|  | 
| Nosferatu, o vampiro (1922), de Murnau (Cliquem na imagem) | 
O ponto de vista adotado pela narrativa fílmica é sempre - e 
simultaneamente - objetivo e subjetivo, nunca redutível a uma única 
perspectiva por causa da dupla e concomitante ação realista e irrealista
 do cinema. O que não exclui, em todo caso, a hipótese de a narrativa 
abraçar uma ótica em detrimento de outra em relação ao desenvolvimento 
global da narração. Um filme, portanto, nunca pode narrar um 
acontecimento inteiramente visto de dentro - a coisa que o romance pode 
fazer, mas tem a necessidade de recorrer a um ângulo de observação que 
permita unificar a matéria representada a fim de não gerar confusões de 
perspectiva. No filme-ensaio (vide Meu tio da América/Mon oncle d'Amerique,
 1979), do imenso Alain Resnais, esta ótica se identifica com a do autor
 que seleciona e ajuíza. No filme de ficção, esta ótica segue o olhar de
 um dos protagonistas, procurando, no entanto, não se confundir 
completamente com ele. A perspectiva da câmera é diferente da do olho 
humano e, como demonstram inúmeros filmes, a lente pode ocupar o olhar 
de um gato (Um dia, um gato, filme tcheco no qual, em alguns 
momentos, tem-se a perspectiva do olhar do gato que vê as pessoas de uma
 localidade segundo o seu caráter, dando-lhes as cores correspondentes).
 O objeto focalizado também pode ser totalmente deformado - e, nesse 
particular, o expressionismo alemão é farto de exemplos - O Gabinete do Dr.Caligari, 1919, de Robert Wiene, Nosferatu, o vampiro, 1922, de Friedrich W. Murnau etc. Em Cidadão Kane,
 1941, de Orson Welles, filme com forte influência expressionista, o 
cineasta usa tetos baixos para dar uma dimensão insólita aos personagens
 e, na sequência do palácio de Xanadu, Susan Alexander, a segunda mulher
 de Kane, é vista em pequena silhueta diante de uma gigantesca lareira. 
Dentro da mesma obra, um jogo tipo quebra-cabeça - um puzzle que,
 no final das contas, é a própria chave para a compreensão da obra - tem
 suas peças em dimensão enorme. Welles, nestes casos, deforma os objetos
 com a lente com um propósito estético contextual. 
Henri Angel, ensaísta francês, acha que o ponto de vista de um filme 
deve ser sempre o que é adotado pelo cineasta, quer este decida ver o 
mundo através dos olhos de um dos protagonistas, quer decida manter-se o
 mais possível exterior à ação narrada. Um caso de identificação 
autor-personagem é representado por O deserto vermelho (Il deserto rosso,
 1964), de Antonioni, onde a realidade é vista pela câmera não como 
efetivamente é, mas como se apresenta aos olhos do protagonista. Há uma 
experiência radical feita em 1947: A dama do lago (Lady in the lake)
 no qual o personagem principal não aparece, substituído pela câmera 
subjetiva. O que se vê na tela é o que o personagem está a ver. Mas a 
experiência não deu certo, e o público ficou confuso. A este processo, 
chama-se câmera subjetiva, que é muito usado, mas com alternância do 
objetivo e do subjetivo. 
Outro caso de identificação autor-personagem está representado em Repulsa ao sexo (Repulsion,
 65), de Roman Polanski, onde os pesadelos da protagonista (Catherine 
Deneuve), apresentados como objetivos, não são mais que o fruto da 
personagem psicopata, uma manicure sexualmente reprimida que se isola em
 seu apartamento e vai enlouquecendo. 
No pólo oposto situam-se, pela sua objetividade extrema, filmes como Nashville, de Altman, uma crônica de cinco dias da vida de uma cidade no Tennessee, Nashville, na hora do show business e de uma campanha eleitoral que serve como um testemunho à beira do desespero sobre os Estados Unidos contemporâneos. Também Lancelot, de Robert Bresson, e Nicht Versohnt,
 65, de Jean-Marie Straub, obras centradas numa radical objetividade e 
construídas de modo a esvaziar qualquer identificação 
personagem-espectador e, também, redutíveis ao ponto de vista exclusivo 
do realizador onisciente. 
Existem também filmes nos quais os pontos de vista são contraditórios ou contrastantes entre si. Rashomon,
 1950, de Akira Kurosawa, filme que projetou o cinema japonês no mercado
 internacional, é um exemplo bem marcante. A fábula se passa no século 
XV numa floresta perto de Tóquio, quando um bandido afirma que matou um 
samurai depois de violentar a mulher dele. A mulher, porém, diz que foi 
ela quem matou seu próprio marido. Surge, então, a alma do morto que 
conta a todos, estupefatos, como se suicidou. Mas um açougueiro que a 
tudo ouvia, dá uma quarta versão. Em Rashomon, portanto, são 
fornecidos três pontos de vista diferentes do mesmo fato, todos 
igualmente espectáveis, até emergir deles um quarto que é o verdadeiro. 
Ou não? 
Há o caso de a ação ser contada por um morto que relata do além a sua 
história trágica - não existem nem realizador oculto nem personagem 
visível. É o que acontece em Crepúsculo dos deuses (Sunset Boulevard,
 1950), de Billy Wilder, no qual o encenador protagonista conta da sua 
situação de defunto, o como e porque de sua morte devido à atriz famosa 
da qual tinha sido hóspede. A ex-estrela é Glória Swanson que, vivendo 
esquecida num suntuoso palácio antiquado de Hollywood, acompanhada de 
seu fiel criado (Erich von Stroheim), contrata um roteirista fracassado 
que se torna seu amante e que ela mata quando ele se recusa a continuar a
 relação. 
 
 
2 comentários:
Jonga Olivieri escreveu;
Esta sua série é um reesumo da linguagem do cinema. Republique-a toda.
Falar nisso, como vão as vendaas de seus livros?
Espero que indo bem, pois acho-os impecáveis.
E sempre que posso leio algum capítulo de um dos três. Isto só me enriquece quanto a conhecer cinema!
"O homem que matou o facínora" me veio à mente, e até coisas recentes como "Elefante", além de Antonioni. Sobre a câmera subjetiva, ainda que diferente de "A dama do lago", foi imensamente utilizada no "Viajo porque preciso volto porque te amo", mas em harmonia com os devaneios do narrador, colaborando na aura poética do filme.
Postar um comentário