Bernardo Bertolucci em Os
sonhadores (The dreamers, 2003)
evoca a ebulição de Maio de 1968, e o filme tem sua ação localizada neste
período, a começar um pouco antes, em fevereiro, quando da demissão de Henri
Langlois da Cinemateca Francesa, que veio a provocar intensos protestos da
intelectualidade com repercussão internacional. Bertolucci mostra (recriando
ficcionalmente) o barulho provocado pelo afastamento do grande pesquisador,
cujo responsável foi André Malraux, ministro da Cultura do General De Gaulle,
autor do ato demissionário.
François Truffaut considera que Maio de 68
tem início em fevereiro com as manifestações pela readmissão do célebre
pesquisador-arqueólogo de filmes. Em Beijos roubados (Baisers volés), filmado em março deste
ano, a primeira imagem apresenta a porta da Cinemateca, no Palácio de Chaillot,
fechada, e o filme é dedicado a Henri Langlois.
Se em The
dreamers há a evocação da época através do recuerdo ficcional,
o espírito da juventude "Maio de 68" está bem captada em uma obra do
ano anterior, 1967, de Jean-Luc Godard, A chinesa (La chinoise), e se poderia também
incluir, nestes registros, um outro filme do cineasta: Week-end à
francesa, também de 1967. Godard fazia um filme atrás do outro.
A pesquisadora e historiadora de cinema
Ivana Bentes coloca bem a questão em artigo para a Folha de São Paulo: "É
que tudo o que virou 'História' em Bertolucci em A chinesa é a matéria mesma
do filme-acontecimento, do filme-panfleto de Godard, com demonstrações em
quadro-negro, fórmulas visuais, palavras de ordem e signos em rotação. Um filme
pop-revolucionário cravado no dorso do presente. Um filme que afirma e põe em
cena os discursos a quente: maoísmo, marxismo-leninismo, anarquismo,
situacionismo, terrorismo, cinefilismo. Filme-aparelho que nos captura e de
onde saímos exaustos e confusos, nunca "bem informados" ou
satisfeitos com o saber adquirido.
A satisfação em Godard é essa experiência
de estranhamento e polifonia. Mao Tsé-tung transformado em jingle, "Mao,
Mao". Juliet Berto fantasiada de chinesa diante do tigre da Esso, o rosto
pintado como os soldados do Vietnã bombardeando florestas com um napalm
imaginário. O discurso é arma, livros, cartazes, grafite, slogans, manchetes de
jornais, a fulguração de um pop político. Sartre e Marx decorando paredes,
fragmentos de Althusser declamados como poemas, quebra-cabeças filosóficos,
jogos agressivos, sátiras ao Partido Comunista Francês, teatro e
agit-prop".
Obra que focaliza a absorção do pensamento
de Mao Tsé-Tung como consumismo intelectual pelos jovens franceses, La chinoise se passa quase todo dentro
de um apartamento, espaço de reflexão e treinamento de maoístas. Veronique
(Anne Wiazemsky, a companheira do cineasta depois que ele se separou de Anna
Karina, musa de seus filmes), o ator Guillaume (Jean-Pierre Léaud, alter
ego de Truffaut nas obras dedicadas ao personagem de Antoine Doinel, a
exemplo de Baisers volés, Domicílio conjugal e, principalmente Os
incompreendidos/Le quatre-cent
coups, que, juntamente com Acossado/A bout de souffle, de Godard, detonou a Nouvelle Vague), o
economista Henri (Michel Semeniako), o pintor Kirilov (Lex De Bruijn), e a
prostituta Yvonne (Juliet Berto, que teve um caso com Glauber Rocha e trabalhou
em Claro, que realizou durante o seu exílio italiano nos anos 70),
repartem um apartamento e ali aplicam as idéias revolucionárias de
Mao-Tsé-Tung.
Em La
chinoise, a partir do estabelecimento dos jovens no apartamento, Jean-Luc
Godard procura discutir uma causa política, a pôr em pauta a ação, os vícios e
os diálogos dos chamados "aprendizes de esquerda", uma parte muito
festiva da juventude francesa que se aplica aos ensinamentos de Mao e de sua
Revolução Cultural.
Pode-se ver nestes jovens - e a visão de
Godard é ácida e crítica - aqueles que um ano depois estariam nas ruas de Paris
nas grandes manifestações do celebrado Maio de 68.
Godard não poupa seus estudantes e há,
evidente, um propósito claro em condenar a pressa e a fragilidade com que as
opiniões se formam para uma militância política discrepante. O cineasta de
"Acossado" faz emergir o debate, apressado, sectário, na superfície
das questões ideológicas propostas.
Enclausurados no apartamento, Veronique,
por exemplo, planeja o assassinato de um líder universitário, enquanto Henri,
ao defender a coexistência pacífica, é expulso do grupo, e, em conseqüência,
desiludido, Kirilov se suicida. Mas Veronique concretiza seu plano, o de matar
o líder universitário. Quando as férias terminam, e o apartamento, alugado, é
entregue a seus donos, todos partem para seus afazeres habituais, e Veronique,
como se nada tivesse acontecido, volta, tranquilamente, às aulas.
A chinesa é um filme
emblemático de Maio de 1968 e uma das obras mais importantes de Godard que,
atualmente, cresceu com o passar do tempo. Se, na época, era um registro dos
espíritos indômitos da juventude francesa, atualmente o filme é um testemunho
de sua vacuidade. Num momento em que se comemora com tanto alarde a
efervescência francesa do período, A chinesa pode servir como
documento de uma época, da necessidade e da urgência de uma atitude, de se ser
um enragé. Se havia um fulgor contestatório oportuno, por outro
lado, muitos entraram na "onda" para se distrair. A fábula godardiana
sobre o "treinamento" de maoístas, para passar o tempo de suas férias
escolares, é exemplar nesse sentido. Não há, porém, cópias do filmes que
estejam disponíveis em DVD ou em celuloide. É um filme que precisa ser
resgatado.
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