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22 junho 2011

Metamorfose da crítica

A crítica de cinema sofreu, com o passar do tempo, uma metamorfose, e tudo se relaciona a uma questão cultural. Com o desaparecimento dos suplementos culturais, a exemplo do "Quarto Caderno" do "Correio da Manhã", do SDJB ("Suplemento Dominical do Jornal do Brasil"), entre outros, os textos ficaram reduzidos de tal maneira a ponto de, atualmente, ser impossível se ter uma página inteira, em corpo pequeno, de uma análise caudalosa sobre "Rastros de ódio", entre tantos filmes, como faziam Antonio Moniz Viana nas décadas de 50 e 60, ou Rubem Biáfora e Paulo Emílio Salles Gomes no Estado de S. Paulo ou, mesmo, em Salvador, Walter da Silveira em A Tarde.


Os críticos do pretérito se caracterizavam por uma forte formação nas chamadas humanidades, e tinham cultura literária, o que significa dizer: sabiam escrever bem e possuíam estilo. Com o império da cultura audiovisual, os críticos foram se formando pelo "cedeefismo" canalizado na contemplação das imagens em movimento. Se Moniz Viana, Walter da Silveira, Paulo Emílio, Francisco Luiz de Almeida Salles, Paulo Perdigão, entre tantos, distinguiam-se por uma cultura generalista, ampla visão de mundo, cultura geral, por assim dizer, os que escrevem hoje sobre cinema, na sua grande maioria, são 'especialistas' e não estão preocupados em tratar bem a língua pátria.

Assim, na crítica pretérita havia esta ampla visão do mundo. Paulo Emílio, por exemplo, pensava o homem e a sociedade através da visão de filmes, nunca esquecendo que estes sempre refletiam o seu momento histórico, o seu momento político. A crítica pretérita, portanto, abraçava a política em conjunção com a arte, a haver, nisto, um compromisso do artista com a sua circunstância. O que determina uma abrangência na análise fílmica antes que esta fosse tomada de assalto pela crítica estruturalista, que lê a obra cinematográfica como se esta fosse um rato a ser destrinchado em laboratório. A tentativa de "cientifização" do cinema se tornou um passo avançado no sentido de matar a emoção de um filme para acomodá-lo aos modelos acadêmicos.

Quer-se, hoje, nesta maldita contemporaneidade, ler-se o filme e não vê-lo com os olhos da emoção e da razão. A visão crítica é fundamental, mas não se pode apartá-la da sensibilidade, porque a obra de arte deve ser vista em toda a sua integridade significativa e na sua essencialidade poética. Quem quiser tirar uma prova basta ler as antologias críticas já editadas, principalmente Um filme é um filme, de José Lino Grunewald, Um filme por dia, de Moniz Viana, Um filme é para sempre, de Ruy Castro, - todas as três da Companhia das Letras, os escritos de Paulo Emílio editados em dois volumes pela Nova Fronteira nos anos 80, Fronteiras do cinema, de Walter da Silveira (Tempo Brasileiro), entre muitas outras.


A ausência da cultura literária e o desprezo pela política aliadas ao império do audiovisual determinaram a falência do estilo e do prazer da leitura. É claro que toda regra tem as exceções, mas o fato é que a crítica que se pratica é uma crítica mais carregada de um fanatismo filmográfico, por assim dizer, do que uma crítica analítica dotada de presença de espírito, humor, estilo.


Mas seria bom se destacar que a análise do filme tem nuances, a haver, nela, um cipoal de pontos de vistas. A ligeireza de uma resenha para guia de consumo, que não pode se considerar uma crítica na expressão da palavra, assim como o comentário ¿ o cinema se tornou, hoje, objeto de verificação analítica por quase todo aspirante a intelectual no Brasil, como todo brasileiro que é "técnico de futebol" - são as constantes no papel impresso. O que o cinema, pobre coitado, fez a esta gente?


Poder-se-ia ver a crítica propriamente dita e o ensaio, este mais rigoroso, mais profundo, a ser dotado de um instrumental analítico de maior investigação perfuratriz. Desaparecida dos suplementos as críticas copiosas, o pensar cinematográfico tomou, no último decênio, principalmente, as dissertações e teses acadêmicas e, com isto, lá se foi embora o prazer da leitura. E com o advento da internet, a sua expansão em sites especializados (alguns bons) e blogs -todo 'blogueiro' que se atreve a comentar filmes se considera um crítico de cinema.

Questão cultural, portanto, esta da crítica de cinema. De homens cultos e inteligentes, com ampla visão da arte, ela passou às mãos de fanáticos e 'cdfs', maníacos despreparados, fanáticos para os quais o "youtubismo" é o avatar mais proeminente da contemporaneidade.


