O verdadeiro nome de Jacques Tati
é Jacques Tatischeff. Nasceu em 9 de outubro de 1907 na pequena cidade de Le
Pecq, Seine-et-Oise (agora Yvelines), França, e vem a desaparecer aos 72 anos,
em Paris, em 4 de novembro de 1982. Seu pai, de origem russa, apesar de rude,
deu-lhe a conhecer os grandes autores, principalmente os de sua nacionalidade
(Dostoievski, Tolstoi, Tchecov...), e sua mãe, francesa, ainda que uma causer
instintiva, que fez povoar, com suas histórias, a imaginação do menino Tati,
era, no entanto, como habitual na sua época, pessoa dedicada aos serviços do
lar. A juventude, passou-a, preocupado com o rugby, do qual se tornou
campeão em sua cidade.
Os primeiros filmes que viu foram aqueles da estética da arte
muda, pois o cinema somente viera a falar a partir de 1927. Mas, desde cedo,
encantou-se com os filmes cômicos de Mack Sennett, Harold Lloyd, Max Linder, e,
principalmente, de Charles Chaplin. O que mais apreciava, a pantomima, começou
a desenvolvê-la ainda em casa diante do espelho.
Aos 26 anos, em 1933, dá-se a
conhecer num music-hall repleto de originais números inventados por ele
de pantomima esportiva. Do palco pula para o cinema, a princípio como
roteirista e como ator em uma série de curtas metragens: Soigne ton gauche
(1936), de René Clement (que viria a ser um competente e requisitado diretor do
cinema francês - Brinquedo proibido/Jeux interdits) e L'École des
facteurs (1947), entre outros. Desempenha, em filmes alheios, vários
papéis, entre os quais em
Adúltera (Le diable au corps, 1947), de
Claude Autant Lara e, em 1949, decide realizar os seus próprios filmes, e o
primeiro deles, obra de estréia no longa (antes fizera um curta: L’école des
facteurs, 46), é Carrossel da esperança (Jour de fête), uma fantasia
sobre as andanças de um carteiro rural. A singularidade de sua poética original
já desperta a atenção da crítica especializada.
Tati, neste filme, é François, um
carteiro de uma pequena cidade que, muito prestativo, ajuda na montagem de um
parque de diversões que inclui um cinema ambulante. Ainda não aparece como
Monsieur Hulot com a capa inseparável e o cachimbo sempre presente, que iria
personificar a partir de sua segunda obra em diante. Com o cinema ambulante instalado,
o curioso carteiro assiste, nele, um documentário sobre o sistema postal
mecanizado em funcionamento nos Estados Unidos e fica
impressionado. Determinado a aumentar a velocidade da entrega das
correspondências, inspira-se no exemplo norte-americano e, com a ajuda de sua
bicicleta, consegue imprimir a seu trabalho um ritmo surpreendente. O aumento
de velocidade, no entanto, vem a provocar inúmeras confusões e, delas, Tati
tira o espírito de sua comédia. Que foi filmada originalmente em película colorida
em 1947, mas, com um atraso de dois anos entre a produção e a exibição, foi
lançada em Paris em 1949, e em preto-e-branco. Tati, em 1961, desgostoso com o
resultado sem as cores, decidiu ele mesmo colori-la à mão. A restauração,
contudo, somente aconteceu mais de dez anos depois de sua morte, em 1995, tal
como o cineasta a planejara. Jour de fête não tem diálogos, apenas
música e efeitos sonoros. No elenco, além de Tati, Guy Decomble, Paul Frankeur,
Santa Relli. O roteiro, escrito pelo autor e pelo colaborador Henri Marquet. Carrossel
da esperança restaurado chegou a ser exibido em Salvador numa sala
alternativa, que ficou às moscas durante a semana de sua projeção.
