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19 março 2013

"Cascalho": um cinema impregnado de povo e de brasilidade


Othon Bastos em Cascalho, de Tuna Espinheira

            Cascalho, do velho Tunático, faz parte dos filmes baianos produzidos na auspiciosa primeira década do Terceiro Milênio. Pronto em 2004, Tuna Espinheira passou por uma verdadeira via crucis para poder terminá-lo com o som Dolby exigido pelas salas exibidoras comerciais. O filme, afinal, foi lançado no Iguatemi em 2008. Alguns circuitos, que se dizem promotores do cinema baiano, recusaram-no.  Mas ficou uma semana inteira numa sala Multiplex (Iguatemi) e, na sua avant-première, foi muito aplaudido. Depois foi exibido na Sala Walter da Silveira e aqui e alhures. Vi-o recentemente no Canal Brasil. Publico aqui uma análise de Narlan Matos, doutor em literatura brasileira pela Universidade de Illinois. Já se encontra, desde alguns anos, disponível em DVD.

Vi Cascalho, de Tuna Espinheira, pela primeira vez, há alguns anos, numa noite de rigoroso inverno em Illinois, com uma neve grossa caindo. Conhecia bem o romance no qual se baseou o filme e, em dúvida, é um marco no romanceiro latino-americano moderno, traduzido na antiga Tchecoslováquia, Romênia, Itália, Japão, Coréia, Polônia e impresso também em Portugal. Como disse Sérgio Milliet: “Não mais hesitei, a partir desse momento, em classificar Cascalho de primeiro grande romance da região diamantífera. Vinha ele completar o quadro realista do colonialismo econômico brasileiro e, tal qual os romances da cana e do cacau, os da seca e do cangaço, de José Lins do Rego, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, confirmava, acentuando-se, as cores negras dos demais painéis”. Assim como a tradução de um livro pode tirar o noves fora do próprio livro, ver um filme de sua pátria no exterior, pode, também, tirar o noves fora da mesmo. Vejo dezenas de filmes feitos no Brasil que, salvo o idioma, em nada me aproximam da realidade do povo brasileiro. Filmes feitos no Brasil, existem aos borbotões, filmes brasileiros, não. Cascalho é um deles: uma rara expressão de brasilidade e de cinema brasileiro.

E foram meses até que eu assistisse Cascalho, de Tuna Espinheira, pela segunda vez.  Àquela altura, não queria acreditar no que havia visto. Fui compelido a rever Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha; Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e São Bernardo, de León Hirshman – estes dois últimos, romances de Graciliano Ramos admiravelmente adaptados para o cinema. Cascalho, de Tuna Espinheira, é herdeiro e dá continuidade àquela tradição grandiloqüente, todavia, adicionando à mesma uma nova paisagem: a das Lavras Diamantinas, suja de glória e de sangue diamantino. Há várias intersecções entre estes filmes citados em termos de estética: os contrates barrocos de claro e escuro muito bem utilizados pelo diretor de fotografia;  a tradição naturalista, exibindo os aspectos animalescos do comportamento de homens embrutecidos por uma realidade brutal, etc.

Boa parte do cinema feito no Brasil – não confundir com cinema brasileiro -, parece haver sucumbido ante os trejeitos da teledramaturgia contemporânea, resultando em expressões menores. Cascalho desafiou tudo isto e não poderia existir. Mas existe. “Será que o cinema barroco brasileiro está de volta?” Pensava. Não esperava que algum diretor, a esta altura, tivesse a coragem, o talento e o atrevimento de retomar a tradição do cinema brasileiro, hoje reduzida a um mero assopro romântico de uma juventude quixotesca.

Sem dúvida, Cascalho pertence à plêiade do cinema maior. E sou forçado a me desculpar por estar utilizando de categorias estéticas já desautorizadas pela crítica da pós-modernidade quando, no início da década de 1960, aboliu as categorias de “belo”, ou de “bom gosto” por questões óbvias de relevância arttica. No entanto, como doutor especializado em pós-modernidade, devo dizer que, hoje, é tão necessário restituir o direito daquelas categorias de existirem quanto era necessário destituí-las nos anos 60 – e pelas mesmas razões. Cascalho era um olhar para dentro do Brasil. Chegou impregnado de Brasil, representado pela beleza dramática das Lavras Diamantinas, construída sobre os ombros do diamante e das vidas empenhadas de graça naquela empreita épica. Ademais, a questão do garimpo é atualíssima no Brasil e, certamente, ainda dará muito a se saber. Esse olhar para dentro do Brasil foi reforçado por um elenco ‘brasileiro’. Tenho ignorado, sumariamente, filmes brasileiros com gente de cara ‘redonda’, ‘bonita”, que resulta em algo muito diferente do povo brasileiro que vemos nas ruas das cidades ou nos rincões do Brasil. Nosso povo é barroco por natureza. Um povo com uma beleza exuberante, estranhamente bela, mas nada “clássica”. Diante de certos filmes, chego a me perguntar se foram feitos no Brasil ou na Europa. Somos o anti-povo e essa é nossa grande contribuição à exaurida coleção dos povos. Somos um povo com um forte odor de povo – o mesmo que sentimos quando adamos de ônibus ou nos estádios de futebol. Querer imprimir ao cinema brasileiro os chavões estéticos típicos dos filmes franceses ou italianos – ou mesmo de Holywood - é negá-lo. A perversa Globalização vem combatendo com afinco qualquer possibildiade de expressão de identidades locais.

Assim, Cascalho me comoveu sobremaneira. O cinema brasileiro também não deveria caber dentro de enquadramento nenhum. A cinematografia atual brasileira – e Walter Sales é uma das poucas exceções -, embarcou de cabeça na idéia do cinema urbanóide, tendo como justificativa uma errônea interpretação da pós-modernidade e do próprio conceito de civilização. Acham que a melhor representação do Brasil – sobretudo para o estrangeiro -está nesta linguagem plasmada dentro do perímetro urbano de uma metrópole. Não vejo problemas em filmes urbanos, mas a partir do momento em que isso passa a ser uma regra ou mesmo uma exigência, passa a ser uma prática ultrapassada e reacionária. Fugindo a esta “escola”, a Argentina tem produzido a melhor cinematografia da América Latina hoje, extamente por se situar num outro patamar estético.  A pós-modernidade levou a experiência da “cidade” às últimas consequências e, por isso mesmo, a exauriu – embora a grande maioria dos filmes sejam indiferentes a isto.

Iniciei este breve artigo citando que Sérgio Milliet havia identificado que o romance Cascalho, de Herberto Sales, inaugurou um novo ciclo dentro do romance moderno brasileiro, dando continuidade à tradição iniciada por Jorge Amado, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos, dentre outros, e quero cconcluir dizendo que o filme Cascalho, de Tuna Espinheira,  inaugura um novo ciclo dentro do Cinema da Retomada: que chamei de ‘ciclo do diamante’, mas que, na verdade, se caracteriza pelo cinema maior em si, narrando a saga de um povo. Situaando-se no mesmo patamar que Tenda dos Milagres, de Nelson Pereira dos Santos na inclusão de gentes do povo no elenco para representarem sua própria saga, a saga do povo brasileiro.

Não resta dúvida que Cascalho, de Tuna Espinheira, é um novo diamante na cinematografia brasileira.


Narlan Matos é poeta e doutor em literatura brasileira pela University of Illinois at Urbana Champaign.



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