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25 janeiro 2012

Cinema e Literatura


Dei-me, noutro dia, a pensar, ao reler Memorial de Ayres, de Machado de Assis, a derradeira obra deste gênio da literatura brasileira, que é meu livro de cabeceira, como seria possível adaptá-lo ao cinema. Se, nos romances da fase inicial, e, mesmo, nos outros, há uma possibilidade, ainda que remota, de adequar o discurso literário ao discurso cinematográfico (Memórias póstumas de Brás Cubas, de André Klotzel, por exemplo), mas sempre com um resultado bastante inferior à fonte inspiradora, no caso de Memorial de Ayres não existe propriamente uma ação progressiva, mas uma, por assim dizer, inação. EmHelena, do mesmo autor, o mais bem acabado do ponto de vista da estruturação dos elementos da fábula, com um crescendo surpreendente que acaba por atingir o trágico, em Memorial de Ayres não existe uma progressão do elemento fabulístico. Alguém disse, e muito bem, que a obra revela, sim, uma progressão, mas uma progressão da intimidade entre os personagens.
David Wark Griffith, o pai da linguagem cinematográfica, inspirou-se na estrutura narrativa dos romances de Charles Dickens para estabelecer a sua montagem narrativa. Nos anos 50, principalmente com Roberto Rossellini e Michelangelo Antonioni, procedeu-se a um cinema anti-narrativo, sem se fundamentar na lei de progressão dramática griffithiana: um cinema da inação no qual nada acontece. Machado de Assis, neste particular, em Memorial de Ayres, já estava, na literatura, procedendo como um Antonioni avant la lettre. Em Machado de Assis se configura exemplarmente que o valor de uma obra (seja ela cinematográfica ou literária) se encontra na maneira de articulação dos elementos da sintaxe, no estilo, em suma. São as reflexões que estabelecem a curiosidade e a sabedoria das linhas machadianas, reflexões, diga-se de passagem, ditadas pelo seu estilo soberbo, pela sua escrita magnífica.
Machado de Assis, antes de dar início a Memorial de Ayres (o original é com y), faz uma advertência, "Quem me leu Esaú e Jacó talvez reconheça estas palavras do prefácio: Nos lazeres do ofício escrevia o Memorial, que, apesar das páginas mortas ou escuras, apenas daria (e talvez dê) para matar o tempo da barca de Petrópolis. Referia-me ao Conselheiro Ayres. Tratando-se agora de imprimir oMemorial, achou-se que a parte relativa a uns dous anos (1888-1889), se for decotada de algumas circunstâncias, anedotas, descrições e reflexões - pode dar uma narração seguida, que talvez interesse, apesar da forma de diário que tem. Não houve pachorra de a redigir à maneira daquela outra - nem pachorra, nem habilidade. Vai como estava, mas desbastada e estreita, conservando só o que liga o mesmo assunto. O resto aparecerá um dia, se aparecer algum dia."
O poeta e intelectual Francisco Barbosa assim se manifesta em relação aMemorial de Ayres: "A temática da velhice é apresentada, ainda na cena do cemitério, não apenas de maneira literal, mas também metafórica, através das reflexões de Ayres sobre o túmulo familiar: 
"Não é feio o nosso jazigo; podia ser um pouco mais simples, - a inscrição e uma cruz, - mas o que está é bem feito. Achei-o novo demais, isso sim. Rita fá-lo lavar todos os meses, e isto impede que envelheça. Ora, eu creio que um velho túmulo dá melhor impressão do oficio, se tem as negruras do tempo, que tudo consome. O contrário parece sempre da véspera."

