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06 janeiro 2013

No tempo feliz das chanchadas


De vento em popa (1959), de Carlos Manga, mestre da chanchada, com Doris Monteiro e Cyll Farney (aqui no vídeo). 

Os primeiros filmes brasileiros que vi, nos anos 50, foram as famosas chanchadas, que eram desprezadas pela maioria da crítica cinematográfica. Nos chamados anos dourados, era o que predominava no cinema nacional. Assim, minha porta de entrada na nossa cinematografia foi pela chanchada: O batedor de carteiras, O massagista da madame, Mulheres à vista, Entrei de gaiato, todas com o impagável Zé Trindade, Um candango na Belacap, Metido a bacana, com Ankito, Nem Sansão nem Dalila, O homem do sputnick, De vento em popa, com Oscarito, entre muitas outras com comediantes como Vagareza, Costinha, Grande Otelo (que fazia dupla com Oscarito) etc. As chanchadas, apesar do desprezo crítico, eram adoradas pelo público e os filmes eram disputados pelos exibidores. Lembro-me que, em dia de domingo, para se ver uma chanchada nacional, tinha que chegar à porta da sala exibidora com uma hora de antecedência para comprar ingresso. E havia uma fila (quilométrica) para adquiri-lo e outra (também quilométrica) para entrar.

