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22 julho 2007

Introdução ao Cinema (5)


Domingo é dia da introdução ao cinema, embora isso não implique que não possam haver outras postagens. O fato é que, embora a morar na Bahia, detesto praia. A última vez que fui à praia data de trinta anos atrás, e fui por causa de uma namorada, que me obrigou a ir, ainda que irritado. Mas lá chegando, lembro-me bem, ao invés de ficar deitado na areia, postei-me, isto sim, debaixo de uma barraca e bebi a cerveja suficiente para o meu bem estar na época. A foto ao lado mostra Maria Schneider e Jack Nicholson no grande filme de Antonioni que vai citado no texto abaixo. Mas que não se perca tempo com firulas.
É fundamental insistir que a câmera intervém no plano da conotação sem, porém, modificar o plano da denotação. O exemplo do filme de Claude Chabrol, O Açougueiro, é cristalino nesse sentido. Assim, mesmo quando a discreta sugestão da câmera não é apreendida pelo espectador, o desenvolvimento da narrativa não se perturba, pois prossegue seu caminho ao abrigo de qualquer tipo de imprevistos, salvo a surpresa provocada pela habitual reviravolta final. E a surpresa, diga-se aqui, será tanto maior quanto menor tiver sido a atenção prestada pelo espectador aos sinais premonitórios lançados pela câmera através de seus movimentos alusivos. Se a narrativa lança sinais premonitórios, o espectador, porém, que, somente atento à fábula (a história, a trama) não percebe o discurso cinematográfico, tem uma surpresa, por assim dizer, maior do que o espectador mais atento ao desenvolvimento da narrativa paralela ao da fábula. Por outro lado, este último tem a possibilidade de contemplação da poética cinematográfica e de sua especificidade lingüística.

Nem sempre, no entanto, os movimentos de câmera são bem escondidos, ou, se se quiser, efetuados "nos bicos dos pés", pois há casos em que os movimentos, por evidentes, explícitos, eliminam o interesse pelo próprio desenrolar da narrativa. Em O Passageiro, Profissão Repórter (Professione Reporte, 1975), de Michelangelo Antonioni, quando o protagonista - que, sabe-se, tem a intenção de morrer - se estende sobre o leito do quarto do hotel onde está hospedado, aguardando o momento fatal, a câmera afasta-se gradualmente dele, dirigindo-se num lentíssimo travelling para o exterior do local, onde, de resto, não acontece nada de particular. Somente quando a câmera volta a trazer o espectador por uma via diferente para o interior do quarto, é que é dado se ver o corpo do homem sobre o leito já sem vida, morto. Neste caso, a morte do protagonista (interpretado por Jack Nicholson), em vez de ser mostrada de maneira direta, é sugerida pelo lento movimento que exprime, precisamente, o afastamento definitivo do homem em relação à vida.

A tensão criada por este efeito é, de longe, superior à que poderia produzir, por exemplo, a visão do homem moribundo em primeiro plano. Nos filmes dos grandes autores, como Michelangelo Antonioni - ver em Das Obras-Primas do Cinema uma análise de A Noite, Alfred Hitchcock, etc, a narrativa tem prepoderância sobre a fábula e, nestes casos, "é a câmera quem fala".

Por outro lado, a câmera pode optar por espiar as personagens desde o primeiro plano, seguindo-as silenciosa nas suas deslocações espaciais ao longo de toda a duração dos acontecimentos. Em Acossado, na seqüência que precede a traição final, a protagonista deambula no quarto onde acabou de dormir com o jovem procurado (ela, Jean Seberg, ele, Jean-Paul Belmondo) pela polícia e interroga-se em voz alta sobre a decisão a tomar. A câmera segue-lhe o vaivém até que ela abandona o local sob o pretexto de ir comprar leite. O comportamento ambivalente desta mulher tem sua significação pela oscilação da câmera.

