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13 outubro 2011

Incontinência Urinária

O espaço de meu blog é democrático - disso faço questão. E a pluraridade, quero crer, é conditio sine qua non do debate democrático. O cinema baiano, no entanto, parece que se fecha em copas quando se trata de seus filmes. Já disse aqui que, na noite do lançamento de O homem que não dormia, não o pude ver com a atenção necessária e, por ironia (mas não é ironia), por causa das cervejas tomadas no café-teatro durante a tarde e o cansaço, tive, durante a projeção, uma incontinência urinária, que me fez afastar vários minutos da contemplação do último filme do caro Navarro. Voltando, adormeci. Não vi, portanto, O homem que não dormia. O título dado por Raul Moreira, porém, e devo deixar isso bem claro, não tem a ver com o que me aconteceu.  Polemista por natureza e vocacão, o jornalista e cineasta Raul Moreira me enviou o texto que vai abaixo com o título acima exposto. É de sua exclusiva lavra todas as palavras que estão abaixo. E, para que não percamos mais tempo, vamos a elas, abrindo as necessárias e imprescindíveis aspas:

"Caro Edgard Navarro,
Por respeitá-lo como realizador e também por reconhecer certa autenticidade em seu caráter irreverente, só eu sei o quanto foi difícil constatar que a sua derradeira peripécia cinematográfica, O Homem que não dormia, infelizmente não se constituiu à altura das expectativas, mostrando-se irregular em sua “espinha dorsal”.

Digo-lhe isso com absoluta convicção, pois, depois de assisti-lo pela primeira vez no Teatro Castro Alves, dentro do Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, pude revê-lo de recente, no Festival de Brasília, em concurso, como você bem sabe.

E, através destas linhas, finalmente faço público o meu parecer a respeito de O Homem que não dormia, avaliação que você me cobrou na Capital Federal de forma deselegante, demonstrando, como de costume, o seu desequilíbrio em lidar com as supostas adversidades, principalmente quando atingem às suas convicções.

Antecipo-lhe que não quero entrar no mérito de seus descompassos, pois aqui não é espaço terapêutico, mas, sim, um blog que se propõe a discutir e reverberar questões importantes da Sétima Arte. E, nada melhor, portanto, do que incorrer na leitura de um filme que tinha tudo para acontecer e que perdeu-se, quem sabe, na sua obsessão em curar-se através de sua própria obra.

Cá, antes de entrar na análise da coisa em si, vou situar rapidamente o leitor a respeito de quem é você, a partir de suas principais obras cinematográficas, os premiados SuperOutro (1989) e Eu Me lembro (2005), média-metragem e longa-metragem que respectivamente o elevaram à condição de cineasta de relevo.

Há quem diga que SuperOutro, o super-herói esquizoide interpretado de forma magistral por Bertrand Duarte, é um dos dez melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Exagero ou não, a verdade é que o média de pouco mais de 48 minutos tornou-se cult e, explicitamente, revelou a sua personalidade criativa e atormentada.

Por fim, 16 anos depois de o SuperOutro, finalmente você se deu ao seu primeiro longa, Eu me lembro, obra que talvez tenha sido supervalorizada pelos inúmeros prêmios conquistados no Festival de Brasília em 2005. De certa forma autobiográfico e de perceptível inspiração felliniana, tanto que o batizaram de “amacord edgardiniano”, trata-se de um filme arrumado e convencional na sua estrutura, levando-se em conta a referência que tínhamos do imbatível SuperOutro.

Agora, talvez completando um ciclo, que acabou formando uma trilogia toda ela autorreferente, você arriscou-se em O Homem que não dormia através de uma abordagem junguiana, de forma confessa. Em outras palavras: para soterrar os seus fantasmas e garantir-lhe uma almejada redenção, você nos brindou com um filme que beira o realismo fantástico, nos transportando ao seu universo complexo e repleto de sombras e perversões, dando-se ao direito, claro, de escapar pelos ares a gritar, novamente através de seu ator fetiche, Bertrand Duarte, como o fizera em SuperOutro, a sua frase mais famosa: “Abaixo a gravidade!”.

