Othon Bastos em Cascalho, de Tuna Espinheira
Cascalho, do velho Tunático, faz parte dos filmes baianos produzidos na auspiciosa primeira década do Terceiro Milênio. Pronto em 2004, Tuna Espinheira passou por uma verdadeira via crucis para poder terminá-lo com o som Dolby exigido pelas salas exibidoras comerciais. O filme, afinal, foi lançado no Iguatemi em 2008. Alguns circuitos, que se dizem promotores do cinema baiano, recusaram-no. Mas ficou uma semana inteira numa sala Multiplex (Iguatemi) e, na sua avant-première, foi muito aplaudido. Depois foi exibido na Sala Walter da Silveira e aqui e alhures. Vi-o recentemente no Canal Brasil. Publico aqui uma análise de Narlan Matos, doutor em literatura brasileira pela Universidade de Illinois. Já se encontra, desde alguns anos, disponível em DVD.
Vi Cascalho,
de Tuna Espinheira, pela primeira vez, há alguns anos, numa noite de rigoroso
inverno em Illinois, com uma neve grossa caindo. Conhecia bem o romance no qual
se baseou o filme e, em dúvida, é um marco no romanceiro latino-americano
moderno, traduzido na antiga Tchecoslováquia, Romênia, Itália, Japão, Coréia,
Polônia e impresso também em Portugal. Como disse Sérgio Milliet: “Não mais
hesitei, a partir desse momento, em classificar Cascalho de primeiro grande romance da região diamantífera. Vinha
ele completar o quadro realista do colonialismo econômico brasileiro e, tal
qual os romances da cana e do cacau, os da seca e do cangaço, de José Lins do
Rego, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, confirmava, acentuando-se, as cores
negras dos demais painéis”. Assim como a tradução de um livro pode tirar o
noves fora do próprio livro, ver um filme de sua pátria no exterior, pode, também,
tirar o noves fora da mesmo. Vejo dezenas de filmes feitos no Brasil que, salvo
o idioma, em nada me aproximam da realidade do povo brasileiro. Filmes feitos
no Brasil, existem aos borbotões, filmes brasileiros, não. Cascalho é um deles: uma rara expressão de brasilidade e de cinema
brasileiro.
E foram meses até que eu assistisse Cascalho, de Tuna Espinheira, pela
segunda vez. Àquela altura, não queria acreditar
no que havia visto. Fui compelido a rever Deus
e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha; Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e São Bernardo, de León
Hirshman – estes dois últimos, romances de Graciliano Ramos admiravelmente
adaptados para o cinema. Cascalho, de
Tuna Espinheira, é herdeiro e dá continuidade àquela tradição grandiloqüente,
todavia, adicionando à mesma uma nova paisagem: a das Lavras Diamantinas, suja
de glória e de sangue diamantino. Há várias intersecções entre estes filmes
citados em termos de estética: os contrates barrocos de claro e escuro muito
bem utilizados pelo diretor de fotografia;
a tradição naturalista, exibindo os aspectos animalescos do
comportamento de homens embrutecidos por uma realidade brutal, etc.
Boa parte do cinema feito no Brasil – não
confundir com cinema brasileiro -, parece haver sucumbido ante os trejeitos da
teledramaturgia contemporânea, resultando em expressões menores. Cascalho desafiou tudo isto e não
poderia existir. Mas existe. “Será que o cinema barroco brasileiro está de
volta?” Pensava. Não esperava que algum diretor, a esta altura, tivesse a
coragem, o talento e o atrevimento de retomar a tradição do cinema brasileiro, hoje reduzida a um
mero assopro romântico de uma juventude quixotesca.
Sem dúvida, Cascalho
pertence à plêiade do cinema maior. E sou forçado a me desculpar por estar
utilizando de categorias estéticas já desautorizadas pela crítica da pós-modernidade
quando, no início da década de 1960, aboliu as categorias de “belo”, ou de “bom
gosto” por questões óbvias de relevância arttica. No entanto, como doutor
especializado em pós-modernidade, devo dizer que, hoje, é tão necessário restituir
o direito daquelas categorias de existirem quanto era necessário destituí-las
nos anos 60 – e pelas mesmas razões. Cascalho
era um olhar para dentro do Brasil. Chegou impregnado de Brasil, representado
pela beleza dramática das Lavras Diamantinas, construída sobre os ombros do
diamante e das vidas empenhadas de graça naquela empreita épica. Ademais, a
questão do garimpo é atualíssima no Brasil e, certamente, ainda dará muito a se
saber. Esse olhar para dentro do Brasil foi reforçado por um elenco
‘brasileiro’. Tenho ignorado, sumariamente, filmes brasileiros com gente de
cara ‘redonda’, ‘bonita”, que resulta em algo muito diferente do povo
brasileiro que vemos nas ruas das cidades ou nos rincões do Brasil. Nosso povo
é barroco por natureza. Um povo com uma beleza exuberante, estranhamente bela,
mas nada “clássica”. Diante de certos filmes, chego a me perguntar se foram
feitos no Brasil ou na Europa. Somos o anti-povo e essa é nossa grande
contribuição à exaurida coleção dos povos. Somos um povo com um forte odor de
povo – o mesmo que sentimos quando adamos de ônibus ou nos estádios de futebol.
Querer imprimir ao cinema brasileiro os chavões estéticos típicos dos filmes
franceses ou italianos – ou mesmo de Holywood - é negá-lo. A perversa
Globalização vem combatendo com afinco qualquer possibildiade de expressão de
identidades locais.
Assim, Cascalho
me comoveu sobremaneira. O cinema brasileiro também não deveria caber dentro de
enquadramento nenhum. A cinematografia atual brasileira – e Walter Sales é uma
das poucas exceções -, embarcou de cabeça na idéia do cinema urbanóide, tendo
como justificativa uma errônea interpretação da pós-modernidade e do próprio
conceito de civilização. Acham que a melhor representação do Brasil – sobretudo
para o estrangeiro -está nesta linguagem plasmada dentro do perímetro urbano de
uma metrópole. Não vejo problemas em filmes urbanos, mas a partir do momento em
que isso passa a ser uma regra ou mesmo uma exigência, passa a ser uma prática
ultrapassada e reacionária. Fugindo a esta “escola”, a Argentina tem produzido
a melhor cinematografia da América Latina hoje, extamente por se situar num
outro patamar estético. A
pós-modernidade levou a experiência da “cidade” às últimas consequências e, por
isso mesmo, a exauriu – embora a grande maioria dos filmes sejam indiferentes a
isto.
Iniciei este breve artigo citando que Sérgio
Milliet havia identificado que o romance Cascalho, de Herberto Sales, inaugurou
um novo ciclo dentro do romance moderno brasileiro, dando continuidade à
tradição iniciada por Jorge Amado, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos, dentre
outros, e quero cconcluir dizendo que o filme Cascalho, de Tuna
Espinheira, inaugura um novo ciclo
dentro do Cinema da Retomada: que chamei de ‘ciclo do diamante’, mas que, na
verdade, se caracteriza pelo cinema maior em si, narrando a saga de um povo.
Situaando-se no mesmo patamar que Tenda
dos Milagres, de Nelson Pereira dos Santos na inclusão de gentes do povo no
elenco para representarem sua própria saga, a saga do povo brasileiro.
Não resta dúvida que Cascalho, de Tuna Espinheira, é um novo diamante na cinematografia
brasileira.
Narlan Matos é poeta e doutor em
literatura brasileira pela University of Illinois at Urbana Champaign.
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