Como se vê, quando a câmera se movimenta nunca o faz de uma maneira indiferente. As suas deslocações nas várias direções possíveis não correspondem a uma simples exigência de clareza ilustrativa, pois para a conseguir o travelling e a grua não são imprescindíveis. Estes correspondem exclusivamente ao nível da escrita fílmica, pois intervêm sobre o como e não sobre o objeto da representação. É certo que certos cineastas fazem um uso indiscriminado dos movimentos de câmera, principalmente do travelling, em função de alcançar efeitos espetaculares. Mesmo nestes casos, no entanto, nada impede que os movimentos de câmera se remetam para algo que se situa para além do conteúdo de determinado plano. Pense-se nos numerosos westerns em que a elevada mobilidade da câmera tem por único objetivo recriar por dentro o envolvimento homem-ambiente tão importante para a definição estilística do gênero correspondente. A função designativa assume papel de primordial importância. No entanto, quem poderá negar que a diferença que separa o modo como Anthony Mann faz mover a câmera daquele que é utilizado por John Ford é a mesma que separa duas visões diferentes do mundo?
O travelling, já disse Jean-Luc Godard, é uma questão de moral. O que evidencia, no cineasta de Acossado, que este movimento de câmera é revelador da personalidade de um cineasta, mostrando um ponto de vista específico. Bela Balazs, teórico húngaro do cinema, tem razão quando escreve que na telas do cinema, como no domínio da pintura, o fator determinante é a síntese entre a realidade objetiva e a personalidade subjetiva do artista. Esta personalidade se manifesta pelo enquadramento e pela escolha de um dado plano. Cada ângulo de tomada implica uma posição afetiva ou intelectual. É, pois, impossível, uma objetividade absoluta no filme. Tudo é ressonância pessoal que se é levado a compartilhar. A câmera pode, portanto, deslocar-se para trás e para adiante não tanto à procura de coisas interessantes para contar, mas à procura de um modo interessante de se as contar. O que é mais que uma diferença. E pode fazê-la conduzir por outrem (o travelling) ou sozinha (o zoom). Além disso, pode erguer-se em direção do céu e descer rente ao chão, consoante decida observar o mundo de cima ou de baixo. E a sua mobilidade não se esgota aqui. Pode a câmera também olhar em volta, isto é, efetuar movimentos panorâmicos através de rotações sobre o próprio eixo.

5 comentários:

Jonga Olivieri disse...

Mais uma vez o meu apoio e parabéns por mais este capítulo da série Ïntrodução ao cinema".
Justamente por ser resumida ela pode dar uma ampla contribuição a quem queira compreender a sétima arte.
Pelo menos enquanto ela sobreviver ao cinema ianque de nossos dias...

André Setaro disse...

Obrigado pelo incentivo, caro Jonga. Lembrei-me que você conheceu bem Walter da Silveira, quando de sua 'temporada baiana' nos já distantes anos 60. Recordo-me especialmente de uma projeção, no belo Convento do Carmo, de filmes de animação canadenses e tchecos. O público sentava num tablado, ao centro do convento, ou numa espécie de estrado, e os filmes eram projetados num ponto alto, forçando a cabeça do espectador. Em outra oportunidade, quando o Popular abrigou a programação do Clube de Cinema, na sala de espera, discutiu você, diplomaticamente, com o mestre, acerca de 'Uma lição de amor', de Ingmar Bergman, porque, um tanto quanto sectário, achava que Bergman era um cineasta 'burguês'. Os tempos eram outros, decididamente. Atualmente, como canso de me referir em artigos, o que predomina é a miséria cultural, a apatia, a ignorância, a desinformação, o caos.

Jonga Olivieri disse...

Lembro-me desta exibição dos filmes de Norman McLaren. Lembro até dos filmes mais marcantes, como aquele dos vizinhos brigando (com trucagens sensacionais), e o do microfone que se moviemnteav. Hilariantes.
Quanto a Bergman. Reformular é um sinal de inteligência. À época eu era mesmo bastante sectário. Hoje, o reconheço como um dos maiores cineastas de todos os tempos...

André Setaro disse...

Quando já indo embora da soterópolis, finda a 'quarentena', você ainda foi ver o lançamento de 'Terra em transe' no reformado Popular. Foi uma sensação. Depois, e registro aqui como fato importante para o conhecimento de todos, houve um debate na auditório do Jornal da Bahia, que ficava na Barroquinha, um debate sobre 'Terra em transe', quando os ânimos se exaltaram. Não havia meio termo: ou as pessoas gostavam ou detestavam. Mas no debate, cujas presenças eram de pessoas ditas intelecutalizadas, e naquela época o nível era muito maior, havia uma expressiva maioria que adorou o filme de Glauber. Lembro-me que o sol despontava no horizonte quando o debate acabou. Iniciado às 8 da noite, entrou madrugada adentro e acabou somente quando o dia finalmente raiou. Na época, Moniz Viana (tenho guardado o recorte mas não consigo localizar na minha extremada bagunça) fez uma crítica esculhambando o filme no 'Correio da Manhã'. Apesar de ter Moniz como um mestre da crítica, discordo completamente dele, pois considero 'Terra em transe' talvez o maior filme brasileiro, se não existisse 'Deus e o diabo na terra do sol'. O páreo é duro!

Cassiano Mendes disse...

Acompanho o jovem Setaro desde agosto de 1974, quando começou a assinar uma coluna diária de cinema na Tribuna da Bahia. Levou com ela mais de 20 anos até que, já aporrinhado do cinema contemporâneo, e com a redução de espaço determinada pelos principais jornais, além da perda de 'status' do cinema, que virou mera mercadoria, o jovem Setaro ficou reduzido a escrever, neste mesmo jornal, uma vez por semana. A Tribuna da Bahia, que na época do jovem Setaro era um jornal inovador e precursor, entrou em processo de franca decadência e atualmente é uma publicação, poder-se-ia dizer, 'de circulação interna'. Mas o que quero aqui é mostrar meu contentamento na descoberta deste blog, pois não sou muito navegante de internet e soube por amigos de sua existência. Hélas!!