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29 agosto 2011

Ainda há fogo sob as cinzas

Diante do sucateamento da mentalidade brasileira em todos os níveis, em todos os graus, em toda a latitude, cujo avatar de aferição sociológica está nos paredões promovidos pelo BBB (Big Brother Brasil) e congêneres, diante da violência importada made in U.S.A. (como assassinato brutal que matou mais de uma dezena de crianças e adolescentes, ocorrido numa escola de Realengo do Rio de Janeiro), diante da falência da Educação no Brasil, que promove a doutores, em alguns casos, indivíduos que talvez não fizessem bem o trabalho de contínuos em limpeza de banheiro de rodoviárias, e, principalmente, em se tratando de cinema, diante do lixo mastodôntico servido no mercado exibidor, resta, àquele que gosta da chamada sétima arte, com as honrosas exceções de praxe, rever filmes pretéritos no DVD. É o que fiz mês passado com dois filmes de Terrence Malick, o autor de A árvore da vida, que se encontra em exibição nos cinemas. 

Cineasta bissexto, Terrence Malick, o diretor de Terra de ninguém (Badlands), realizou, em quase quarenta anos, apenas quatro filmes: este de estreia, em 1973, Cinzas no paraíso (Days of heaven), que no lançamento do DVD virou Dias no paraíso, em 1978, e desapareceu, para ressurgir, redivivo, vinte anos depois, em 1998, em Atrás da linha vermelha (The thin red line). E mais outro. Caso raro na história do cinema, um realizador tão interrompido, de imensos hiatos entre um filme e outro, principalmente a se considerar um cineasta da envergadura de Malick, que possui aquilo que François Truffaut tanto prezava num diretor de cinema: visão de mundo e estilo particular, uma maneira própria de expressão pelas imagens em movimento. A sua obra-prima continua sendo Days of heaven, mas Terra de ninguém já aponta para um cineasta maduro, com domínio formal de seus recursos expressivos e um olhar abrangente sobre a chamada América Profunda. É um filme, Terra de ninguém, que faz parte de uma fase rica do cinema americano após o declínio do império dos grandes estúdios, quando surgiram obras independentes e com uma visão muito ácida do american way of life (Sem destino, de Fonda e Hooper, Cada um vive como quer, de Bob Rafelson etc).

A partir dos meados da década de 70, Hollywood, em crise profunda (mas uma crise que oferecia oportunidade para criações mais independentes e criativas, antes que independente se tornasse, como agora, apenas uma marca), foi salva por Spielberg, que, com sua varinha mágica, em Tubarão (Jaws), fez retornar o grande público ao cinema. Outro salvador da indústria cinematográfica, Georges Lucas, que, com suas guerras estrelares, estabeleceu um novo alento para os espetáculos hollywoodianos. Mas se, por um lado, Lucas instituiu a febre dos efeitos especiais, salvando a indústria, por outro, ele e Spielberg também são responsáveis pela infantilização temática que predomina no cinema contemporâneo. O problema reside na influência que exerceram nos executivos, que estabeleceram um padrão de pasteurização para os filmes oriundos da indústria cultural hollywoodiana. Se Lucas, como realizador, é péssimo, o mesmo não pode se dizer de Spielberg, que tem alguns filmes notáveis. Mas obras mais independentes, como Terra de ninguém e Cada um vive como quer foram saindo do mapa.

Terra de ninguém projeta Sissy Spacek (que anos depois viria a ter impressionante desempenho em Carrie, a estranha, de Brian De Palma, e, logo depois, ganhou um Oscar por O destino mudou sua vida), e, também, Martin Sheen (que viraria um astro após o atormentado personagem de Apocalypse now, de Coppola). Órfã de mãe, a solitária Holly (Spacek) vive com o pai (Warren Oates) numa cidadezinha do interior americano. Sua solidão, porém, de repente, desaparece, quando conhece, por acaso, um lixeiro, Kit (Martin Sheen), enamorando-se dele. Quando o pai dela tenta impedi-la de fugir com ele, Kit o mata e, depois de forjar um suicídio, incendeia o barracão. Os dois passam a viver na floresta, subsistindo por meio de roubos e assassinatos para escapar de seus perseguidores. O relacionamento do casal, no entanto, no itinerário da fuga, vai se deteriorando. O diretor se baseou em recortes de jornais que abordavam fatos reais ocorridos em Kansas em 1958.

Malick mostra com vigor personalidades doentias decorrentes do meio social asfixiante em que vivem. Retrato de recônditos habitacionais dos Estados Unidos, onde o viver não oferece perspectivas, mas, também, uma reflexão sobre a necessidade do amor em meio à solidão, Terra de ninguém possui uma estrutura narrativa plena de momentos fortes nos quais a câmara de Malick integra, com singular propriedade, o homem à paisagem. Seus planos gerais, principalmente os do deserto, são verdadeiros quadros pictóricos. Neste particular, alguns créditos são devidos à captação da luz do fotográfo Tak Fujimoto. Não é uma obra-prima, como alguns quiseram ver, mas um esboço de uma obra-prima, que seria Cinzas no paraíso.

