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04 abril 2008

Reflexão sobre Glauber Rocha



Recebi do "velho" Tuna Espinheira a reflexão lúcida e coerente que transcrevo abaixo de autoria de Alexei Bueno. Na Folha de S. Paulo de hoje, sexta, na Ilustrada, também Carlos Heitor Cony escreve sobre o autor de Deus e o diabo na terra do sol. Segundo pude entender, um dos integrantes do Casseta & Planeta, numa exibição recente de um filme de Glauber no Rio de Janeiro, gritou que Glauber "é uma merda". O tal integrante, que trabalha também num programa no GNT, Marcelo de não-se-o-quê, suscitou o texto abaixo e a crônica conyana. Merda, digo eu, é A taça do mundo é nossa. Por concordar em gênero, número e grau com Alexei Bueno, faço questão de dar, aqui, sua reflexão, à publicação, a pedir licença. Abrindo as imprescindíveis aspas:
"O que é a arte? perguntou Tolstoi num famoso e estranho livro da sua fase mística. Para que serve a arte? não para os outros, o que é muito claro, mas para os que a criam, e num país pleno de energúmenos como o nosso, pergunto eu? Glauber Rocha, recentemente chamado de “uma merda” por um palhaço, fez Deus e o Diabo na Terra do Sol aos 24 anos de idade. Esse filme, para além da sua beleza indescritível, é uma síntese da nacionalidade que não só abarca todo o passado como chega – o famoso dom “profético” de Glauber - até nossa contemporaneidade, assim como passará além dela. É impossível, a não ser para os cegos, não ver o retrato do irracionalismo popular dividido entre a religião e a violência que há no filme, e não perceber que o Beato Sebastião e o Corisco que nele estão se transformaram no Bispo Macedo e no Fernandinho Beira-mar da nossa triste conjuntura. Aos 27 anos, Glauber fez Terra em transe, o maior filme sobre política da história do cinema, no caso sobre o subdesenvolvimento político e a tragédia dos que, conscientes, vivem nele. Mas, ora, ninguém o entendeu, qualquer flashback, e ainda mais um filme que é inteiro um flashback, é demais para a astúcia dos nossos conterrâneos, inclusive intelectuais que lêem com a maior naturalidade o mais arrevesado romance de vanguarda, mas saem de um filme no meio se ele tiver a mais ínfima inversão de ordem direta na narrativa. Aos 29 anos fez Glauber O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, fecho dessa trilogia genial, filme de uma precisão de mise-en-scène coletiva em planos-seqüência como só vi um tanto semelhante no Oito e meio de Fellini. Um importante e inteligente articulista disse recentemente que o filme era chato, essa grande reflexão estética. Já vi indivíduos dizerem que a Odisséia era chata, o Dom Quixote era chato, que a Divina Comédia era chata, que a Quarta Sinfonia de Brahms era chata, que o Grande sertão: veredas era chato, que a Missa em si-menor de Bach era chata, etc. etc. Conheci mesmo um que dizia – e era comunista, membro do Partidão – que o Encouraçado Potiônkim era chatíssimo. Uma merda deveria ser de fato Eisenstein para conseguir fazer um filme que dura uma hora, com 1.500 planos, e mesmo assim ser tão chato. Uma merda igualmente o Glauber do Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, filme onde vemos uma cidadezinha do sertão ser invadida por uma coréia de beatos famintos, comandados por uma santa; onde um matador de cangaceiros se encontra com o último deles, desafia-o e fere-o de morte; onde há um Coronel cego, que é corneado pelo delegado a quem domina; onde o mesmo Coronel chama seus jagunços para massacrar todos os beatos; onde a amante, flagrada, mata o delegado em praça pública com cinqüenta punhaladas; onde o cangaceiro ferido agoniza como o Cristo, e é deixado como que crucificado num mandacaru; onde um professor bêbado e a mulher do delegado fazem um ménage à trois com o cadáver do próprio, perante o padre, que se transformará por sua vez num revoltado, cena de necrofilia lírica única na história do cinema; onde os beatos são todos massacrados, a partir do que se prepara um duelo final, titânico, entre o professor e o matador de cangaceiros, de um lado, e o Coronel e todos os jagunços do outro, uma das maiores seqüências corais da história do cinema; onde o pobre Preto Antão se transforma num novo São Jorge e mata, a cavalo, com uma lança, a figura maligna do Coronel cego, no meio de uma praça, etc. etc. De fato, se Glauber, com tudo isso acontecendo em menos de duas horas, conseguiu fazer um filme chato, deve estar na mesma categoria de Eisenstein para o comunista. Esse filme, que conquistou a Europa – apesar do substrato histórico cultural que ela não conhece, e que nós deveríamos ter obrigação do conhecer – esse filme sobre o qual disse, magistralmente, o Osservatore Romano, fazer a fusão exata da tragédia grega com a elisabetana, esse filme com que Glauber ganhou o prêmio de Melhor Diretor em Cannes, esse filme que reuniu um dos mais admiráveis grupos de atores do nosso cinema, Joffre Soares, Maurício do Valle, Othon Bastos, Emmanuel Cavalcanti, Odete Lara, Hugo Carvana, com uma fotografia colorida de uma beleza poucas vezes igualada, etc. etc., é chato, e basta.

