A chegada nas melhores locadoras de DVDs de Ervas daninhas (Les herbes folles), que foi considerado pela crítica brasileira o melhor filme do ano passado, é um acontecimento, considerando que sua estréia, principalmente em Salvador, foi rápida demais e se deu no fim do ano, época atropelada pelo Natal e Ano Novo. É um filme obrigatório, que não pode deixar de ser visto por todos aqueles que se consideram cinéfilos e amantes do verdadeiro cinema. Abaixo algumas palavras sobre Resnais, que considero o maior cinema vivo.
Alain Resnais é um inventor de fórmulas, um realizador que se poderia chamar de "sui generis". Antes de fazer longas metragens, realizou preciosos documentários, como "Toda a memória do mundo" ("Toute la memoire du monde"), "Nuit et brouillard", "Van Gogh", entre outros. Neste último, o uso do travelling e do zoom proporcionam uma verdadeira análise perfuratriz da obra desse gênio pictórico, revelando não somente a arte do mestre, mas, também, a arte de usar o veículo cinematográfico com uma função didática e artística exemplar. Resnais em "Van Gogh" reinventa o documentário, assim como em "Nuit et brouillard", obra-prima sobre os campos de concentração nazistas. Realizador dotado de um rigor formal fora do comum, Alain Resnais viria a deixar o mundo estupefato quando, em 1959, projeta "Hiroshima, mon amour", conjugando a imagem e o som num filme recitativo que "rompe" com o círculo vicioso da dramaturgia acadêmica para situar a sua estrutura narrativa não mais sobre um crescendo dramático, mas em torno de idéias e situações. Se "Hiroshima, mon amour" se constituiu num autêntico choque estético, este seria retomado com mais força e potência dois anos depois em "O ano passado em Marienbad", quando Resnais incursiona pelos arcanos da memória de um homem que, num balneário, fica em dúvida se esteve, ou não, com uma linda mulher, no ano anterior.
Não pretendo fazer aqui um inventário filmográfico desse surpreendente autor - mesmo porque o espaço não mo permitiria. Mas necessário dizer que Alain Resnais tem um "touch" genial a cada filme, sempre procurando inovar na sua "mise-en-scène", sem, contudo, procurar o novo pelo novo, sempre lúcido e coerente, investigador da natureza do cinema e de suas possibilidades expressivas. Assim, em "Meu tio da América" (1980) realizou o que se poderia denominar de filme-ensaio, de filme-demonstração, que, creio, tem uma originalidade absoluta no que se fez no cinema ate então, excetuando-se, talvez, a narrativa fragmentária e ensaística de "Duas ou três coisas que eu sei dela", de Jean-Luc Godard nos anos 60. O filme de Resnais, porém, segue outra rota, outro caminho, outra seara.
Em "Amores parisienses", o autor de "Hiroshima, mon amour" faz inserir o cancioneiro tradicional francês (Aznavour, Piaf, Montand...) numa fábula simples e encantadora. Uma guia de turismo, Camille (Agnes Jaoui, que já esteve em Salvador, além de atriz , é, também, diretora), que trabalha enquanto conclui uma tese de doutoramento sobre objeto insólito, se apaixona por um corretor de imóveis (Jean Pierre Bacri) que, na verdade, deseja somente vender um apartamento à irmã dela (Sabine Azéma, intérprete da predileção do autor), que, por sua vez, vive o cansaço de um matrimônio percorrido pelos anos. Mas um senhor de mais idade (André Dussolier), que a acompanha nos trajetos, está também loucamente apaixonado. Enquanto isso, um motorista particular vive problemas domésticos. Os personagens se interligam, as situações se confundem. No desenvolvimento da fábula, de repente, os atores começam a cantar canções típicas para a expressão de seus sentimentos momentâneos.
Captação dos "recursos" musicais de uma cultura, com a expressão fabulística de um conto moderno, "Amores parisienses" é um filme singular na maneira pela qual o realizador articula os elementos de sua linguagem, dotando-os de uma singularidade no estabelecimento da "mise-en-scène". A sequência final, por exemplo, que se passa toda no apartamento recém adquirido, onde se realiza uma festa, reunindo nela todos os personagens da trama, é um primor de solução dos problemas enfileirados no roteiro. Há ecos de um Jacques Demy nesta seqüência derradeira.
O cinema de Alain Resnais é um cinema da oralidade, mas, nem por isso, deixa de ser profundamente cinematográfico. Resnais tem a coragem de assumir a plena teatralidade em "Smoking", por exemplo, filme sobre a fatalidade da vida e seus acasos, onde se permite a proposta de vários finais. Atingindo a plenitude da forma cinematográfica nos seus primeiros filmes, na maturidade ousa experimentar outras fórmulas de narração, outras soluções demonstrativas de uma "mise-en-scène", como já disse, extremamente rigorosa. Trata-se de um mestre e de um artista, que, em seus filmes, explicita o cinema e a explicação do cinema.
Publicado originariamente na Tribuna da Bahia (14.10.2010)
3 comentários:
Resnais talvez tenha sido o mais revolucionário dos diretores franceses. Obras como "Ano passado em Marienbad" marcam a história dos processos de comunicação no cinema. No tempo e no espaço...
No cinema de Resnais, na fugidia desenvoltura de suas histórias, somos embriagados pela contagiante forma com que as ações e reações se dão na tela. São desdobramentos quase sempre contraditórios, pois não são esclarecidos à maneira clássica que aprendemos no cinema, possuem um caminho não retilíneo, meio turvo, e assim colocam-se mais próximos do mundo real, mesmo sem querer parecerem reais. São trajetórias que não fariam sentido algum estivessem elas presentes num filme de Scorsese ou Eastwood, mas que no cinema de Resnais conversam plenamente. Ervas Daninhas, esse último pedaço de criatividade lançado por Resnais, possui todos estes atributos de interesse. É mesmo um filmaço.
Jonga, sei que viu algumas vezes 'Marienbad'. Pedro Henrique, parabéns pela análise lúcida e coerente.
Postar um comentário