As férias do Sr. Hulot (Les
vacances de Monsieur Hulot, 1953), no entanto, foi o filme que o
consagrou. Brilhante sátira do conformismo e da mediocridade dos veranistas
franceses, apresenta pela primeira vez o personagem Monsieur Hulot, indivíduo
ingênuo e inquietante criado com notável fantasia poética, que se converteu no
descendente direto de Max Linder e, sobretudo, de Buster Keaton. Monsieur Hulot
vai passar as férias numa pequena praia bretã, onde corteja, de muito longe,
uma jovem (Michèlle Rolla). Entre as cenas mais engraçadas, estão aquelas que
apresentam Hulot, cachimbo na boca, a dirigir seu carrinho Hamilcar modelo
1924; a sua chegada a uma pensão familiar, que provoca estranhezas; seu quarto
sob o teto; a canoa desmontável que se infla no mar; a irrupção de Hulot, de
carro, num cemitério, durante um enterro; o baile de máscara onde, fantasiado
de corsário, corteja timidamente uma moça; Hulot, perseguido pelos cachorros,
refugia-se numa cabana e causa uma explosão de fotos de artifício; o fim
melancólico das férias.
Grande Prêmio da Crítica
Internacional do Festival
de Cannes em 1953, Les vacances de Monsieur Hulot surpreendeu, pela sua
singularidade poética, pela maneira original de apresentar com graça as
situações cômicas, pela sátira devastadora, os mais importantes críticos que
estavam presentes ao evento. André Bazin, considerado um dos mais respeitados
exegetas cinematográficos de todos os tempos, chegou a exclamar:
"Trata-se não só da obra cômica mais importante do cinema mundial desde os
Irmãos Marx e W. C. Fields, mas de um acontecimento na história do cinema
falado." E Geneviève Agel acrescentou: "Mais tarde, virá a
dizer-se antes ou depois de Hulot". O filme, durante os anos 50 e 60, foi
presença constante nas programações dos cineclubes pelo Brasil afora e recebeu
críticas elogiosas dos grandes ensaístas brasileiros, a exemplo do que escreveu
Paulo Emílio Salles Gomes (Suplemento Cultural do Estado de São Paulo),
Francisco Luiz de Almedia Salles, Alex Viany, Walter da Silveira, entre outros.
Este último, num ensaio publicado
em Fronteiras do cinema (Tempo Brasileiro, 1966), destacou a estética
tatiana num trecho de seu copioso escrito sobre o cômico: "Para realçar
sua concepção moral sobre os inúteis e os transitórios que se esforçam por uma
sobrevivência a que não têm direito, Tati utiliza, ao modo de Chaplin, um mínimo
de primeiros planos e de movimentos de câmera: bastam-lhe os planos médios
fixos. E tão mordaz se apresenta neste agudo despojamento técnico que, além de
não se importar com uma boa continuidade aparente, passando de uma
seqüência para outra com fusões ou cortes que pareceriam primitivos aos
menos avisados, ainda insiste, numa ironia quase gratuita num temperamento tão
simplificador, em mover a câmera com o ar desajeitado de um automóvel que, mal
conduzido, se aproximasse de outro".
(Lembro-me que vi, menino, Meu
tio, no já desaparecido cinema Capri, que ficava no Largo 2 de Julho. A
impressão do garoto que era foi a de um filme esquisito, com alguns momentos
que ficaram para sempre na memória: os cães a vadiar pelo terreno baldio, com
tomadas demoradas, a casa funcional mas inoperante e a figura alta, esquisita,
de Monsieur Hulot. Na segunda metade dos anos 60, vi Playtime, uma
produção de grandes recursos, exibida no Tupy, no formato gigantesco da bitola
de 70mm. O impacto de Playtime, neste formato desaparecido, e porque
filmado nele, desapareceu das cópias porventura existentes em DVD ou “baixadas
da internet”)
Em Mon oncle, Hulot
(Jacques Tati, evidentemente) mora num velho apartamento num bairro parisiense
tranqüilo, e seu sobrinho (Alain Bécourt), com os pais, os Arpel (J.P. Zola e
Adrienne Servantie), numa casa ultra moderna, funcional, cheia de apetrechos
mecanizados. Tati realiza, aqui, o contraste entre estes ricos burgueses e um
bom rapaz boêmio a quem querem fazer trabalhar numa fábrica.
