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01 junho 2011

...E o vento levou

...E o vento levou (Gone with the wind, 1939) está a completar 72 anos de existência. Filme emblemático como espetáculo cinematográfico, característico da escola idealista do cinema no modo de representação da realidade, marcou época e, talvez, tenha sido o mais visto em todos os tempos. As constantes listas que aferem os campeões de bilheteria já não o têm entre os seus dez maiores, porque a aferição é feita em termos dos lucros auferidos e, assim, os ingressos antigamente eram muito mais baratos.
Ainda que hoje a nova geração não o veja mais, o fato é que durante as décadas de 40, 50 e 60,...E o vento levou era uma referência constante, e não havia cinéfilo, que se quisesse prezar, que não o tivesse visto. Acredito que se, atualmente, os campeões de bilheteria, Titanic ou, já a o superar, Batman, o cavaleiro das trevas, tenham obtido as maiores bilheterias da história do cinema, por outro lado, nenhum filme como ...E o vento levou tenha ficado três décadas em cartaz (com as constantes reprises habituais daquela época) e no imaginário dos amantes do cinema. Os espetáculos cinematográficos atualmente são lançados e logo retirados de cartaz e esquecidos com muita facilidade.
Emblemático como obra cinematográfica típica da indústria hollywoodiana da época, cujos sustentáculos estavam em três pilares básicos, o star system, ostudio system, e a divisão dos filmes em gêneros específicos, ...E o vento levou é um filme de autor às avessas, a contrariar em gênero, número e grau, a Política de Autores (Politique des auteurs) formulada pelos jovens turcos da revista francesa Cahiers du Cinema, para os quais o verdadeiro criador de um filme era o seu diretor (embora a admitir também que havia obras nas quais o diretor era apenas administrativo, mas, para os turcos os melhores eram aqueles que se podiam definir como de autores). Porque o verdadeiro autor de ...E o vento levoué o seu produtor supremo David Selznick e seus diretores não passam de meros diretores administrativos, coordenadores de elenco, diretores de cena.
Adaptação do romance bastante popular de Margaret Mitchell, ...E o vento levouapresenta os estertores da época esplendorosa do Sul dos Estados Unidos e sua derrocada quando da eclosão da Guerra de Secessão. Obra essencialmente intimista (idealista), que foge aos cânones do realismo cinematográfico, tem seu interesse centrado na espetacularidade e no violento choque de personalidades entre os personagens vividos por Vivien Leigh, Clark Gable, Olivia de Havilland e Leslie Howard. O conflito bélico que se instaura, como em todo filme característico do idealismo, serve apenas como pano de fundo. O centro de tudo é a personagem de Scarlett O"Hara (Vivien Leigh) e suas ambiguidades em relação aos mistérios do amor e sua esfuziante personalidade. Pese à acusação de excessiva espetacularização, não se pode negar que algumas sequências são antológicas e, mesmo com a tecnologia atual, difíceis de serem vistas atualmente com tal força de impacto, a exemplo do baile aristocrático e a do incêndio de Atlanta.
Uma rica herdeira sulista, Scarlett O'Hara, apaixona-se por seu primo (o ator inglês Leslie Howard que viria a morrer em acidente poucos anos depois de ter participado do filme), mas este dá preferência à sua irmã Melanie (Olivia de Havilland). Ao estourar a guerra, Scarlett vê-se obrigada a assumir a direção da família, e é cortejada por Rhett Butler (Clark Gable), comerciante, e bon vivant, que a salva do incêndio de Atlanta. Assediada por Rhett (no bom sentido do assédio sem as conotações perversas do estabelecido pela onda politicamente correta atual), termina por se render a seus encantos e se casa com ele. O beijo na carroça, quando ela é salva do incêndio, tendo ao fundo as chamas, que o technicolor de então oferece num tom vermelho é um assombro, para os padrões da época, entre ela e Rhett, é antológico, e figura em qualquer livro que se queira abrir sobre cinema. O caráter rebelde e instável, porém, e sua insistência no amor ao primo, e a morte de seu filho (acidente num cavalo) terminam por conduzir o matrimônio a um beco sem saída.
...E o vento levou é a mais gigantesca superprodução do cinema americano da primeira fase do sonoro. Mesmo para os padrões atuais, não se pode imaginar o êxito de seu lançamento com uma multidão de pessoas diariamente em filas quilométricas nas portas dos cinemas. Um verdadeiro fenômeno que marcou definitivamente um tempo em que o sistema de estúdios dava as cartas para o sucesso dos filmes. E, além do mais, Gone with the wind representa bem um estilo de representação não somente da realidade focada, mas um estilo de cinema que se fazia no período.
Neste particular, a obra cinematográfica mais representativa, embora excelentes filmes foram realizados neste magnífico ano de 1939, cristalização da arte clássica, segundo escreveu André Bazin: O morro dos ventos uivantes (Wuthering heights), de William Wyler, No tempo das diligências (Stagecoach), de John Ford,A mulher faz o homem (Mr. Smith goes to Washington), de Frank Capra, A regra do jogo (La règle de jeu), de Jean Renoir, O mágico de Oz (The wizard of Oz), de Victor Fleming, Jesse James, de Henry King, entre muitos outros.
...E o vento levou teve vários diretores, entre eles George Cukor (que filmou quase toda a primeira parte antes da guerra), Sam Wood, e Victor Fleming (que, afinal, ficou com os créditos). Mas apesar do controle absoluto e obsessivo de David Selznick, o filme, sempre um trabalho de equipe, não seria o mesmo sem a contribuição, mesmo que administrativa, dos diretores citados, e, principalmente, de seu diretor de arte William Cameron Menzies. Vale ressaltar que entre os roteiristas de ...E o vento levou há contribuições nos diálogos de William Faulkner e F. Scott Fitzgerald. A atriz negra Hattie McDaniel, que faz a criada de Scarlett, foi indicada para o Oscar de melhor atriz coadjuvante (e ganhou), mas não pôde receber o prêmio, porque um negro não podia entrar, segundo as leis racistas da época, no teatro da entrega dos Oscars.
Para se ter uma idéia, ...E o vento levou, considerado uma fortuna para a época, custou aos cofres da produtora de Selznick apenas cinco milhões de dólares e rendeu trinta e dois. Atualmente o salário de uma atriz como Julia Roberts não sai por menos de vinte milhões (de dólares, de dólares!).

