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06 novembro 2013

A falta que faz o CINE FUTURO

Por falta de apoio, pela primeira vez em 8 anos o Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual (que mudou de nome para Cine Futuro) deixou de ser realizado neste ano de 2013. Embora não querendo fazer comparações com outros eventos meritórios que se realizam em Salvador, o fato é que o Cine Futuro se destacou como o maior evento cinematográfico que a Bahia já realizou. A ausência do seminário pode ser considerada mais um sintoma da miséria cultural que assola a velha província. Reunindo centenas de pessoas (basta ver a imagem acima do Teatro Castro Alves totalmente lotado em seus mais de 1.500 lugares), com convidados da maior importância do ponto de vista do pensamento cinematográfico do exterior, o Cine Futuro naufragou na inépcia daqueles que, patrocinadores da cultura, não souberam dimensionar a sua importância e a sua relevância para a cidade atualmente tão desprovida de eventos culturais significantes. O que diz, por exemplo, a Secretaria Estadual de Cultura sobre a não realização do Cine Futuro? Há recursos, no entanto, para o patrocínio de festivais pelo Brasil afora (do ponto de vista dos patrocinadores federais), e, hoje, vê-se eventos em qualquer cafundó de Judas no grotões desse Brasil que está ficando cada vez menos varonil.

O idealizador e organizador do Cine Futuro, José Walter Pinto Lima, agente cultural, que, com sua gestão à frente do Departamento de Cinema (DIMAS) da Fundação Cultural do Estado da Bahia, programando a sala da Biblioteca Central nos anos 80, conseguiu dar, com a exibição de obras importantes da história do cinema, continuidade ao trabalho de Walter da Silveira ao proporcionar aos baianos a visão de filmes de alta qualidade. Apesar de não gostar de aparecer, o empenho de Walter Lima, à frente da promoção do bom cinema, é inegável, principalmente quando, em 2005, deu início ao Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, que, a princípio na Reitoria da Ufba, logo, no ano seguinte, passou a ser realizado no Teatro Castro Alves.

Nenhum outro evento realizado na Bahia conseguiu, em toda a sua história, diga-se de passagem, trazer do exterior nomes importantes como Costa Gavras, Alain Bergala (o maior especialista em Godard, Professor da Universidade Paris III, ex-redator da revista Cahiers du Cinema), Celine Scemama (Mestre em Estética da Universidade Paris I), Lucrecia Martel (realizadora premiado de O pântano, um dos filmes argentinos mais insólitos dos últimos tempos), Michel Marie (ensaísta francês com diversos livros publicados), Antoine de BaeCque (autor da excelente biografia de François Truffaut e de extensas exegeses sobre a obra de Tarkovski), Charles Tesson (Professor de Estética da Universidade de Paris III), Robert Stam, Miguel Littin (o famoso realizador chileno responsável por Dawson - que foi produzido por Walter Lima - e que deu uma excelente oficina num dos seminários), Arlindo Machado, João Carlos Teixeira Gomes (Joca), Gilberto Vasconcellos, entre muitos outros. 

Segundo José Walter Pinto Lima, "o Festival Cine Futuro tem como base conceitual a apresentação de uma visão ampla sobre o fazer e o pensar da área cinematográfica; promovendo a convivência com realizadores, pensadores, críticos e técnicos; apresentando mostras de grandes cineastas e das recentes produções inéditas no país; estimulando a criação, premiando o melhor filme nacional e baiano de curta metragem, além de promover cursos e oficinas de formação profissional"

Vejam bem: fazer e pensar o cinema. Nos dias que correm, com o boom digital, faz-se muitos filmes sem, contudo, pensá-los. E um filme sem uma estruturação anterior às filmagens tem muitas chances de dar errado. A maioria dos filmes digitais que é apresentado nos eventos cinematográficos faz concorrência para a lixeira dos tempos. O que faz pensar, atualmente, é demodée, ultrapassado, já era, como uma jovem que ria o tempo todo na projeção de Um corpo que cai (Vertigo), de Hitchcock, em cópia luminosa e restaurada promovida pela Panorama que ora acontece na capital baiana.

04 novembro 2013

A decadência do cinema italiano

Annie Girardot e Alain Delon em Rocco e seus irmãos,  de Luchino Visconti
Vivia-se, nos anos de 1960, o auge do cinema italiano, com gênios indiscutíveis que conseguiam abafar outros criadores notáveis. A partir dos anos 80, no entanto, a cinematografia italiana entrou num processo de franca decadência e, atualmente, excetuando-se três ou quatro diretores (Tornatore, Bellochio - cujo Vencer/Vincere é quase uma obra-prima, Moretti...), pode-se dizer que o cinema italiano morreu dominado pela indústria cultural hollywoodiana.

No Brasil, por exemplo, não existe mais espaço para outras cinematografias que não a oriunda de Hollywood, principalmente porque o mercado exibidor é controlado pelas multinacionais. O que não acontecia décadas atrás, quando o mercado lançava películas francesas, italianas, japonesas, espanholas etc. Havia distribuidoras importantes que se dedicavam à importação de filmes europeus, a exemplo da famosa Art Films, que proporcionou aos cinéfilos brasileiros a oportunidade de ver grandes obras da cinematografia italiana. A Toho, entre outras, distribuía fitas nipônicas. A Condor, por exemplo, também se especializava em distribuir filmes vindos da Europa. Tudo isso hoje acabou. Um blocksbuster, nos dias atuais, quando lançado, toma conta de todo o circuito com mais de 500 cópias.