Dias de paraíso (Days of heaven, 1978), de Terrence Malick, que foi lançado comercialmente nos cinemas com o título de Cinzas no paraíso, é o segundo filme do diretor, e considerado a sua obra-prima, realizado cinco anos depois de Terra de ninguém (Badlands, 1973), sua fita de estreia. Obra de rara beleza, com paisagens deslumbrantes em planos gerais que se assemelham a pinturas, tem uma narrativa cujo registro é evocativo (a narradora é a irmã do personagem principal, Richard Gere, uma adolescente de 16 anos). Malick se caracteriza por uma narrativa elíptica, que, com isso, evita a emergência do sentimentalismo, sempre o seu desenrolar tem um tom seco, cortante, a provocar, no máximo, emoções mudas. Days of heaven é um filme sobre a esperança e a alegria de viver que foram reprimidas no coração daquela que narra. E a impressão que deixa é a de que, pelo tom evocativo, o que ela narra é um pretérito que já se desmanchou no seu presente, deixando, porém, as suas marcas. É uma história, portanto, de uma busca pela colocação no mundo. Findos os dias de paraíso, o que resta é a amargura, a falta de perspectiva, e o futuro desconhecido. Com um cenário de infortúnios quase bíblicos: praga de gafanhotos, assassinatos, Days of heaven é uma obra singular dentro do panorama do cinema americano da década de 70.

Poucas vezes um realizador captou tão bem a paisagem do Texas, com a imensidão de seus espaços, os seus trigais. Cada enquadramento de Malick se assemelha, como disse, a uma pintura, tal a disposição dos homens e dos objetos no quadro. O cineasta é também um detalhista pela procura em dar densidade à ambientação, quer no exterior (os planos de detalhes dos gafanhotos, dos diversos animais que habitam a paisagem), quer no interior (os objetos da casa, dispostos no enquadramento como uma espécie de natureza morta - uma jarra com uma bebida vermelha e dois copos numa bandeja etc.). Mas o filme não teria a sua beleza tão pungente não fossem os diretores de fotografia Nestor Almendros (cubano que depois desse filme se afirmaria como um dos melhores iluminadores do cinema) e Haskell Wexler (que teve sua participação diminuída por questões de briga com o estúdio, mas iluminou metade do filme), dois artistas da luz, que se preocuparam em registrar quase todos os planos ao amanhecer ou ao anoitecer, com o objetivo de dar ao filme uma coloração de fogo. A partitura musical de Ennio Morricone é outro ponto alto com uma trilha que produz a sensação de saudade, de melancolia.
Cliquem na imagem!

A ação transcorre durante os anos que precederam a Primeira Guerra Mundial. Richard Gere (em um dos seus primeiros papéis - virou celebridade quatro anos depois em A força do destino, de Taylor Hackford) vive perambulando à procura de emprego com sua amante (Brooke Adams), e sua irmã adolescente (a excelente Linda Manz). Empregado como foguista em Chicago, tem um desentendimento com seu chefe e o mata. Resta-lhe fugir, ir para o Texas, onde se emprega numa plantação de trigo em época de colheita, cujo proprietário (Sam Shepard, ainda bem jovem, dramaturgo famoso, que se casou com Jéssica Lange) se apaixona pela sua mulher. Vindo a saber que o fazendeiro tem apenas um ano de vida, convence a companheira a se casar com ele para, depois, herdar o seu dinheiro. Mas não estava nos planos deles que ela viesse a se apaixonar pelo marido. A praga de gafanhotos é como uma premonição do desastre que se avizinha, com os realinhamentos emocionais que se refletem na personalidade da narradora.

2 comentários:

Jonga Olivieri disse...

Muito boa esta sua postagem.
Mas, independente de sua qualidade, você fala uma coisa que me marcou: o fato de que hoje somos dependentes das exibições solitárias nos aparelhos reprodutores de dvs's.
Ainda esta semana, após décadas, revi "Morangos Silvestres", obra prima de tantas outras idem de Bergman, graças ao lançamento da Folha de uma nova coleção de cinema europeu, nos moldes de outra em que publicavam livretos com obras do cinema mundial, incluindo o estadunidense em sua fase mais rica.
E é assim a vida do cinéfilo nos dias que se passam, em que o cinema tornou-se mais uma loja de 'fast-food' dentro de shoppings e o prazer que tivemos no passado em idas às salas perdeu muito de seu encanto (e até o seu cheirinho característico).

spring disse...

Caro André Setaro
O Terrence Malick é um dos meus cineastas favoritos e fixei-lhe o nome quando vi o "Badlands" aquando da sua estreia em Portugal, na década de setenta onde teve o título de "Noivos Sangrentos", mas infelizmente nunca vi o "Days of Heaven", jé "The Thin Red Line" / "A Barreira Invisível" é outra obra-prima absoluta do cineasta norte-americano.
Adorei ler o seu texto e já agora aproveito para confessar como é a vida do cinéfilo em Portugal, no seguimento do comentário anterior: vi ontem um filme do Steven Soderbergh numa sala de cinema, que se estreou em Portugal com dois anos de atraso "The Girlfriend Experience" e para além de mim e da minha mulher, só estavam mais dois espectadores na sala. Embora haja o dvd, não há nada como ver um filme na sala de cinema.
Cumprimenos cinéfilos
Rui Luís Lima