Citei três filmes para nem, citar o resto, nem os admiráveis livros sobre cinema que Glauber deixou, nem nada. Glauber morreu com 42 anos, já lá se vão 27. Poderia estar vivo e bem agora, com 69, ter seguido a sua vida na Faculdade de Direito de Salvador, e assim não seria hoje chamado uma merda. Disse o mesmo articulista que seus filmes não são para a geração do palhaço que o chamou de uma merda, nem para a dos avós do mesmo. Não sei o que é arte fashion, arte para “tal geração”, vejo e revejo os filmes de Griffith, Murnau, Abel Gance, Dreyer, Eisenstein, Pudovkin, Dovchenko, Stroheim, Epstein, Clair, Keaton, Chaplin, Lang, Fellinni, Buñuel, Bergman, Godard, Pasolini, Truffaut, Glauber, etc. etc. etc. com suprema emoção estética, a mesma que tive aos ver pela primeira vez Deus e o Diabo na Terra do Sol, aos 13 anos, no dia 15 de janeiro de 1977, no Cineclube Macunaíma, na ABI, dia que mudou toda a minha visão sobre o cinema, assim como leio Homero, Camões, Balzac, Proust ou Kazantzákis com a mesma estesia; como olho para a pinturas de Lascaux, para as das múmias de Fayum, de Caravaggio, de Rembrandt, de Van Gogh, de Picasso com o mesmo entusiasmo; ou ouço Bach, Haendel, Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert, Brahms, Wagner, Stravinsky, Bartok, Chostakóvitch como se meus contemporâneos fossem. Não se tem o direito de xingar Glauber? Claro que sim. Qualquer um pode chamar de uma merda o Aleijadinho, Machado de Assis, Raul Pompéia, Euclides da Cunha, Villa-Lobos, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Guimarães Rosa, etc. etc. O direito ao desprezo abissal, no entanto, esse também é sagrado. Talvez o grande cinema brasileiro seja o de A Copa do Mundo é nossa, do grupo Casseta. O que é, simplesmente, mais desagradável, mais deselegante, no caso de Glauber, é que essa merda tem uma mãe viva, uma senhora de quase noventa anos que perdeu uma filha aos 13, de leucemia, uma outra, a bela e saudosa Anecy, aos 34, caída num poço de elevador, e o seu último filho, a merda em questão, aos 42, graças a uma obra-prima da medicina lusitana. Felizmente, cada um sabe escolher quem é a merda de sua preferência."

7 comentários:

Anônimo disse...