Pois bem, Edgard Navarro: espero que você tenha encontrado alívio para os seus tormentos, que tenha alcançado a sua redenção. E, se assim realmente se deu, nos resta, tão-somente, analisar a obra cinematográfica através da qual você libertou-se, nas suas belezas e misérias, pois, independentemente de suas convicções pessoais, quando ganhou as telas, O homem que não dormia passou a ser nosso, também.

Realizado a partir de um insight que bateu-lhe à porta há mais de 32 anos, quando fumava um baseado de boa erva, você construiu a trama de O Homem que não dormia centrado na maldição que acompanha um barão sanguinário e a qual se desdobra direta e indiretamente nas angústias de cinco personagens que encontram-se perdidos em suas existências e sonham os mesmos sonhos: Vado (Fábio Vidal), um epilético que apanha do pai; Madalena (Mariana Freire), mulher livre e mal falada; Brígida (Evelin Buccheger), mulher do coronel e grávida de seu amante; PráFrente Brasil (Ramon Vane), um sequelado da época da ditadura militar e, por fim, padre Lucas (Bertrand Duarte), atormentado pelos seus desejos carnais.

Para completar o desfilar de personagens centrais, Edgard Navarro vive o sanguinário Barão, proposto em flashbacks, enquanto Luiz Paulino dos Santos é uma espécie de ermitão que supostamente o reencarna no tempo presente, dentro de uma perspectiva kardecista, numa clara alusão ao mito das vidas passadas. E, de lambuja, uma série de personagens secundários tentam dar um sentido ao processo narrativo.

Assim, em um mundo perdido de uma Bahia profunda, Navarro constrói um mosaico no qual estão expostas questões ideológicas, de classe, de raça, de credo e, principalmente, nos transporta ao cerne de suas perversões e angústias. E o faz, diga-se de passagem, não apenas com imaginação e criatividade, mas, também, contagiado pelos seus autores e filmes prediletos, a exemplo de Artaud, Pasolini e até Buñuel, sem falar do próprio SuperOutro, influências que o mesmo reconheceu durante entrevista coletiva no Festival de Brasília.

O diabo é que em O Homem que não dormia você acabou por menosprezar a inteligência dos espectadores, pois, as cenas explicativas de seu filme, para não falar em didatismo, acabaram tirando a graça de uma trama que poderia vingar, muito bem. E, tal lacuna, reflete a falta de ajuste do roteiro, o que prejudicou a montagem e, por tabela, tornou a narrativa irregular. No final, o somar de derrapagens, como o diluir do filme em tantos personagens, o comprometeu sobremaneira, expondo outras fraturas, como a trilha sonora exagerada e estrondosa, sem falar do abuso que causou certas cenas que não tinham propósito algum, senão aquele de chocar, como o surto de “incontinência urinária” de seus desajustados. Como não poderia deixar de ser, tais escolhas acabaram por minar alguns acertos pontuais, como a direção de arte, a fotografia e o bom representar de parte do elenco.

Sim, O homem que não dormia é um filme que merece um estudo aprofundado por parte daqueles que se interessam pelos processos de construção e afirmação de uma obra cinematográfica. Isso porque, em um mesmo trabalho, encontram-se elementos que o fazem vigoroso e corajoso no seu sentido autoral e anárquico, mas, ao mesmo tempo, é repleto de discrepâncias, as quais são difíceis de relevar, principalmente quando se envolve interesses que não podem ser deixados de lado e dinheiro público.