Se o conselheiro, no trecho acima, aponta para a necessidade de se assumir a velhice, não o faz, no transcorrer do romance, sem certa dose de melancolia. "se os mortos vão depressa, os velhos ainda vão mais depressa que os mortos... Viva a mocidade!" diz ao amigo desembargador. E o parágrafo final do romance é um dos mais pungentes lamentos já escritos sobre a mocidade perdida: 
"Ao fundo, à entrada do saguão, dei com os dois velhos sentados, olhando um para o outro. (...) Ao transpor a porta para a rua, vi-lhes no rosto e na atitude uma expressão a que não acho nome certo ou claro; digo o que me pareceu. Queriam ser risonhos e mal se podiam consolar. Consolava-os a saudade de si mesmos."

O romance filmado é uma utopia. Havendo, como há, duas linguagens autônomas e especificas, como se pode efetuar a transferência da linguagem literária - signos verbais - para a linguagem cinematográfica - signos icônicos? De fato, quando ocorre a adaptação de uma obra literária para o cinema há, apenas, o aproveitamento da fábula, dos personagens, das situações, desaparecendo, com isso, a narrativa, considerando que o que faz o estilo de um escritor é sua capacidade de reger as palavras numa determinada sintaxe, e o estilo de um cineasta está na sua capacidade de manejar os elementos da linguagem fílmica - os planos, os movimentos de câmera, as angulações, a montagem etc.
Por outro lado, alguns cineastas se valem de subliteratura para, aproveitando a eventual engenhosidade da fábula, transformá-la em filme. Neste caso, a narrativa, se tende para o grau zero de conotação no plano literário, pode se transformar numa narrativa convincente, e plena de poeticidade, no aproveitamento da fábula da subliteratura. É o que faz, por exemplo, Alfred Hitchcock, cujos filmes, com raras exceções, foram sempre baseados em fábulas da chamada pulp fiction (literatura barata), investindo o cineasta nelas como mero pretexto narrativo, o conteúdo estando sempre a serviço da forma/discurso/narrativa.
Temerária é a adaptação de um monumento da literatura universal. King Vidor empreendeu a conquista de Guerra e Paz para o cinema. Com um resultado desanimador se comparado o filme à obra que lhe deu origem, pois Vidor aproveitou somente os personagens, a intriga e as situações. Em uma palavra: a fábula. A narrativa de Leon Tolstoi foi diluída pela narrativa do cineasta, despersonalizando o fluxo do texto específico e da linguagem do escritor em função de outro fluxo linguístico.
O cineasta, portanto, ao adaptar uma obra literária empreende uma transferência de linguagem que se poderia situar no terreno da utopia. Em O processo, baseado em Franz Kafka, Orson Welles, com sua narrativa barroca, faz desaparecer a narrativa kafkiana (baseada em signos verbais) em função de uma narrativa wellesiana. Restam, é verdade, a fábula, os personagens, as situações. O filme, entretanto, é mais Welles do que Kafka. Também em Madame Bovary, de Claude Chabrol, apesar deste cineasta não possuir a exuberância estilística de Welles e ter querido uma fidelidade exemplar ao texto literário de Gustave Flaubert, a despersonalização se faz presente, porque em Madame Bovary, o filme, não se localiza o estilo flaubertiano e, pela fidelidade extremada, também se evapora o estilo chabroliniano. Neste caso, duas as despersonalizações: a do escritor e a do cineasta. Há ainda a considerar que o leitor do livro imagina a sua Bovary, existindo tantas Emas quantos os leitores da obra literária. No filme, Ema é Isabelle Huppert. Ou Jennifer Jones, caso da versão para o cinema do grande Vincente Minnelli.
E, como pensar, então, num filme extraído de Memorial de Ayres, que tem no estilo machadiano a sua grande força?

Um comentário:

Ailton Monteiro disse...

Muito bom, muito bom!! Eu atualmente ando numas de ver as adaptações de "Madame Bovary" para o cinema. Amei demais o livro, que só tive o prazer de ler recentemente, e estou curtindo ver as tentativas dos diretores de levarem o romance para as telas. Por enquanto vi só as versões de Renoir e Minnelli. Verei mais outras.