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10 fevereiro 2009

Clint Eastwood antes de ser o tal


Considerando que existem três espécies de realizadores cinematográficos, o autor, o estilista, e o artesão, Clint Eastwood, o diretor do recente (e notável!) A troca (Changeling), seria o caso de um artesão que aos poucos foi se moldando como um autor de filmes. E um dos mais expressivos e significativos do cinema contemporâneo. Para se detectar um autor, é necessário que o realizador tenha já alguns filmes, a fim de que, na análise comparativa de suas obras, possa se estabelecer as constantes temáticas e estilísticas. Para que se configure como um autor, o cineasta precisa ter uma visão de mundo e uma visão de cinema, isto é, um universo ficcional próprio e uma maneira peculiar de explicitar o seu repertório temático através das imagens em movimento. Autores marcaram a história da arte do filme e, também, provocaram polêmica, principalmente quando da emergência, na França, via Cahiers du Cinema, da Política dos Autores (Politique des Auteurs). São autores de filmes, para ficar apenas em poucos exemplos, Ingmar Bergman, Fellini, Chaplin, Welles, Hitchcock, entre tantos outros, pois realizadores que possuem, nítidas, constantes temáticas e constantes estilísticas.
Já o estilista não possui universo ficcional próprio, mas tem uma maneira muito sua de articular os elementos da linguagem cinematográfica, um estilo particular, uma marca registrada. Não seria Steven Spielberg, por exemplo, um estilista? Ainda que em sua filmografia possam ser notadas preocupações relativas à necessidade do conforto familiar, do retorno à infância, do imaginário construído em torno da célula mater, etc. Mas o que tem a ver Parque dos dinossauros com A lista de Schindler? O que tem a ver Os caçadores da arca perdida com Amistad? Não se colocaria Spielberg no panteão dos autores nem dos artesãos.
Estes se caracterizam pela ausência de constantes temáticas e pela inexistência de um estilo, de uma marca. Realizadores sem estilo, os artesãos, no entanto, sabem contar uma história, desenvolver uma narrativa em função da fábula e estão confinados à falta de ambição e propósitos outros que não estejam conectados com o desenvolvimento do roteiro. É verdade que um grande autor pode ser de mais valia para a história da arte do filme do que um grande artesão. Mas o fato de o realizador ser um autor não o credencia a ser melhor do que o artesão. Tudo na vida, como no cinema, é relativo. Muitas vezes, melhor um afiado artesão do que um autor chato, pachorrento, pretensioso, do qual o cinema está cheio pelas bordas.
Mas o objeto deste artigo é Clint Eastwood, caso um pouco raro de artesão que, aos poucos, foi se construindo como autor, e autor, diga-se de passagem, do primeiro time. Clint nasceu numa ladeira da cidade de San Francisco em 31 de maio de 1930. Vai fazer, portanto, 79 anos, já beirando os 80 e ainda em plena forma, ativo, lépido e fagueiro, prestes a iniciar um novo longa metragem. Família pobre, de parcos recursos, a obrigar o menino ao exercício da sobrevivência como entregador de pizzas, faxineiro de armazém, entre outros trabalhos do gênero. Rapaz, perambulava pelas ruas de San Francisco (com suas ladeiras celebrizadas em Bullit, de Peter Yates, ou, mesmo, no delirante Um corpo que cai/Vertigo, do mestre Hitch), a namorar as garotas nos anos dourados dos 50, mas com o pensamento nas telas do cinema. Em 1954, após muito batalhar, consegue participar de um sem número de seriados da Universal, fazendo pontas sem sucesso. Foi preciso esperar uma década para, em 1964, num intervalo do seriado Rawhide receber um convite para trabalhar num filme na Itália. Era Por um punhado de dólares, de Sergio Leone. Com este, participou de mais alguns filmes: Por uns dólares a mais, Três homens em conflito. De volta aos Estados Unidos, teve a sorte de encontrar Don Siegel, cineasta de grande dinamismo, de timing envolvente, que, pode se dizer, ensinou a Clint muitos dos segredos da arte de contar uma história com ritmo, eficiência, economia narrativa. Clint abriu uma produtora, a Malpaso, em 1968, e bancou alguns filmes de Siegel e, enquanto atuava, aprendia, perguntando, olhando, curioso. Perseguidor implacável (Dirty Harry, 1971), de Siegel, pode ser considerado – ao lado de Meu ódio será tua herança/The wild bunch, de Sam Peckinpah, o detonador da violência no cinema contemporâneo. Filme de ação irretocável, que marcou a década de 70, Dirty Harry estabeleceu a figura do policial lacônico interpretado por Clint, Harry Callaghan, que seria continuado em uma série de outros filmes (sem a marca de Siegel, entretanto). O “homem sem nome” dos filmes de Leone encontrara um novo posto na pele de Callaghan. Dirty Harry tem um precursor, que é Meu nome é Coogan (Coogan’s buff, 1968), do mesmo Siegel, com Clint como um policial interiorano que vai a Nova York buscar um criminoso que se evadira. A estruturação psicológica de Coogan é, mutatis mutandis, a mesma de Callaghan.
Ter uma empresa produtora ajudou muito a Clint na sua escalada como diretor. O seu princípio, no entanto, a julgar pelos seus filmes anunciadores da trajetória como cineasta, não oferece sinais do realizador que viria a ser. Em 1971, consegue financiamento para rodar Perversa paixão (Play misty for me), thriller sobre um radialista que se vê perseguido por ouvinte apaixonada, um exercício de suspense sem que se enxergue, nele, nada de extraordinário, mas a rotina comum aos filmes do gênero. Já a segunda tentativa, a de fazer um western fantasmagórico em O estranho sem nome (High plains drifter, 1972), com ele próprio e Verna Bloom, tem um cuidado visual que lembra Leone, e uma dinâmica no estabelecimento da ação que remete a Siegel, além do tema que beira, na tradição do gênero, o sobrenatural. O terceiro empreendimento, Interlúdio de amor (Breezy, 1973), melodrama sobre um homem de meia-idade (William Holden) que se apaixona por jovem (Kay Lenz) faz parecer que Clint, além de híbrido, é prolixo, considerando a salada de gêneros nos filmes dirigidos: um thriller fraquinho, um western com ponta inteligente, e um melodrama com clima seco.
Seria preciso esperar alguns anos para se ver em Clint um cineasta, pois Escalado para morrer (The eiger sanction), ação, cinema em movimento, de 1975, ainda não apresenta nada para surpreender. Josey Wales, o fora-da-lei (The outlaw Josey Wales, 1976), outro western, apesar de passar batido por uma crítica em busca das celebridades já carimbadas, e incapaz, como acontece sempre, salvo as exceções de praxe, de descobrir talentos, é filme interessante e muito acima da média, capaz de fazer ver o nascimento, em The outlaw Josey Wales, de um verdadeiro cineasta (e quem não acreditar pode tirar a dúvida no DVD). Clint trabalha ao lado de sua então esposa Sondra Locke (que depois viria, também, a dirigir, mas filmes insignificantes, à sombra do marido), que também aparece no filme seguinte, Rota suicida (The gauntlet, 1977), thriller de grande força, que, além de proporcionar excelente entretenimento, dá a seu diretor a oportunidade de conjugar ação e ironia, ironia e ação.
Os que se seguem são fitas menores, obrigatórias, porém, na missão da sobrevivência: Bronco Billy (1980), Firefox, a raposa de fogo (Firefox, 1982), Impacto fulminante (Sudden impact, 1983), uma aventura de Callaghan dirigida por ele mesmo, que Clint filma para fazer caixa para um projeto mais ambicioso e com menos possibilidade de ser apoiado por um grande estúdio.Para os que não enxergaram, e não conseguiram ver, que a semente do Clint cineasta estava em Josey Waley, seu filme de partida foi considerado em outro western, sombrio e magnífico, autoral, O cavaleiro solitário (Pale rider), em 1985. Neste, já se mostra que existe uma narrativa que transcende o mero entrecho fabular, fazendo despontar um pensamento que se faz imagem em movimento. Com o gênero em franca decadência, para não dizer desaparecido, a bilheteria lhe foi madrasta, precisando corrigir as burras de sua produtora com produto para consumo rápido: O destemido senhor de guerra (Heartbreak ridge, 1986).
É a partir de Bird que começa a ascenção de Clint Eastwood como diretor aclamado e respeitado. Mas, como se vê, antes realizou muita coisa boa.

