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26 dezembro 2010

Olhando para o bico de meu sapato

Quadro de Edward Hooper
Com a decadência dos suplementos culturais no jornalismo brasileiro, a crítica de arte sofreu severo revés, e, aí, incluindo as artes plásticas, cinema, teatro, literatura, e et caterva. Já se foi o tempo no qual os jornais dedicavam cadernos imensos, verdadeiros calhamaços, mas calhamaços agradáveis, dentro dos quais se encontravam, em letras miúdas, ensaios e artigos brilhantes que o leitor, feita a leitura, e sem o contemporâneo afogadilho da pressa, ficava com pena de dar ao lixo as gazetas do dia anterior. A imperiosa necessidade, porém, de não se puder acumular tudo, era resolvida com a tesoura, que recortava as matérias mais interessantes, que, arquivadas em pastas, de vez em quando se davam às consultas.

O jornalismo cultural foi definhando com o passar do tempo, mas, ainda nos anos 80, sem o vigor das outras décadas, ainda se podia ver, aqui e ali, reflexões críticas. Com o avanço tecnológico e a instauração do império do audiovisual, e para ficar, apenas, nos limites daquilo que um dia se chamou de crítica cinematográfica, esta se metamorfoseou em resenhas e comentários, deixando de se constituir em ensaios ou, mesmo, críticas na expressão do vocábulo. Há muito tempo, hoje, para se ver imagens – mas ver sem contemplar, e, pouco, muito pouco, para ler. As humanidades estão mortas, escreveu há alguns anos, na Folha, Nelson Ascher. Tudo, nesta contemporaneidade tão deplorável, está dirigido para o pragmatismo, para o imediato, para o consumismo desenfreado e doentio.

A crítica de cinema praticamente desapareceu da imprensa escrita, e, em seu lugar, estão as resenhas, que orientam em função do consumo e sempre acopladas ao mercado, à programação do circuito comercial. Os estudos mais sérios sobre o cinema se encontram nas universidades, mas perderam, com o jargão acadêmico, o prazer da leitura que, antes, proporcionavam críticos como Walter da Silveira, Paulo Emílio Salles Gomes, Francisco Luiz de Almeida Salles, José Lino Grunewald, Antonio Moniz Vianna, entre muitos outros. O cinéfilo fica então na condição de um sem-crítica, pois, geralmente, não tem acesso às elucubrações teóricas fabricadas nos desvãos da academia e, abandonado pela crítica, amarga as resenhas insossas. Há o espaço virtual, onde já se pode contar com boas críticas, mas me reservo, aqui, aos jornais e revistas.

Acontece que os críticos de cinema mais antigos eram homens cultos, preparados, que sabiam escrever. Novamente se volta à questão de que as humanidades estão mortas, pois nas escolas os professores generalistas, de ampla cultura, causers, deram lugar aos pragmáticos e aos especialistas. Uma aula de Direito, há algumas décadas atrás, era uma aula de filosofia, de história, acionada por um mestre que dominava a oratória. Nos dias atuais, que viceja no pântano contemporâneo, existem os ‘técnicos’ em Direito, especialistas, preocupados com este tão pestilento e ameaçador ‘mercado’, que virou o Deus da pós-modernidade inculta.

A sociedade de consumo determina a degenerescência do saber, promovendo a apatia genuflexória, o entusiasmo fogo-de-palha, os arruídos do vácuo. A ver tudo isso, a melhor opção talvez seja, como a de um personagem de Luis Buñuel, passar a maior parte do tempo a olhar o bico de seu sapato. Vai-se a um cinema como se vai a um fast food, e a sala exibidora, voltando, mais uma vez, ao assunto, virou mesmo um fast food. E as livrarias, ‘butiques’ mal assanhadas e mal ajambradas, de livros capengas que mistificam o saber na tentativa de uma frustrada e enganosa auto-ajuda. O politicamente correto ceifa o humor e restringe a liberdade de expressão, condicionando os seres a uma postura ‘certinha’ e desinteressante. E aqueles que pensam estar à vanguarda não passam de modernosos e vanguardeiros de ocasião, desconhecendo que a grande revolução estética nas artes se deu na década de 20 com uma reciclagem na de 60. A partir dos anos 80, com a ascensão dos ‘yuppies’, a vinda catastrófica do neoliberalismo, e a instalação de um ‘cientificismo’ desvirtuador, o homem ficou à míngua, ao léu e, mesmo, poder-se-ia dizer, ao deus-dará.



3 comentários:

Jonga Olivieri disse...

Como vê, caro professor, a crise que às vezes se refere à Bahia, é muito mais do que isto a crise sistêmica da cultura, amordaçada pelo consumismo "barato" destes tempos do capitalismo pós moderno. A começar péla matriz do império onde a arte em geral debate-se na lama da mediocridade presa ao mercado e suas "leis". Triste!

Romero Azevêdo disse...

Como diriam João e Maria:- "Azeite !"

ARMANDO MAYNARD disse...

"(...)feita a leitura, e sem o contemporâneo afogadilho da pressa, ficava com pena de dar ao lixo as gazetas do dia anterior. A imperiosa necessidade, porém, de não se puder acumular tudo, era resolvida com a tesoura, que recortava as matérias mais interessantes, que, arquivadas em pastas, de vez em quando se davam às consultas(...)". Perfeito Setaro, eu comecei com pastas, depois passei para cadernos segmentados ou temáticos. Hoje, bem hoje, para como eu que sou alérgico a papel velho, tudo isso é passado, mas não é que as vezes tenho uma recaida e quero "imprimir a internet". Um abraço, Armando.