Para os filmes franceses, a França Filmes do Brasil e a Companhia Cinematográfica Franco-Brasileira. Quase todos os filmes da Nouvelle Vague, por exemplo, tiveram as suas estreias patrocinadas pelo canal distributivo da França Filmes, que foi substituída pela Franco-Brasileira, e, alguns anos depois, pela Gaumont.

Mas o cinema italiano não se restringia apenas a Roberto Rossellini, Michelangelo Antonioni, Luchino Visconti, Federico Fellini ou, mesmo Pier Paolo Pasolini. Havia uma cultura cinematográfica, por assim dizer, na qual estavam em atividade excelentes realizadores como Mario Monicelli (O incrível exército de Brancaleone, A grande guerra, Pobre e milionários, Os companheiros...), Dino Risi (Aquele que sabe viver/Il sorpasso, Vejo tudo nú, Férias à italiana...), Florestano Vancini (Enquanto durou o nosso amor,  O delito Matteoti...), Mauro Bolognini (O belo Antonio), Damiano Damiani (O sicário, O batom, O dia da coruja...), Valerio Zurlini (Verão violento, A moça com a valise, Dois destinos, A primeira noite de tranquilidade, O deserto dos tártaros...), Bernardo Bertolucci (Prima della rivoluzione, O último tango em Paris, O conformista...), Marco Ferreri (A comilança...), Sergio Leone (Era uma vez no Oeste, Quando explode a vingança, Era uma vez na América...), Gillo Pontecorvo (A batalha de Argel, Queimada...), Ettore Scola (Ciume à italiana, Casanova e a revolução...), os importantíssimos irmãos Paolo e Vottorio Taviani (Pai patrão, Aconteceu na Primavera, A noite de São Lourenço...), Mario Bava (A maldição do demônio, Hércules no centro da terra...), Carlo Luzzani, Dario Argento (Terror na ópera, Giallo...), Steno (das comédias com Totó), Luciano Salce (Casei contigo por divertimento...), Francesco Rosi (O bandido Giuliano, O caso Mattei...), Vittorio Cottafavi (A revolta dos gladiadores...), Renato Castellani (Romeu e Julieta...),  Elio Petri (Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita, A classe operária vai ao paraíso, Os dias são numerados...), Alberto Lattuada (Em nome da lei, Venha tomar um café conosco...), Pietro Germi (Divórcio à italiana, O ferroviário, Aquele caso maldito...), Francesco Masseli (tem um filme que vi com Paulette Godard cujo nome esqueci), Vittorio De Sica (Ladrões de Bicicletas, A viagem proibida, O juízo universal, Os girassóis da Rússia...). Acho melhor parar por aqui, pois há ainda outros nomes dessa brilhante constelação de cineastas.

O que aconteceu ao cinema italiano? Deslumbrou o mundo a partir dos meados dos anos 40 com a explosão do neorrealismo, configurando um novo modo de expressão cinematográfica que traumatizou toda uma geração. Os postulados neorrealistas influenciaram movimentos ou escolas que lhe foram posteriores, a exemplo do Cinema Novo, Free Cinema Inglês, e, mesmo, a Nouvelle Vague. A falência do cinema italiano é impressionante. Não se pode compará-lo ao americano, que não cabe comparação, mas separação, e excetuando-se o cinema feito nos bons tempos de Hollywood, a cinematografia italiana já foi, e de longe, a mais expressiva de toda a história do cinema. Onde se pode encontrar um cinema único, original, como o de Fellini? E a estética perfeccionista dos filmes-óperas viscontianos, o cinema de poesia pasoliniano, a anti-narrativa de Antonioni?

A Itália já teve um dos estúdios cinematográficos mais importantes do mundo: o Cinecittà, complexo de teatro e estúdios situados na periferia oriental de Roma (a 9 km de distância). Federico Fellini, em alguns de seus filmes, refere-se ao Cibecittà. Até os americanos, para aproveitar a mão de obra mais barata, filmou algumas de suas grandes produções no Cinecittà: Quo Vadis? de Mervyn LeRoy (1949) e o majestoso Ben Hur, de William Wyler, foram rodados nesse grande estúdio, além de uma mega como Cleópatra, de Joseph L. Mankiewicz Recomendo que se faça uma visita a seu site: www.cinecitta.com

O cinema italiano de sua boa época exportou astros e estrelas, que foram filmar em Hollywood, a exemplo da diva Sophia Loren, Gina Lollobrigda, Elsa Martinelli, Claudia Cardinale e atores de primeiríssimo nível como Vittorio Gassman e Marcello Mastroianni. Mastroianni é um ator essencialmente cinematográfico, que sabe, como poucos, dialogar com a lente, com a câmera, enquanto Gassman, apesar de excepcional intérprete, carrega o ranço teatral. Há outros atores e atrizes que não podem deixar de serem registrados: as belas Rossana Schiaffino, Eleonora Rossi Drago, Catherine Spaak, Gian Maria Volonté, Enrico Maria Salerno, Saro Urzi, Ugo Tognazzi, Nino Manfredi, Totó, Renato Salvatori etc.