8 comentários:

Humberto Ilha disse...

Excelente texto; parabéns. Humberto Ilha.

Jonga Olivieri disse...

O valor de Eastwood está na forma como construiu seu valor a partir de uma gênero "marginal" à sua época. Aos poucos foi se firmando e marcando o seu espaço. Admirável.

Vejo que temos uma nova enquete. Votaria em Chaplin, mas, juro Tati me faz balançar na decisão final. Admiro demais a sua obra, a sua sutileza e força de um personagem tão forte quanto o vagabundo. Pensarei um pouco mais antes de cravar um dos dois...

Ailton Monteiro disse...

Bela aula sobre autor, artesão, estilista. Eu mesmo sempre confundi. E sei que tem gente que não vai concordar com a sua categoria dada a Spielberg. hehehe. Quanto a Clint. Acho que já em JOSEY WALES o autor estava lá. Mas a primeira-obra prima dele pra mim é seu segundo filme: O leoniano ESTRANHO SEM NOME.

Stela Borges de Almeida disse...

A postagem apresenta informações importantes sobre a filmografia de Clint Eastwood. Gostei e aprendi.
Porém, quanto as demarcações dos critérios de distinção entre autor, estilista e artesão me parece que são critérios avaliativos ainda em construção, são medidas heterogêneas que ainda não qualificam o desempenho do cineasta. Sei que há um grande debate sobre a política do autor, debate inclusive datado e visando criar um estatuto para a carreira do cineasta/realizador. Mas os autores possuem um estilo próprio, marca que os destinguem dos demais, daqueles que trabalham num plano meramente artesanal, menos sofisticado, menos elaborado. Acho que o texto da postagem poderia avançar numa discussão de onde parte as definição desses critérios classificatórios ( em si, problemáticos) buscando evitar as valorações que polarizam “os bons” , “os maus” e os “fraquinhos”. Os argumentos que antecedem estas valorações evitam escalas/classificações que por definição são (in) classificáveis. Ou não?