Encontrei TERRA EM TRANSE nesse site para baixar gratuitamente. O filme está em formato RMVB cuja definição é inferior, mas vale a pena. Há vários clássicos para baixar. Aí vai o link:

http://cinemacultura.blogspot.com/search/label/Letra%20T

Jonga Olivieri disse...

Excelente o artigo, que não somente mostra a extensão da obra de Glauber, que não foi apenas um "puta" dum cineasta, como um escritor fantástico, um pintor genial e um desenhista de primeira.
Dona Lúcia Rocha reuniu tudo isso aqui no Rio, em Botafogo, mais precisamente na rua Sorocaba para quem quiser apreciar e comprovar o todo da sua vasta obra.
Gostei também do "palhaço", referindo-se ao Marcelo (não é Madureira?), que também se não for, será Ramos ou Cascadura, em suma um subúrbio qualquer desses da vida.
Ele sim, uma "promessa" abortada, pois o grupo que começou muito bem nos tempos do "Planeta Diário", perdeu-se na engrenagem castradora e pasteurizante da Rede Globo. E terminou com a morte do Bussunda, o único que tinha algum talento e genialidade como cômico e não um simples "palhacinho".
Mas, palhaço por palhaço sou mais o Carequinha, que pelo menos era a "alegria da garotada" e ele, Marcelo "sei lá o quê", é o verdadeiro merda no sentido mais amplo do termo, o "famoso" Quem?...

Jonga Olivieri disse...

Cheguei à conclusão que o nome dele é Marcelo MERDoreira!
Um prepotente esboço de comediante, que consegue ser cômico nas suas prepotência e pretensiosidade.
E tenho dito.

André Setaro disse...

Ruy Castro hoje, sábado, dia 5 de abril, na Folha de S.Paulo. Transcrevo a crônica:

RUY CASTRO

Viúvos de Glauber
RIO DE JANEIRO - São Paulo, com mais a fazer, não tomou conhecimento de uma discussão que sacudiu setores do Rio na semana passada -talvez umas 18 pessoas- e que, em outros tempos, teria provocado um sismo no pensamento nacional: a declaração do humorista do "Casseta" Marcelo Madureira de que Glauber Rocha era "uma merda".
Estivéssemos em 1978, não 2008, e pode-se imaginar o arranca-rabo que essa frase teria provocado. Artistas começariam a se estapear pelos jornais; a USP promoveria um ciclo de debates; os "Cadernos do Cebrap" tirariam edições extras; a CNBB seria chamada a arbitrar; haveria uma noite de vigília no Teatro Oficina; e o assunto logo renderia teses de doutorado na Unicamp.
E com razão. O que estaria em pauta não seria o conteúdo da afirmação, se Glauber seria ou não "uma merda", mas o direito de Marcelo proferi-la. Afinal, pouco antes naquela época, o cineasta Cacá Diegues tinha detonado as patrulhas ideológicas, garantindo-nos o direito de pensar a contrapelo do "politicamente correto".
Trinta anos depois, esse direito acaba de ser contestado. Ao ouvir a imprecação de Madureira, os viúvos de Glauber estrilaram. Levou-se "Deus e o Diabo" à ABI em desagravo, a família do baiano ameaçou processar e, como argumento fatal, alguém sentenciou: "As pessoas não podem sair falando qualquer coisa. Daqui a pouco vão dizer que Niemeyer é uma merda".
Ué, também não pode? Acontece que Glauber estava vivo em 1978, e muitos dos que hoje o defendem tinham acabado de romper com ele por sua surpreendente opinião de que o general Golbery, guru da ditadura, era um "gênio da raça". Golbery não fazia jus à tão alto conceito, mas ninguém podia impedir o incorretíssimo Glauber de jogar frases como aquela no ventilador.

André Setaro disse...