O capitalismo selvagem, que impõe um consumo desenfreado de forma imperativa através dos meios de comunicação de massa, após a queda do Muro de Berlim, é, talvez, o responsável pela perda cada vez mais crescente do humanismo de um modo geral e particularmente no cinema. E o cinema italiano se caracterizava justamente por este humanismo, principalmente no esplendor de seu neorrealismo. Não cabem mais, para mentes descrentes de um porvir mais humano, e condicionadas ao consumo, ao egoísmo, ao prazer imediatista, filmes que possam oferecer uma reflexão sobre o momento histórico, o homem e sua circunstância. Os filmes viraram montanhas russas, o homem desapareceu de sua paisagem, restando apenas títeres e marionetes que comandam a ação, o fio condutor da trama.



29 outubro 2013

Facom homenageia Alexandre Robatto, Filho

O CineFacom homenageia nesta quarta-feira, dia 30/10 o cineasta Baiano Alexandre Robatto, Filho, com a mostra especial de dois filmes do cineasta: Vadiação e Entre o Mar e o Tendal, recentemente restaurados pelo cineasta Petrus Pires que também terá seu filme documentário sobre Alexandre Robatto: Os filmes que não fiz exibido na Mostra Audiovisual dos Estudantes da UFBA.

27 outubro 2013

A necessidade do "timing"



Há realizadores que possuem timing surpreendente e, entre eles, William Friedklin (Operação França, O exorcista, Viver e morrer em Los Angeles...), John Schlesinger (Maratona da morte, Morando com o perigo...), John Frankenheimer (o dos bons tempos, como em Sob o domínio do mal, Sete dias de maio, O segundo rosto/Seconds...) etc. A maioria, no entanto, não o possui, e o possível timing que se apresenta é um trabalho exaustivo da montagem cujo fito é ritmar o filme. Mas é um timing forçado que, paradoxalmente, deixa de ser timing. O realizador, que tem timing, faz com que seus filmes passem a impressão de que um fio elétrico de alta tensão está inserido na estrutura narrativa. Mesmo em momentos de calmaria, há sempre uma expectativa de que algo possa acontecer. Para não falar em Hitchcock, cujo timing é fortíssimo. Intriga internacional (North by Northwest, 1959), que estava a rever em DVD, é um dos filmes mais perfeitos do século XX em matéria de construção formal, de timing. Neste particular, o cinema brasileiro precisa aprender a ter timing, pois poucos os diretores capazes de dotar os seus filmes de ritmo preciso. Friedklin, por exemplo, e para ficar só nele, faz filmes de alta tensão, que envolvem o espectador, deixando-o preso na poltrona. Geralmente, sói acontecer que uma pessoa, sem saber precisar a razão, acha um filme chato (e estou falando aqui de um filme médio, um thriller, por exemplo, que não se concebe sem timing)

Mas, falando sobre a pessoa que acha determinado filme chato sem saber a razão, o fato é que o considera aporrinhante porque o filme não possui o timing suficiente para atraí-la. Estupefato fiquei quando da exibição de Maratona da morte (este é de Schlesinger, não confundir), filme visto de esguelha por uma crítica novidadeira, mas cujo timing, perfeito, agarra o espectador. Friedklin, entre outros, evidentemente, é o responsável pelo timing do primeiro O exorcista (1974). A cena mais assustadora, por exemplo, pelo timing do cineasta, é quando, por incrível que possa parecer, Linda Blair se submete a exames, com as chapas da radiografia batendo forte, as injeções no pescoço. O realizador faz da sessão de exames uma cena de puro terror pelo uso da montagem bem articulada e do som, principalmente este.

Tropa de elite 2, de José Padilha, com todas as críticas que podem ser feitas (e o filme é bom!), não se pode negar que possua um vigoroso timing. Creio mesmo que o estrondoso sucesso de público esteja na capacidade do diretor de articular a narrativa em ritmo de thriller. No cinema brasileiro, o Cinema Novo, que, apesar de tantas obras importantes que gerou, incutiu em boa parte dos cineastas a ânsia autoral, que se constatou contraproducente. E a ânsia autoral fez com que muitos realizadores se esquecessem do trabalho de construção do filme em função de tomadas demoradas que, pensavam eles, seriam marcas de seus gênios impressas nas imagens em movimento. Para conquistar o mercado, no entanto, é preciso que haja filmes bem construídos artesanalmente, que envolvam o público, que façam deste um cúmplice do espetáculo. Nesse particular, José Padilha acertou em cheio.

Planejado no roteiro, que contém todas as tomadas em ordem cronológica e precisamente numeradas, a filmagem, não obedece, todavia, ao que está estabelecido no papel. O cineasta, tendo em vista, além de outros fatores, a exequibilidade e a viabilidade econômicas, começa a filmar a partir de qualquer tomada do roteiro - pelo meio, pelo fim, pelo começo. A tarefa de ordenar os diversos fragmentos de um filme cabe a uma etapa do processo de criação do cinema muito importante, qual seja a montagem. Que, grosso modo, pode ser definida como o trabalho de reunir as partes do material filmado de acordo com a ordem estabelecida no roteiro. O montador edita o filme, isto é, faz uma reconstituição da primeira à última imagem, colando ponta com ponta e na ordem numérica os diferentes pedaços de película, que foram revelados e impressos numa "cópia de trabalho". Geralmente são colados em seguida pedaços de filme que reproduzem planos diferentes, até completar uma cena. Há, portanto, dentro da mesma cena, diversas mudanças de plano - e de um plano para outro se verifica uma descontinuidade rápida chamada corte.