André Setaro disse...

Não creio que os critérios avaliativos são medidas heterogêneas para qualificar os desempenhos dos cineastas. Basta uma investigação filmográfica na obra de determinado realizador para se saber se se trata de um autor, de um estilística ou de artesão. É verdade que a 'Politique D'Auteurs' foi excessiva a premiar como autores meros estilístas ou artesãos. Mas há estudos significativos a respeito, entre os quais o do americano Andrews Sarris, que podem 'balizar' um sistema de avaliação mais adequado. Para ser autor, um realizador precisa ter uma visão de mundo e uma visão de cinema. Caso você, Stella, queira investigar se Bergman é um autor, basta ver uma boa parte de sua filmografia e notar, nela, se há constantes temáticas e estilísticas. Não é uma questão redutora a 'bons', 'maus' e 'fraquinhos'. Um verdadeiro autor tem um universo ficional próprio e uma maneira particular de o explicitar através das imagens em movimento. Uma maneira própria de 'dizer'. Já o estilista não possui propriamente um universo ficcional próprio, mas tem constantes estilísticas que podem ser verificadas em seus filmes. Já o artesão não tem nem universo ficcional singular nem um estilo. Há que se conjugar o tema com o estilo para se ter, como resultado, um autor. Mas isso não quer dizer que um autor é, necessariamente, melhor que um artesão. Os autores geralmente são os grandes cineastas mais notórios (Visconti, Fellini, Chaplin, Welles...), mas pode acontecer de um determinado realizador ser um autor, mas um autor que não se comunica e vive em torno de seu próprio umbigo. E pode acontecer também que um artesão seja capaz o suficiente de permitir ao espectador a emergência da emoção. Tudo, neste caso, é muito relativo. E a crítica cinematográfica não possui 'códigos' regulamentadores para definir e tipificar, como faz a lei ordinária, a excelência ou não de um artista que pretende se expressar através do veículo cinematográfico. No final das contas, creio que o importante é que o filme lhe envolva e lhe convença. Se você 'acreditar' no que viu, penso que o realizador se sentiria plenamente compensado. O valor cinematográfico de uma obra está determinada pela maneira pela qual o realizador articula os elementos da linguagem cinematográfica e não, como se pensava, pelo seu tema 'nobre'. Nada mais inexato do que se concluir que um filme é bom porque trata de 'coisas belas e úteis'.

Jussilene Santana disse...

Setaro, fiquei com uma questão: Kubrick seria artesão, estilista ou autor? Sim, porque variação temática é o que mais encontramos em sua obra...Sei que vc já deve ter respndido isso uma penca de vezes, mas faltei a estas aulas...

grande beijo

p.s: e como faço para te dar um livro? gostaria muito de contar com sua apreciação.

Jussilene

ARMANDO MAYNARD disse...

Caro Setaro, o Clint Eastwood, logo em suas primeiras atuações, começou a chamar atenção, pelo jeitão que imprimia nos papéis que interpretava. Era o tempo dos "faroeste espaghete", do seu amigo Sérgio Leone, que se vivo fosse, muito se orgulharia, de ver o ator e autor que se tornou aquele "mocinho". Além de ser um bom ator e diretor,o Clint é uma pessoa muito repeitada e querida no seu meio, com seu comportamento discreto e repeitoso. Um abraço, Armando

André Setaro disse...

Cara Jussilene,

Stanley Kubrick é um exemplo perfeito de como um realizador cinematográfico pode ser autor a incursionar por diversos gêneros. À primeira vista, poder-se-ia pensar que é um estilista tanta a variedade de gêneros cinematográficos pelos quais pautou a sua filmografia.Mas, bem observado, pode-se ver, nos seus filmes, a imperfeição humana como temática maior e norteadora de suas obras fílmicas.

Cid José Machado dos Santos Junior, em artigo sobre Kubrick (http://www.mnemocine.com.br/cinema
./crit/kubrick_cap2.htm) aponta com
acerto as constantes temáticas encontradas na filmografia do autor de "A laranja mecânica":

_ a guerra, que está presente em mais da metade de seus filmes;

_ a desumanização, processo de redução da personalidade humana a algo bruto e fundamental;

_ a obsessão, em seus mais variados matizes e que inevitavelmente leva a personagem à destruição, como uma hybris (ousadia desmedida) do modelo de tragédia grega clássica;

_ criação/ciência e destruição, relação na qual uma leva à outra: a evolução da ciência conduz ao desequilíbrio entre o alto grau de desenvolvimento tecnológico e o atraso moral da humanidade;

_ violência social, analisa os mecanismos sociais da contenção dos desejos individuais afim de moldar o sujeito;

_ as relações de poder, que retratam a segmentação social e os conflitos de classes;

_ a solidão, compreendida como condição humana universal, seja num quartinho de pensão, no meio do campo de batalha ou no vácuo do espaço sideral.