ESTRUTURA - Se certamente vai encontrar dificuldades para encarar o dito público médio, o que significa que não vai fazer bilheteria, no seu primeiro teste de fogo O Homem que não dormia desandou. No Festival de Brasília, encerrado na semana passada, levou apenas um prêmio de consolação, no caso o merecido Candango de Melhor Ator coadjuvante para Ramon Vane. No restante, passou de mãos abanando, sendo derrotado por filmes de estrutura acadêmica, mas que foram capazes de comunicar, de construir um fio entre o desejo e a realização de seus autores.

No final, fica a sensação de que O homem que não dormia é um navio no qual o comandante Edgard Navarro conclamou a sua tripulação a partir em busca de uma viagem redentora, sem mostrar-lhe com exatidão a rota que pretendia seguir. Mesmo assim, sem pestanejar, seus marujos embarcaram de cabeça, achando que iriam alcançar juntamente com o velho lobo do mar um porto seguro. Por azar, uma tempestade avariou a nau no início do percurso. Hoje, ironia da sorte, a dita cuja encontra-se à deriva e fazendo água, deixando poucas opções ao comandante: ou se dá ao retirar incessante da água que a inunda, impossibilitada de reparo, numa espécie de mito de Sísifo, ou afunda nas profundezas com o seu mastodonte, de preferência sozinho, na mais honrosa das mortes.

Curioso, para não dizer sintomático, foi que após as duas primeiras exibições, em Salvador e em Brasília, você afirmou que fez um filme para si e, ainda que a sua obra afundasse diante dos olhos alheios, não estava nem aí, comportamento que mais parece uma estratégia de autodefesa. Em poucas palavras: você passou a ideia de que a materialização de O homem que não dormia era suficiente para aplacar a sua dor, para afastá-lo de seus tormentos, para fazê-lo alcançar a bendita redenção. Que não tenha uma recaída, ainda que para nós, espectadores vorazes dos seus filmes, bom seria vê-lo em ação novamente, arriscando-se em percorrer os caminhos do Inferno para alcançar o Paraíso."

Raul Moreira

Na imagem, Bertrand Durate e Luis Paulino dos Santos em um momento de O homem que não dormia. Clique nela.

6 comentários:

Anônimo disse...

ok, entendi que o sujeito não gostou do filme, mas ele ficou longe de fazer uma crítica propriamente dita. pareceu que eu estava entrando numa briga de compadres.

ANTONIO NAHUD disse...

Texto honesto e polêmico. Preciso ver O HOMEM QUE NÃO DORMIA.

O Falcão Maltês

Jorge Alfredo disse...

Estive presente às duas sessões citadas por Raul; a do TCA e a do Cine Brasília. Ambas, inesquecíveis! Sala lotada e o público interagindo com o Homem Que Não Dormia o tempo todo. Um escândalo!Tomada que o professor Setaro fique esperto e veja o filme.Ele merecee Edgard também. Quanto ao Raul Moreira... tudo é tão passional...
jorge alfredo

Ângelo Costa disse...

Concordo em gênero, número e grau. Como sempre digo: Não adianta fazer filmes para meia dúvida de pseudo-intelectuais aplaudirem.

Para Antonio Nahud Júnior, achou o texto polêmico? Isso pq vc não leu minha crítica: http://www.saladacultural.com.br/cinema/filme/filme.cfm?cinefuturo&secao=criticas&critica=critica-o-homem-que-nao-dormia-mostra-internacional-por-angelo-costa-dos-santos

Anônimo disse...

É de pasmar Sir Jorge Alfredo.

Ser semi-deus entre o céu e a terra é explicar direitinho o que é a novíssima onda: ser cego e se recusar a enxergar!

A Corte, o establishment do cinema baiano vigente, está nu, nua.

Acredite: o Sir foi acometido do complexo de uma certa Cláudia. Aquela que disse que na minha Bahia, tudo é alegria!

Eu tenho uma resposta a está doença: senta lá Cláudia!

Antonia

ArmundoAlves disse...

Quer dizer então que Navarro fez análise e pagou com renúncia fiscal?