A montagem não se limita - longe disso - a um simples trabalho de cortes e colagens: é também, e sobretudo, uma criação. Linguagem do realizador, ela, a montagem, impõe um estilo e revela uma visão original do mundo. A montagem, segundo a ótica de Bretton, preside a organização do real visando satisfazer simultaneamente a inteligência e a sensibilidade, provocando, com isso, a emoção artística, o efeito dramático ou onírico: faz malabarismos com o tempo e o espaço, com cenários e personagens (trucagens e dublês). É o elemento mais específico da linguagem cinematográfica, "o fundamento estético do filme", segundo Pudovkin. Os grandes cineastas e estetas (Eisenstein, Pudovkin, Balazs, Arnheim, etc) esforçaram-se em estabelecer a nomenclatura dos diversos processos de montagem e em analisar seus efeitos psicológicos.


Mas vamos ficar apenas na montagem rítmica, que visa criar ritmo ao filme, alternando os tempos fortes com os tempos fracos, dando ordem e proporção no espaço e no tempo. O ritmo resultado do movimento das imagens entre si e da convergência entre o movimento da atenção do espectador e o das imagens. Um plano, conforme observou o ensaísta francês J. P. Chartier, não é percebido da mesma maneira do começo ao fim. A princípio, é reconhecido e situado; é, digamos, a exposição. Vem então um momento de atenção máxima em que a significação, a razão de ser de um plano, é captada: gesto, palavra ou movimento fazem o desenvolvimento progredir; em seguida, a atenção baixa, e, se o plano se prolongar, nasce um momento de aborrecimento, de impaciência. Se cada plano for cortado no momento exato da baixa da atenção para ser substituído por outro, a atenção será sempre mantida, o filme terá ritmo. O que chamamos de ritmo cinematográfico não é, portanto, a apreensão das relações de tempo entre os planos, mas a coincidência entre a duração de cada plano e os movimentos de atenção que ela suscita e satisfaz. Não se trata de um ritmo temporal abstrato, mas de um ritmo de atenção, conclui Chartier. A percepção intuitiva do ritmo pelo espectador nasce da sucessão dos planos, segundo as relações precisas criadas pelo cineasta (e montador). É do ritmo que a obra cinematográfica extrai sua ordem e sua proporção, sem o que não teria ela as características de uma obra de arte. 

22 outubro 2013

Uma perversa exclusão

Se formos fazer uma comparação entre o número de salas exibidoras que Salvador tinha em 1958 e o que tem atualmente, a conclusão é uma só: os cinemas estão fechando suas portas. Com uma população de, mais ou menos, quinhentos mil habitantes, a província possuía em torno de quase trinta salas, considerando, no cômputo final, as de primeira linhas, os ‘poeiras’ da Baixa dos Sapateiros e os cinemas de bairro. Para arredondar o raciocino, que se coloque trinta salas em 1958 para quinhentos mil habitantes, sendo que cada uma delas tinha, em média, mil poltronas, variando entre as salas maiores, de quase duas mil cadeiras, como o Guarany e o Jandaia, e as menores, que beiravam a mil lugares. Para não haver crescimento das salas exibidores, e considerando, sempre, a densidade demográfica, nos dias que correm – e como correm!, com uma população de dois milhões e quinhentos mil habitantes – e, aqui, nivelando por baixo, Salvador deveria ter, no mínimo, cento e cinqüenta salas, pois a sua população, entre 1958 e 2005, aumentou cinco vezes. O cálculo é simples. Multiplica-se as trinta salas do passado por 5 e se tem o número de cinemas que a cidade deveria ter e, repetindo-se, sem haver crescimento. Mas atualmente o que se tem é um máximo de vinte e cinco salas e cada uma com um máximo de 400 lugares, a maior parte se localizando nos complexos chamados Multiplex.

Então que se faça uma nova contagem, considerando que cada cinema, em 1958, tinha em média mil lugares e, hoje, trezentos. Trinta vezes mil, em 1958, é igual a trinta mil. Que se coloque, para ficar bem claro, em números inteiros: tinha-se, na província, nesta época, 30.000 lugares e, se o número for multiplicado por cinco, porque a população cresceu cinco vezes, tem-se o número redondo de 150.000. Este, o número que, para não se constatar crescimento, mas, apenas, manutenção, deveria a cidade possuir em número de lugares. Mas o que se tem atualmente? Com a média de 400 lugares e 25 salas, fazendo-se a multiplicação, o resultado é de 10.000 lugares. Que diferença brutal!