O 'velho' Tuna ataca outra vez. Posto aqui um comentário dele a seu pedido:

“Desarrumar o arrumado”
Glauber jamais deixou-se amestrar. Tanto na sua infatigável verve de polemico, sem papas na língua, quanto no seu fazer cinema. Anjo torto, gauche na vida, com a tempestuosa missão de desarrumar o arrumado. Na sétima arte criou obras-primas: Deus e o Diabo... O Dragão da Maldade... Di Cavalcanti. Semeou ventos, colheu tempestades, em meio a intelligentsia falada e escrita.

Passados 27 anos de morto, ainda assombra e incomoda. A viúvas não tiram o luto. Admiradores e detratores, divulgam textos e mais textos, normalmente requentados.

Dias atrás, numa sessão solene, em homenagem ao cineasta pela passagem dos 70 anos de nascimento (quando ele completaria 69), Geraldo Sarrno, convidado de honra para abrir o evento declarou: “É preciso desmistificar Glauber para que possamos entender melhor os seus filmes.”

Tuna Espinheira

Anônimo disse...

Concordo com tudo que foi dito - por todos - do Madureira, Alexei, Setaro e Tuna.

E como disse num texto, Fernando Pessoa, "Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado. Cada um me contou a narrativa de por que se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda a razão. Não era que um via uma coisa e outro outra, ou um via um lado das coisas e outro um lado diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao do outro. Mas cada um via uma coisa diferente, e cada um portanto, tinha razão. Fiquei confuso desta dupla existência da verdade".

O Rocha foi uma herança maldita para o cinema brasileiro, com aquela idéia de uma camera na mão e uma idéia na cabeça.

Não vejo nada de bonito na cena de necrofilia do dragão da maldade. Deus e o diabo me fez dormir no cinema (que sono gostoso foi). Terra em transe é uma unanimidade. PAra mim o melhor filme do Rocha.

Segundo o próprio Bueno, Cabezas cortadas, Leão de 7 cabeças e Idade da terra é mesmo melhor nem mencionar. Porque maculam a trilogia sagrada do Rocha de Deus e diabo, Terra em transe e Dragão da maldade.

Fala sério gente! Recentemente vi uma entrevista com Ivan Cardoso que dizia que o cinema novo acabou ficou obsoleto em 68. O relógio anda pra frente.

O problema do cinema brasileiro tem um nome e este foi Glauber Rocha, com sua estética intelecual.

Hoje o cinema nacional largou de vez essa estética e já está produzindo filmes que dialogam com o público em geral - e esse público voltou ao cinema - pra ver histórias bem contadas - ao invés de uma lição de semiótica e simbolismo.

Me desculpem, mas isso é verdade. Se o cinema nacional está onde está hoje - não foi por causa do Rocha. Considero Humberto Mauro, ou Mario Peixoto muito mais emblemáticos do que o Rocha. Até mesmo o Nelson Pereira mandou melhor que o Glauber nos filmes da mesma época - como Rio zona norte, vidas secas e rio 40 graus.

Se é pare ver filme com simbolismo eu prefiro ver Miramar do Bressane.

Foi mal, mas tanto a declaração do Madureira como suas opiniões expressam a mais pura verdade.

Agora fiquei confuso com a dupla existência dessa verdade....

Valeu Setaro,
exelente blogui e ótimas matérias.

Abs,
Bruno

Anônimo disse...

O Glauber tem três obras-primas (Deus e o Diabo, Terra em Transe, Dragão da Maldade), que o inscreveram definitivamente na história do cinema mundial. Se ele não tivesse feito mais nada além disso, continuaria igualmente com a importância que merece. Além desses três, gosto de Barravento, um bom primeiro filme, e de Câncer, uma interessante experiência no campo da estética do Cinema Marginal. Reconheço que os filmes dele dos anos 70 vão ficando progressivamente ruins e piores em relação um ao outro anterior - mas livro a cara do Di-Glauber, que acho uma pérola de transgressão cinematográfica. Enfim, considero Deus e o Diabo o melhor filme brasileiro de todos os tempos, superior a tudo que as gloriosas carrieras de Humberto Mauro, Nelson Pereira e outros no Brasil fizeram.

Abs,
Vlademir