5 comentários:

Armundo disse...

E numa determinada época chegamos a acreditar nessa história do diretor como verdadeiro 'auteur' dos filmes - ah, o discreto charme da crítica francesa de cinema! O livro "O Gênio do Sistema", de Thomas Schatz, colocou as coisas em seus lugares. O filme é uma obra coletiva, o que não exclui a importância do diretor. O produtor, extrema heresia, tem grande papel não só no quesito grana, mas também, e muito, na parte artística. O autor parece dizer que ninguém entendeu (e entende até a época em que o livro foi escrito) de cinema em todas as suas demandas (técnicas, artísticas e financeiras) como Irving Thalberg. Para ilustrar a sua tese em defesa dos produtores (e de outros artistas e artesãos do cinema), ele conta que antes da finalização de "Rebecca, a Mulher Inesquecível", de Hitchcock, este viajou e o produtor, David Selzinck, resolveu mexer no filme, e mexeu muito. Refilmou cenas e sequências inteiras. Hitchcock voltou, viu as mudanças e as aprovou. Achou que tinha ficado melhor. Deu Oscar de Melhor Filme. (É claro que Selznick não suprimiu a tradicional rápida aparecida de Hitchcock - fora da cabine telefõnica). Em tempo, Gore Vidal acha que um bom filme depende majoritariamente de um bom roteiro. Quanto a "... E o Vento Levou", até hoje é um delírio visual. Comprei o DVD por doze reais. Pechincha é isso.

André Setaro disse...

Concordo, Armundo, embora a importância do diretor seja inegável, há outros elementos que participam do processo de criação no cinema.

Rafael Galvão disse...

Só umas pequenas correções: não é o filho de Rhett e Scarlett que morre num acidente equestre, e sim sua filha única, Bonnie; além disso, Ashley não é primo de Scarlett, e sim de Melanie -- que não é irmã de Scarlett. Além disso, um erro gravíssimo: essa história de Hattie McDaniel ter ganho o Oscar de melhor atriz coadjuvante e não poder pegar o prêmio é mito. Ela não apenas recebeu como fez um discurso emocionado, elogiadíssimo por Louella Parsons.

De resto, “...E o Vento Levou” é isso mesmo. Vale lembrar ainda o desempenho fascinante de Vivien Leigh, o racismo canalha, embora atenuado em relação ao livro, e que não é apenas o amor ao finado Ashley, mas a recusa de Scarlett em aceitar o amor por um homem de caráter forte como o dela e, principalmente, de uma classe diferente e inadequada aos padrões do “velho Sul” que condena o seu casamento.

André Setaro disse...

Concordo, Rafael, você tem razão. Errei. E errei feio.

Rafael Galvão disse...

Só enchendo o saco masi uma vez, agora sobre a questão da teoria do autor: acho que o livro do Schatz que o Armundo citou se refere bem a um momento histórico específico; mas em outras cinematografias, como a brasileira, a teoria do autor faz mais sentido, embora nunca seja totalmente adequada. A experiência americana é única em seu caráter industrial e especializado. Na maioria dos outros países diretor é produtor, roteirista, editor, etc.

O problema da teoria do autor é formular um arcabouço filosófico generalizante a partir de uma necessidade política, a dos jovens cineastas franceses no pós-guerra. No geral ela é uma teoria que faz sentido, embora obviamente tenha exageros: a bobagem da “câmera-caneta” do Astruc; as boutades -- acho que foi o Jacques Rivette que disse que Hawks era o único cineasta a ter uma “moral”. E por causa da teoria, a Cahiers elegeu “Um Rei em Nova York” um dos melhores filmes de 1956 (ou 57, não lembro agora). Ou seja: se Chaplin era um autor, um dos melhores, todos os seus filmes tinham que ser bons, já que “não existem bons ou maus filmes, só bons ou maus diretores”. Ou ainda a bobagem da “câmera-caneta” do Astruc.

O problema, para mim, é que cinema é arte necessariamente coletiva. A função específica do diretor não pressupõe autoria: o René Clair que dizia que ela só se realiza quando o diretor é o roteirista também. E mesmo assim esquece o trabalho de atores, editores, etc. O grande problema da teoria é que ela nega a criatividade na interpretação -- e o diretor, quando só diretor, é isso, um intérprete. Como um maestro.