Se antigamente o povo ia muito ao cinema, hoje, como disse Gustavo Dahl no recente seminário internacional de cinema e audiovisual, não tem acesso a ele. O cinema, que era um meio de comunicação de massa, atualmente é um veículo cujo acesso somente é possível pela elite. Antes, existiam os cinemas de primeira linha, lançadores, que ficavam concentrados no centro histórico, os poeiras da Baixa dos Sapateiros e os de bairro. Luiz Carlos Barreto, que conhece muito bem a mercadologia cinematográfica, afirmou, em recente entrevista no Canal Brasil, que o ingresso custava em torno de um dólar e, nos cinemas de segunda, cinqüenta centavos. É como se hoje o ingresso para entrar numa das salas do Multiplex custasse dois reais e cinqüenta centavos, a inteira, a inteira! Mas quanto custa realmente? Em torno de quatorze reais. Como uma pessoa que ganha a miséria do salário mínimo pode freqüentar as salas de exibição? Ir com a família ao cinema? Nem pensar.

O Plano Real dolarizou a economia de uma forma perversa. O povo está excluído do cinema, assim como a chamada classe média baixa. A conclusão é estarrecedora e reveladora: apenas dez por cento da população baiana pode ir ao cinema, sendo que dois milhões e tanto de pessoas estão completamente fora da rota cinematográfica. Constatou-se, em pesquisa recente, que a maioria dos baianos nunca foi ao cinema. Um grupo organizou uma sessão cinematográfica num bairro periférico e o que se viu foi espantoso. As pessoas ficaram maravilhadas pelas imagens em movimento, pois estavam a contempla-las pela primeira vez. E isto aconteceu na região metropolitana de Salvador!

Na década de 50, o Brasil tinha perto de dez mil salas exibidoras. Em 1975, já se contavam apenas cinco mil. No ano passado, chegou a mil e novecentos. Os cinemas interioranos fecharam suas portas. Assim como aqueles de rua, como os antigos e inesquecíveis da Baixa dos Sapateiros e os de bairro. O que se constata é que os cinemas estão sendo construídos para o usufruto de uma elite que pode pagar os quatorze reais de ingresso, ainda a se refestelar com as guloseimas caríssimas que lhe são oferecidas no ‘fast food’. O público se infantilizou e se idiotizou. Ir ao cinema, antes um ritual, uma solenidade, uma ‘função’, atualmente é comparável a uma ida ao ‘fast food’.


Triste país!

20 outubro 2013

Uma neta recorda a avó


A mãe do cineasta José Umberto Dias, que faleceu na semana passada, Dona Marizete Freire Dias, trabalhou em um filme de seu filho, Voo interrompido, realizado em 1969, e que é considerado por Álvaro Guimarães (o diretor de Caveira, my friend) o primeiro filme marginal baiano. Ela faz a mãe de Sonia Goulart, a personagem principal, uma moça do interior que vai para a cidade grande em busca de melhores oportunidades de vida e acaba como empregada doméstica e, a seguir, torna-se prostituta num processo de decadência vertiginosa. O filme, no entanto, transcende esta sinopse por causa de sua estrutura audiovisual preenchida através de uma linguagem cinematográfica promotora de uma desordem na ordem cronológica para se assemelhar mais a um cinema-poesia em oposição ao cinema-prosa. Esta desordem narrativa é que promove o filme a conter, nele, uma produção de sentidos que transcende o mero relato. Voo interrompido, por sua importância no panorama do cinema baiano, precisa urgente de uma revisão. Transcrevo aqui o que a neta de Dona Marizete, Maíra Vergne Dias, escreveu sobre a sua querida avó, que o tempo, sempre implacável, a levou. Com esta publicação, faço também a minha homenagem a Dona Marizete, que conheci quando das filmagens de Voo interrompido, pois fui um dos assistentes de direção e também figurante nos seus fotogramas.

Maíra Vergne Dias [neta] escreve sobre a avó Marizete Freire Dias:

marizete nasceu em um feriado nacional. não deve ter sido por acaso. 

só conheci marizete após os seus 50 anos. na verdade, ela que me conheceu de imediato, porque eu a fui desvendando enquanto eu crescia. interessante saber que já havia tanta vida nela antes que pudéssemos compartilhar nossas experiências.
com o passar do tempo, fui me acostumando a ser mal acostumada por ela, que sempre me fazia todas as vontades, como é costume dos avós fazerem. principalmente avó com neta única (até então) de filho único.
minha infância é carregada de memórias de vó marizete, com quem eu sempre passava as férias escolares. e era com esses encontros que nos aproximávamos, cada vez mais. era tanto apego que, quando eu ia embora, ela sempre chorava, aos soluços.
depois de deixar a infância pra trás, como é da vida, minha frequência de visitas diminuiu. obviamente, ela sentia muito mais minha falta, e sempre deixava isso claro, por ela mesma, por toda a vizinhança e pelos parentes, cujo primeiro comentário ao me ver era frequente: 'sua vó te adora, não para de falar em você'.
a vida foi um pouco injusta com minha vó, que adorava a ideia de ter uma família grande, mas que foi duas vezes viúva e teve apenas um filho. ela apreciava todas as tradições familiares, mas teve o azar de ter filho e netos que não ligam muito pra isso. adorava preparar muitos doces - e comê-los -, mas arrumou uma neta que não é muito fã deles, e que fazia careta quando ela oferecia a sobremesa.
mas ela complementava as faltas familiares com sua popularidade. sim, marizete era pop. conhecida de toda a vizinhança, a casa dela nunca passava um dia sem visita. independente, gostava de ter suas coisas, mandar nelas, fazer o que quisesse quando tivesse vontade. mas, no seu discurso manhoso de saudade de vó, sempre fazia um apelo dramático de solidão.
a energia de minha vó foi sendo diminuída com a velhice, como é natural. no hospital, onde esteve nesses últimos dias para se despedir da vida, era evidente a tristeza do seu olhar. e eu, que pude vê-la nesse cenário, apesar de momentos de forte esperança egoísta de tê-la sempre viva, sempre minha, fui sendo surrada pela razão que insistia em me convencer de que estava próximo o fim de uma vida de deliciosa convivência. o meu até breve, com carinho nos seus cabelos de cachos brancos, era, na verdade, um adeus. eu não sabia, mas ela sim. na longa viagem de volta para a vida que escolhi ter, a razão venceu minha esperança. e, desde então, anestesiada, espero esse momento passar, certa de que essa sensação de que um pedaço que agora me falta, na verdade nunca saiu de mim.