Há momentos antológicos e
memoráveis, que ficam na mente do espectador depois do filme visto. A saída do
Sr. Arpel de carro para a fábrica de plástico é plena de engenhosidade na
confecção do gag audiovisual. Assim como outras: Hulot a subir para a
sua bizarra moradia, e a fazer compras no velho bairro, suas imperícias na
fábrica, a tarde passada no jardim geométrico dos Arpel, a chegada da vizinha
afetada, etc. Meu tio é uma sátira não ao modernismo, mas aos burgueses
que se consideram modernos. “O que me irrita, disse Tati quando do lançamento
de Mon oncle, não é o fato de se construírem imóveis novos, que são
necessários, mas casernas. Não gosto de ser mobilizado, não gosto de
mecanização. Defendi o pequeno bairro, o canto tranqüilo contra as auto-estradas,
aeroportos, organização, uma forma de vida moderna, pois não creio que as
linhas geométricas tornem as pessoas amáveis. Para mim, deve-se revalorizar a
gentileza pela defesa do indivíduo, numa ótica finalmente otimista”.
A preparação para o próximo filme, Playtime, foi
longa: sete anos e mais dois de filmagem (1965/67). Trata-se de sua película
mais custosa, quase uma superprodução. Nela, há uma profunda observação sobre o
comportamento humano e, em particular, de um grupo de turistas americanos que chega
ao aeroporto de Orly e se espanta ao verificar que Paris, com seus edifícios e
suas ruas, é exatamente igual às suas cidades de origem. Mr. Hulot chega a um
novo prédio para tratar de negócios e se deixa extasiar com a complexidade da
construção, sendo mesmo envolvido por uma exposição de equipamentos modernos, a
que também assistem os turistas. Hulot e os americanos voltam a se encontrar na
noite de inauguração da buate Royal Garden, ainda em fase de acabamento. As
confusões se sucedem e, de madrugada, no fim da festa, Hulot oferece um
presente a uma jovem americana, que parte, então, com os demais turistas de
volta a Orly.
Assim narrado, não se pode ter nem
sequer uma idéia do que é, na verdade, Playtime, pois puro cinema. Como
disse André Bazin, quanto mais fácil seja contar verbalmente um filme, menos
cinematográfico ele é, mas quanto mais difícil seja contá-lo verbalmente, mais
cinematográfico ele é. Como em As férias do Sr. Hulot, mais porém do que
em Carrossel da esperança e Meu tio, Tati ignora as regras do timing
e da intensificação dramática. Na primeira das duas grandes seqüências de que
se compõe Playtime, o grupo de turistas americanos em Paris toma contato
com o labirinto de buildings, se espantando ao ver que a cidade, nas
suas linhas e formas, é exatamente igual àquelas que deixaram ao partir. Na
segunda parte, todos visitam o Royal Garden, uma buate in que, ao
receber os primeiros fregueses em sua noitada inaugural, ainda não está
totalmente pronta, com os garçons e maître dando os retoques finais. Aí,
novamente, Tati explora às últimas conseqüências as possibilidades da câmera e
a sua análise pormenorizada do comportamento humano. A seqüência da buate, que
figura entre as mais admiráveis já concebidas em toda a história do cinema,
exemplifica o depuramento do burlesco tatiano. O gag dá sempre a
impressão de estacionar antes de seu ponto de irrupção – como um gag em
suspense ou, mais precisamente, uma decepção do gag. Tati leva a
imaginação do espectador à expectativa do riso – e não estaria nisso uma
verdadeira invenção?
Em 1971, filma o seu canto de
cisne, Trafic, no qual se despede da figura de Monsieur Hulot. Em 74,
sem dinheiro, um circus performer chamado Paradise num estranho
formato de vídeo-scope. O grande cômico morre pobre e esquecido em 1982.