Há que se ler, então, para aprender a criticar, os escritos do pretérito. Ler os textos de Moniz Viana, Grunewald, Walter da Silveira (quatro volumes de seus ensaios foram já lançados), Paulo Perdigão, Sérgio Augusto, Almeida Salles, et caterva. Para se ter uma idéia, basta dizer que a crítica como era escrita nos jornais e revistas nos anos 50 e 60 se poderia considerar, talvez, até num gênero literário, porque tinha um estilo revelador na maneira de apreensão da estesia cinematográfica. Lia-se os escritos sobre filmes além da necessidade de esclarecimento na tradução do filme, mas, e sobretudo, apreciava-se o estilo de seus mestres. A leitura de Moniz Viana revela não somente um erudito do cinema, mas, também, um estilista. Assim como a de Walter da Silveira, Almeida Salles, entre os outros citados. Esta maneira de escrever é que desapareceu e o seu desaparecimento vem associado à ausência quase completa da cultura literária que se estimulava e era um hábito dos bem pensantes.


E a crítica, com o tempo, passou por uma metamorfose que se poderia mesmo dizer kafkiniana. A ponto de, muitas delas, não sair da condição de baratas pseudo-análises destituídas de qualquer base referencial.

8 comentários:

Rafael Galvão disse...

Belíssimo artigo.

Eu gostaria apenas de acrescentar que, em grande parte, isso talvez se deva à especialização das pessoas cada vez mais cedo, e à necessidade de se adequarem a uma estrutura acadêmica excludente, voltada basicamente para a formação de profissionais. Antigamente as pessoas aprendiam cinema indo ao cinema; hoje, aprendem ouvindo um professor falar e lendo xeroxes de arquivos. É impressionante como as novas gerações conhecem pouco da história do cinema, mesmo vivendo em tempos em que, pela primeira vez, tudo está disponível facilmente. O academicismo foi extremamente nocivo à crítica.

A mídia impressa também se modificou, passou a ser mais rápida, mais efêmera. Os textos, de modo geral, perderam qualidade e estilo. E respondem antes às necessidades de marketing da mídia do que ao valor da obra. Crítica, em grande, hoje é pouco mais que press release não-assumido.

E talvez entre como elemento nesse processo de decadência crítica um certo esgotamento da própria estética cinematográfica.

Queria também lembrar um bom livro, “Cinema e Verdade”, coletânea de críticas do Almeida Salles que provavelmente ainda é encontrável em sebos por aí.

E a propósito, hoje em dia prefiro vários blogueiros que costumam escrever sobre cinema do que a maior parte dos críticos em atividade em jornais e revistas. Eu jamais chamaria a Isabela Boscov, por exemplo, para um café.

Rodrigo Carreiro disse...

Belo texto, André. Eu só acrescentaria que o fenômeno embutido na linha "E com o advento da internet, a sua expansão em sites especializados (alguns bons)" é bastante amplo, de certo modo positivo, e talvez mereça em outro momento uma reflexão mais atenta. Abraços!

André Setaro disse...

Obrigado, Rafael. Gostei muito de suas observações, pois exatas e pontuais, principalmente a que se refere à 'crítica de academia'.

André Setaro disse...

Sim, a crítica no espaço virtual, Rodrigo (sou seu leitor no Cine Repórter), merece um outro artigo e um exame mais aprofundado, porque, na verdade, há blogs, blogs, e blogs.

Francisco Sobreira disse...

André,
Você conhece o livro Cinema e Verdade, uma seleção de textos de Francisco Luiz de Almeida Salles? Ele foi um grande crítico. Além de entender do assunto, era culto e dono de um estilo atraente. Pois é isso, entre outras coisinhas, falta aos críticos (ou os que se presumem como tais) de hoje o dom da escrita, que "pega" o leitor, mesmo que este discorde de suas opiniões. Me valo do exemplo de Moniz Vianna. Muitas vezes não me alinhei com a sua posição em relação a certos filmes e movimentos (Nouvelle Vague e Cinema Novo), mas sempre o li com prazer, em razão da forma com que expressava as suas opiniões. Parabéns pelo texto. Saudações.

André Setaro disse...

Sobreira, comprei 'Cinema e Verdade', quando do seu lançamento. Creio em 1989. Almeida Salles é um estilista, um homem de cultura vasta. Concordo com seu comentário. É o 'x' da questão. O estilo faz o homem e o crítico.

Francisco Sobreira disse...

No meu comentário saiu "valo", em vez de "valho", a forma correta.

Jonga Olivieri disse...

O mundo, aliás, a cultura como um todo estão em profunda decomposição.
E tudo isto é conduzido por esta "pós modernidade" em que os valores se confundem numa superficialidade e falta de aprofundamento das temáticas e análise nas coisas mais elementares e simples...