te amo para sempre, vó.
descanse em paz.

*7/9/1926 +15/10/2013


Foto: "Vôo Interrompido", filme de José Umberto, 1970. Marizete Freire Dias, atrás, toda de preto, Sonia Goulart e o grande Carlos Alberto Vaz de Athayde.



16 outubro 2013

O roteiro cinematográfico e suas assombrações

Texto do realizador cinematográfico baiano TUNA ESPINHEIRA

"A Gênese de todo projeto cinematográfico é o roteiro, espelho do filme a ser rodado. É através deste desenho técnico que a produção tem régua e compasso para a análise técnica e o orçamento, condição obrigatória para um projeto pronto. 

O script, no que pese a sua registrada importância, não tem luz própria, não é um fim em si mesmo, qualquer grau de valor que lhe venha a ser atribuído, de mediano a excelente, como queiram, fica o dito pelo não dito, ele só terá sopro de vida se for filmado. É na tela luminosa do escurinho do cinema, esculpido em imagem em movimento, que ele pode dizer a que veio. Sua natureza pertence à área meio, peça motriz, mas não linguagem artística, ou vira filme, ou se transforma em alma penada. 

Também o roteiro não possui qualquer tipo de poção mágica capaz de garantir o bom resultado do filme. Scripts inexpressivos já renderam boas fitas, assim como, outros alçados a níveis ideais, decepcionaram no produto final. O que, sem dúvida, apenas segue a uma regra geral a toda arte, é o “como fazer” que conta, no papel de molho milagroso, no calor da hora de urdir a obra. Mas, pelo sim e pelo não, a coisa mais inteligente é ter nas mãos um script bem construído. Roteiro ruim atrai o mau agouro e costuma levar o filme para o atoleiro. É de bom alvitre escrever, reescrever, vezes muitas, esta peça que vai ser a bússola, patuá, conselheira e guia, na caminhada das filmagens, sempre um contrato de risco, e aí, um bom roteiro sempre poderá soprar ventos favoráveis para que Lá Nave Vá. 

Na vasta maioria das nossas produções, com referência ao baixo orçamento, o roteiro tem de afinar com esta agônica circunstância, casar como música e letra, administrar a farinha pouca, vacilou o bicho pega. Criatividade é urdir o roteiro certo para que o filme não fique a meio do caminho. 

Nos  estúdios de Hollywood, o roteiro costuma ser seguido regiamente, com gente espionando as filmagens para garantir que todos os itens do script sejam cumpridos. O mais incrível é que, conseguiram, com margem de erro mínima, o tempo de duração de um filme, mesmo estando em estado de escritos ainda cunhados em papel. Como o ovo de Colombo, a receita é simples: digitar em PAPEL CARTA, FONTE COURRIER, 12, formatado com 3 cm subtraídos da parte superior, o mesmo na inferior, 4 cm na margem esquerda e 3 cm na direita. Elaborado nos parâmetros da técnica especifica do roteiro moderno, por incrível que pareça, no cômputo geral, cada página do script se traduzirá em um minuto do produto final em imagem em movimento. Era só o que faltava para que, o setor de pesos e medidas, aproximasse o roteiro cinematográfico, da lâmpada de Aladim. 

Finalizando: é preciso ter o corpo fechado para escrever um roteiro..."

Tuna Espinheira 

12 outubro 2013

Genial comédia de Frank Tashlin

Assim como Richard Quine, Frank Tashlin é um comediógrafo com lances geniais no cinema americano da década de 50. Em muitos de seus filmes, tem sua inspiração nos cartoons. Avant la lettre praticou a metalinguagem com uma espirituosa dose de sátira. Seu melhor trabalho talvez esteja em Em busca de um homem (título mal colocado para o original  Will Success Spoil Rock Hunter?, 1957, com Tony Randal e Jayne Mansfield), que antecede Se meu apartamento falasse (The apartment, 1960), de Billy Wilder. Outros filmes do cineastas podem lhe dar a dimensão devida: Artistas e modelos (Artists and Models, 1955), com Jerry Lewis (dirigiu muitos filmes deste comediante {Errado para cachorro, O rei dos mágicos, Ou vai ou racha, Bancando a ama-seca, Cinderelo sem sapatos etc) é considerado por Lewis o seu mestre na elaboração da gag), O homem do Diner's Club ( The man from the Diners' Club, 1963, entre muitos outros. 

