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17 setembro 2013

A angústia da influência

Revendo a cópia restaurada de A Marca da Maldade (Touch of Evil, 1958), de Orson Welles, e, logo depois, Psicose (Psycho, 1960), de Alfred Hitchcock, percebi a influência do primeiro sobre o segundo, dois grandes filmes da história da sétima arte. Patente, entretanto, que o motel vagabundo de beira de estrada no qual Janet Leigh fica trancafiada em A marca da Maldade se assemelha muito ao motel de Norman Bates em Psicose. E, além do mais, a atriz é a mesma: Janet Leigh. Fica-se com a impressão de que Hitchcock convidou Janet depois que a viu na fita de Welles. Os efeitos de iluminação também são parecidos, concluindo-se que Robert Burks, iluminador de Psycho, pediu emprestada a inspiração de Russell Metty, o diretor de fotografia que trabalhou com Orson Welles.

Assim, vê-se que, no cinema, como também nas outras artes, uma coisa influencia a outra sem, contudo, tirar o mérito de seus artistas. Há o caso da cópia descarada, do plágio indefensável, mas outra história. Os grandes filmes, aqueles chamados divisores de água, exercem influência notória sobre toda uma geração. Nota-se, por exemplo, influência do expressionismo alemão, principalmente de Murnau, em Hitchcock. Basta lembrar a sua inclinação para filmar em câmera alta quando de momentos de tensão (os telhados e os personagens minúsculos em Um Corpo que Cai e Ladrão de Casaca...) ou o telão pintado no fim de Marnie - Confissões de uma Ladra, onde se percebe claramente o porto, o navio, em suma, o fundo do cenário se apresenta como uma pintura, e o cineasta o deixa bem à vista na sua “irrealidade”.

Este cinema de mise-en-scène, que aos poucos está se acabando com o estabelecimento da estética do videoclipe, é que consolidou muitos monstros sagrados da história das imagens em movimento. A sequência da morte de Akim Tamiroff no quarto de hotel onde está drogada, e na cama, Janet Leigh, em A Marca da Maldade só tem uma palavra: é genial. E se esta é genial, o que dizer da sequência - sem cortes - de abertura na fronteira entre o México e os Estados Unidos? É de tirar o fôlego! Um plano-sequência admirável, talvez o mais impactante de toda a história. A revisão dessa obra-prima wellesiana é reconfortante e importante para se poder compreender melhor o cinema contemporâneo. Há necessidade de uma base referencial sem a qual fica impossível o entendimento do cinema que hoje se pratica. Um filme como A Marca da Maldade é um referencial fundamental, assim como Acossado, de Jean-Luc Godard, Cidadão Kane, do mesmo Welles, O ano passado em Marienbad e Hiroshima, mon amour, ambos de Alain Resnais, A morte num beijo, de Robert Aldrich, assim como tantos outros.

O ensaísta e professor americano Harold Bloom em A Angústia da Influência (ou mesmo em O Cânone Ocidental) considera que todo escritor possui o que ele chama de “angústia da influência”, isto é: todo escritor (e se pode, por extensão, também considerar o realizador cinematográfico, assim como o pintor, o músico etc) sempre está influenciado, no seu processo de criação, pelo que se escreveu antes dele ou por aquilo que ele leu e depositou em seu inconsciente as coisas lidas e admiradas. Bloom tem a opinião de que tudo, mas tudo mesmo, que se escreveu no ocidente está relacionado a Hamlet, de William Shakespeare, o grande arquetípico da literatura ocidental. Tudo que se escreveu vem em decorrência dos arquétipos hamletianos.

E o cinema contemporâneo está completamente contaminado pelas influências pretéritas. A época dos grandes inventores de fórmulas já acabou em meados dos anos 60 com O ano passado em Marienbad (1961), do grande Resnais que nos premiou, há alguns poucos anos, com o magnífico e extremamente cinematográfico e inventivo As Ervas Daninhas (Les Herbes Folles),  ou, para alguns, Persona (1966), de Ingmar Bergman

Esgotava a invenção de fórmulas, a partir dos anos 70 – e mesmo em fins dos 60 – os cineastas começaram a revisitar gêneros e a fazer alusões aos filmes do pretérito. Entrou-se, segundo os estudiosos do assunto, na fase do pós-moderno. O fato de Hitchcock ter se inspirado em A Marca da Maldade, de Orson Welles, não se constitui em nenhum demérito para o artista que ele foi. Sofreu da “angústia da influência bloominiana”.

Como gostava de dizer o crítico José Lino Grunewald, "cinema se aprende indo ao cinema". É um processo acumulativo cujo tempo se encarrega de embasar o cinéfilo. Com o advento do DVD ficou, agora, mais fácil se estudar os realizadores, sentir de perto a sua genialidade sem aquela espera de antigamente, quando o que se podia ver ficava ao sabor dos lançamentos nos cinemas.

Um comentário:

Jorge Duete disse...

Oi, André. Concordo com o senhor, são dois filmaços. Quanto à influência de um filme sobre o outro, penso que independente dela, o que importa é a habilidade e conhecimento do diretor para transformar muitas vezes uma história banal num exercício de arte. E tanto Welles quanto Hitchcock são sublimes. O melhor e mais belo filme de Welles pra mim é "O Estranho" (1946).