no Brasil, existiam, mas ainda incipientes, as cinematecas do Rio e de São Paulo (esta com um acervo mais versátil). Salvador não tinha nenhuma possibilidade de constituir uma cinemateca.

A importância de Walter da Silveira (que boa parte da nova geração não sabe de quem se trata, apesar de nome de sala alternativa nos Barris) foi justamente a de, com a fundação do Clube de Cinema da Bahia, trazer filmes especiais, essenciais na evolução da linguagem e da estética cinematográficas. Walter da Silveira fez ver, aos baianos de província (mas uma província muito agradável bem diferente da cidade engarrafada de hoje), que o cinema, além de um bom divertimento, era, também, a expressão de uma arte. O próprio Glauber Rocha, quando de sua morte, em novembro de 1970, em artigo para o Jornal da Bahia, confessa que o ensaísta fora seu grande mestre, que aprendeu a ver cinema através das palavras de Walter da Silveira. E conta, num artigo, o esporo que este lhe deu, quando, numa exibição de "O encouraçado Potemkin", numa sessão matutina no cinema Liceu, conversava durante a exibição com um amigo. Walter, percebendo o "arruído", deu-lhe tremendo esporo, segundo palavras do próprio Glauber que, conta, nunca mais falou durante a projeção de um filme, tal a indignação do mestre diante do jovem tagarela.

Atualmente, no entanto, com a facilidade existente, pode-se ver um raro filme antigo, a exemplo de "Ordet" (1941), de Carl Theodor Dreyer, famoso cineasta dinamarquês, em boa cópia em DVD. Este filme, há poucos anos, somente seria possível ser contemplado na cinemateca de Henry Langlois, em Paris. Outro dia, vim saber, que um conhecido baixou da internet, em cópia decente e legendada, 
As estranhas coisas de Paris (Elena et les hommes, 1956), com a bela Ingrid Bergman e Jean Marais, filme difícil de se ver (nunca passa na televisão e não tem no disquinho).

Há dois anos, tentou-se implantar um cineclube na Faculdade de Comunicação. Com excelente programação. Retrospectivas de Kubrick, Buñuel, etc. Mas os alunos antes de entrar perguntavam se os filmes estavam disponíveis em DVD. E davam meia-volta, volver.

Já se contou aqui que este colunista, uma vez no Rio, ao saber da exibição de Ladrões de bicicleta na Cinemateca do Museu de Arte Moderna, em única sessão, ainda que mal tivesse chegado à cidade, correu para lá. Finda a exibição, chuva torrencial fê-lo ficar encharcado e voltar a pé para o hotel (a cidade engarrafada, tudo parado). Nos tempos atuais, faria o mesmo sacrifício? Claro que não, pois o DVD de Ladri di biciclette está disponível não somente para ser adquirido, mas também nas melhores locadoras da cidade.

Qual a função do cineclubismo nos dias atuais? Walter da Silveira, por exemplo, sobre ser um dos maiores ensaístas de cinema do Brasil (na Bahia ninguém nunca lhe chegou perto), era um homem, verdade se diga, à antiga, de tom grave, circunspeto, com uma gestualística bem diversa da juventude atual e, mesmo, dos menos jovens que atualmente constituem o meio circundante e intelectual, universitário. A figura de Walter faz lembrar aqueles antigos mestres universitários, principalmente os professores da Faculdade de Direito (no acento vocal, nas pausas, na maneira de expor o assunto, um "magister dixit").

A importância do cinema, antes tido como mero entretenimento, foi reconhecida pelas universidades, que incorporaram o seu ensino na maioria delas espalhadas pelo mundo. Porque se constatou que o imaginário do homem do século XX foi completamente contaminado pelas imagens em movimento, que interferiram no seu comportamento, na sua maneira de ser, nos hábitos e costumes. O cinema tem uma força de convencimento que ultrapassa as demais artes. Não é exagero se dizer que muitas pessoas se formaram através da visão de filmes. O cineclubismo, para isso, exerceu, sem dúvida, forte influência. Mas a indústria cultural hollywoodiano se, antes, tinha uma produção média notável, atualmente se restringe, honradas as exceções de praxe, aos efeitos especiais e, agora, à Terceira Dimensão como o “Avatar” do futuro do cinema, perdendo este o seu humanismo e a possibilidade de veículo de expressão, de idéias, de visão de mundo.

Mas acontece que o mundo mudou e, com ele, a cultura. Houve um papel importantíssimo exercido por Walter da Silveira. Os realizadores que se aventuram na captação das imagens em movimento são contemporâneos de um cinema digital. Filmes são feitos até pelos telefones celulares. O Clube de Cinema da Bahia, portanto, não poderia existir - nem teria razão de ser - nesta chamada contemporaneidade. A própria psicologia de recepção da obra cinematográfica mudou. Bem, são reflexões ao acaso.

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