Assista aqui em versão completa do extraordinário Sabes o que quero (The girl can't help it, 1955), com Edmond O'Brien, Tom Ewell, e Jayne Mansfield. Um gangster contrata um agente de imprensa para fazer a sua namorada loira bombshell uma cantora dando a ela um prazo mínimo de  em 6 semanas. Mas o que é que ele vai fazer quando descobrir que ela não tem talento? E o que vai acontecer quando os dois se apaixonam?


08 outubro 2013

A produção de sentidos via montagem

A chama montagem ideológica ou intelectual é uma operação com um objetivo mais ou menos descritivo que consiste em aproximar planos a fim de comunicar um ponto de vista, um sentimento ou um conteúdo ideológico ao espectador. Eisenstein escreveu na justificativa de sua montagem de atrações: "uma vez reunidos, dois fragmentos de filme de qualquer tipo combinam-se inevitavelmente em um novo conceito, em uma nova qualidade, que nasce, justamente, de sua justaposição (...) A montagem é a arte de exprimir ou dar significado através da relação de dois planos justapostos, de tal forma que esta justaposição dê origem à idéia ou exprima algo que não exista em nenhum dos dois planos separadamente. O conjunto é superior à soma das partes".

Amparado nestes ditos de Eisenstein, há de se ver que, no cinema, como em quase todos os ramos das ciências, quando se reúne elementos (no sentido amplo) para obter um resultado, este é freqüentemente diferente daquele que se esperava: é o fenômeno dito de emergência. Aprende-se, por exemplo, em biologia, que pai e mãe misturam seu patrimônio hereditário para criar uma terceira personagem não pela soma desses dois patrimônios, mas, ao contrário, pela combinação deles em um novo patrimônio inédito. Em química, sabe-se ser possível misturar dois elementos em quaisquer proporções, mas não é possível combiná-los verdadeiramente em um corpo novo se não tem proporções perfeitamente definidas (Lavoisier). Da mesma forma, na montagem de um filme, os planos só podem ser reunidos numa relação harmoniosa.

A montagem ideológica consiste em dar da realidade uma visão reconstruída intelectualmente. É preciso não somente olhar, mas examinar, não somente ver, mas conceber, não somente tomar conhecimento, mas compreender. A montagem é, então, um novo método, descoberto e cultivado pela sétima arte, para precisar e evidenciar todas as ligações, exteriores ou interiores, que existem na realidade dos acontecimentos diversos.

A montagem pode, assim, criar ou evidenciar relações puramente intelectuais, conceituais, de valor simbólico: relações de tempo, de lugar, de causa, e de conseqüência. Pode fazer um paralelo entre operários fuzilados e animais degolados, como, por exemplo, em
 A Greve (1924), de Eisenstein. As ligações , sutis, podem não atingir o espectador. Eis, aqui, um exemplo da aproximação simbólica por paralelismo entre uma manifestação operária em São Petersburgo e uma delegação de trabalhadores que vai pedir ao seu patrão a assinatura de uma pauta de reivindicações (exemplo extraído do filme Montanhas de ouro, do soviético Serge Youtkévitch).

- os operários diante do patrão
- os manifestantes diante do oficial de polícia
- o patrão com a caneta na mão
- o oficial ergue a mão para dar ordem de atirar
- uma gota de tinta cai na folha de reivindicações
- o oficial abaixa a mão; salva de tiros; um manifestante tomba.

A experiência de Kulechov demonstra o papel criador da montagem: um primeiro plano de Ivan Mosjukine, voluntariamente inexpressivo, era relacionado a um prato de sopa fumegante, um revólver, um caixão de criança e uma cena erótica. Quando se projetava a seqüência diante de espectadores desprevenidos, o rosto de Mosjukine passava a exprimir a fome, o medo, a tristeza ou o desejo. Outras montagens célebres podem ser assimiladas ao efeito Kulechov: a montagem dos três leões de pedra - o primeiro adormecido, o segundo acordado, o terceiro erguido - que, justapostos, formam apenas um, rugindo e revoltado (em
 O Encouraçado Potemkin, 1925, de Eisenstein); ou ainda a da estátua do czar Alexandre III que, demolida, reconstitui-se, simbolizando assim a reviravolta da situação política (em Outubro).

O que Kulechov entendia por montagem se assemelha à concepção do pioneiro David Wark Griffith, argumentando que a base da arte do filme está na edição (ou montagem) e que um filme se constrói a partir de tiras individuais de celulóide. Pudovkin, outro teórico da escola soviética dos anos 20, pesquisou sobre o significado da combinação de duas tomadas diferentes dentro de um mesmo contexto narrativo. Por exemplo, em Tol'able David (1921), de Henry King, um vagabundo entra numa casa, vê um gato e, incontinente, atira nele uma pedra. Pudovkin lê esta cena da seguinte forma: vagabundo + gato = sádico. Para Eisenstein, Pudovkin não está lendo - ou compreendendo o significado - de maneira correta, porque, segundo o autor de
 A Greve a equação não é A + B, mas A x B, ou, melhor, não se trata de A + B = C, porém, a rigor, A x B = Y. Eisenstein considerava que as tomadas devem sempre conflitar, nunca, todavia, unir-se, justapor-se. Assim, para o criador da montagem de atrações, o realizador cinematográfico não deve combinar tomadas ou alterná-las, mas fazer com que as tomadas se choquem: A x B = Y, que é igual a raposa + homem de negócios = astúcia. Em Tol'able David, quando Henry King corta do vagabundo ao gato, tanto o primeiro como o segundo figuram proeminentemente na mesma cena. Em A Greve ( Strike ), quando Eisenstein justapõe o rosto de um homem e a imagem de uma raposa (que não é parte integrante da cena da mesma forma que o gato o é em Tol'able David, porque, para King, o gato é um personagem),esta é uma metáfora.