Se, no seu tempo, as chanchadas foram ridicularizadas, atualmente, ironia do tempo que passa, são objetos de estudos cinematográficos em teses e dissertações de mestrados e doutorados. Havia nelas uma certa ingenuidade típica da época, mas que, na verdade, retratavam o modo de ser do brasileiro. E algumas delas são notáveis, revistas hoje, a exemplo de O homem do sputnick eDe vento em popa, de Carlos Manga, com o genial Oscarito (se houvesse ido para Hollywood teria se tornado um comediante internacional. Bob Hope, uma vez, em visita ao Rio, vendo-o no palco, fez-lhe o convite, mas Oscarito declinou. Não gostava de viajar e o que apreciava mesmo era trabalhar no Brasil e comer sua feijoada dominical em família). Em se tratando de comédias, misturava-se tudo numa espécie de saco de gatos. Mas havia algumas que transcendiam a pura chanchada, como é o caso da bem sucedida estréia de Anselmo Duarte na direção em Absolutamente certo (1958).
As chanchadas eram livres (quer dizer sem classificação etária) num tempo em que a censura classificatória, muito rigorosa, não permitia a menores o acesso a filmes considerados adultos. A classificação seguia as seguintes etapas: livre, 10 anos, 14 anos, 18 anos. Havia, junto ao porteiro, um comissário do Juizado de Menores que fiscalizava a entrada das pessoas. Um filme, por exemplo, que tivesse, em sua história, um adultério, era prontamente proibido até 18 anos.
Mas apesar de certas piadas maliciosas, picantes, como se dizia na época, as chanchadas brasileiras eram livres. Os ditos de Zé Trindade sempre tinham conotação sexual, sempre dizeres de duplo sentido, maliciosos. Zé Trindade era um tipo esquisito, particular, com seu estilo inconfundível na arte de fazer graça, como gostava de afirmar Procópio Ferreira. Baiano, começou na Rádio Sociedade de Salvador fazendo piadas, mas seus trejeitos característicos não podiam ser vistos numa transmissão radiofônica.
De repente, em torno dos 10 anos, vi um filme brasileiro que não era chanchada:Rio Zona Norte, de Nelson Pereira dos Santos, que retrata a vida de um favelado compositor (Grande Otelo) que sempre é ludibriado em suas canções, roubadas pelos mais espertos. Não havia graça em Rio Zona Norte, mas o retrato bem realista de uma vida sofrida, com acentos de violência.
Nos tempos das chanchadas, embora estas fossem predominantes no circuito exibidor, houve, na primeira metade da década de 50, a tentativa de implantação de uma infraestrutura para a produção sistemática e continuada de filmes sérios no Brasil: a Vera Cruz, iniciativa da burguesia paulista tendo à frente o empresário Franco Zampari. Se foi um fogo de palha, entrando, alguns anos depois, em decadência, a Vera Cruz produziu, porém, muitos filmes, entre os quais, O Cangaceiro, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes como melhor filme de aventuras, em 1953, Sinhá Moça, de Tom Payne, Simão, o caolho, de Alberto Cavalcanti, Uma pulga na balança, de Luciano Salce, entre muitos outros. Embora no boxoffice, o filme brasileiro de maior bilheteria seja Dona Flor e seus dois maridos (1976), de Bruno Barreto, acredito que o mais visto de todos os tempos tenha sido O Cangaceiro. Leva-se em conta, nestas estatísficas, o preço do ingresso. E também, em relação ao filme estrangeiro, que tem Titanic, de James Cameron, na ponta do iceberg,...E o vento levou teve um espectro mais amplo no que se refere ao número de espectadores. Mas posso estar errado.
Nos agitados anos 60 não havia mais lugar para as chanchadas, cujo humor se transferiu para os programas de televisão, e surgiu o Cinema Novo. O Brasil não tinha uma indústria cinematográfica de filmes médios para a satisfação de um amplo mercado e, assim, os filmes do Cinema Novo, desaparecida a chanchada, tomaram conta do mercado. Mas o público sumiu. Sobre ter, em sua existências obras de grande mérito, a exemplo de Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, Os fuzis, de Ruy Guerra, São Paulo S/A, de Luis Sérgio Person, Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, entre muitos outras, o fato é que o público não gostava dos filmes cinemanovistas e quase todos ficavam às moscas, esta a verdade verdadeira. E paradoxal, porque seus mentores queriam conscientizar o povo brasileiro de sua miséria, de sua fome, e da necessidade de uma insurreição contra o status quo. Como disse uma vez Carlos Diegues: "O Cinema Novo, além de querer mudar o cinema, queria também mudar o mundo".
Nos anos 70, Emílio Garrastazu Médici comandava a ditadura com seu rádio de pilha pregado ao ouvido em pleno Estádio do Maracanã. Sempre aparecia em close no cinejornal Canal 100. O país vivia o seu "ame-o ou deixe-o". Surgiu, então, a Embrafilme, que resolveu patrocinar o cinema brasileiro, E a pornochanchada, que já se insinuava a partir de Os paqueras, de Reginaldo Farias em 1969. Patrocinados pela Embra (como alguns carinhosamente a chamavam) surgiram filmes sérios, mas ruins, muito deles adaptados, como queria a ditadura, de obras literárias: Fogo mortoConfissões de uma viúva moça(faca num conto de Machado de Assis), Soledade, Sagarana, o duelo (faca em Guimarães Rosa, entre muitos outros. Havia exceções, é claro, como São Bernardo, de Leon Hirszman. E até o consagrado Nelson Pereira dos Santos meteu a faca sem piedade em Machado de Assis com o desastrado, alegórico e arrastado Azyllo muito louco, cuja fonte de inspiração estava na beleza que é o conto do bruxo O alienista, que, segundo muitos, é um de seus melhores (e melhor, para o autor de Memorial de Ayres significa excelência).
Vindo Collor, ainda no início de seu mandato, tacou de uma canetada só a extinção da Embrafilme do Concine (Conselho Nacional de Cinema). O cinema brasileiro ficou a ver navios até que Itamar Franco, com a Lei Rouanet e a de Incentivos Fiscais propiciou ao que veio a ser conhecida como a retomada do cinema brasileiro com o êxito surpreendente de Carlotta Joaquina, de Carla Camuratti.

Um comentário:

ANTONIO NAHUD disse...

Belo tributo.
Feliz 2013, Setaro. E viva o cinema!

O Falcão Maltês