Em
 Estamos construindo (Zuyderzee, 1930), de Jori Ivens, várias tomadas mostram a destruição de cereais (trigo incendiado ou jogado no mar) durante o débacle de 1929 da Bolsa de Valores de Nova York, a depressão que marcou o século XX. Enquanto apresenta os planos de destruição de cereais, o realizador alterna -os com o plano singelo de uma criança faminta. Neste caso, o cineasta, fotografando uma realidade, recorta uma determinada significação. Os planos fotografados por Jori Ivens podem ser retirados da realidade circundante, mas é a montagem quem lhes dá um sentido, uma significação. Os cineastas soviéticos, como Serguei Eisenstein e Pudovkin, procuravam maximizar o efeito do choque que a imagem é capaz de produzir a serviço de uma causa.

Considerada a expressão máxima da arte do filme, a montagem, entretanto, vem a ser questionada na sua supremacia como elemento determinante da linguagem cinematográfica com a introdução - em fins dos anos 30 - das objetivas com foco curto que permitiu melhorar as filmagens contínuas - a câmera circulando dentro do plano - com uma potenciação de todos os elementos da cena e com um tal rendimento da profundidade de campo (vide
 Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, Os melhores anos de nossas vidas, 46, de William Wyler) que possibilitou tomadas contínuas a dispensar os excessivos fracionamentos da decupagem clássica. A tecnologia influi bastante na evolução da linguagem fílmica, dando, com o seu avanço, novas configurações que modificam o estatuto da narração - o próprio primeiro plano - o close up - tão exaltado por Bela Balazs como "um mergulho na alma humana" - com o advento das lentes mais aperfeiçoadas já se encontra, esteticamente, com sua expressão mais abrangente e menos restrita. Tem-se, como exemplo, as faces enrugadas e pavorosas de David Bowie em Fome de Viver/The Hunger, 1983, de Tony Scott, com Catherine Deneuve e Susan Sarandon.

06 outubro 2013

Notas ligeiras sobre Blake Edwards


Quem, se cinéfilo for, não se lembra dos desenhos animados das aberturas da série A pantera cor-de-rosa (The pink panther), com a partitura do maestro Henry Mancini? Último grande comediógrafo do cinema americano, com o desaparecimento de Edwards, a comédia requintada, elegante, ou com as loucuras do Inspetor Clouseau, deixa de existir. A bem da verdade, no entanto, há mais de 15 anos que Blake Edwards pendurou as chuteiras. Em 2004, ganhou um Oscar honorário pelo conjunto de sua obra, e, ao receber, foi ao palco conduzido por uma cadeira de rodas automática que andava em alta velocidade - como fosse mais uma gag delirante de seus filmes. Era casado desde novembro de 1969, há mais de trinta anos, portanto, com a excepcional atriz e cantora Julie Andrews, que dispensa apresentação.

A pantera cor-de-rosa tinha em Peter Sellers a sua mola propulsora a tal ponto que se poderia dizer que ele era quase co-autor dos filmes. Sellers era inexcedível na pele do desastrado Inspetor Clouseau. Insubstituível. Mas a indústria cultural hollywoodiana ainda teve a coragem de fazer uma ou duas refilmagens de A pantera cor-de-rosa, com Steve Martin (sim, é um bom comediante, mas não se pode substituir Sellers no personagem). Pior ainda fez o próprio Blake Edwards que, em seu último filme (melhor não o tivesse feito), nos anos 90, contratou o italiano Roberto (A vida é bela) Benigni para O filho da pantera cor-de-rosa, uma lástima em todos os sentidos.

Blake Edwards tem uma carreira versátil, embora seja mais conhecido como comediógrafo. Mas, em sua extensa filmografia, tem, além de comédias, thrillers (Peter Gunn, Escravas do medo/Experiment in terror), aventuras burlescas em ritmo de cartoon (A corrida do século/The great race), melodramas (As sementes do Tamarindo/The tamarindo seed), dramas pungentes (Vício maldito/Days of the wine and roses), western (Os dois indomáveis/Wild rovers, com William Holden e Ryan O'Neil), entre outros.

Nasceu em Tulsa (Oklahoma), descendente de pessoas ligadas ao teatro, foi colaborador de Richard Quine, príncipe da sofisticação e do requinte, com o qual aprendeu a arte de introduzir a finesse nos seus filmes. O ano de nascimento: 1922, mas somente começou a dirigir em 1955, já com 33 anos (Bring your smile along 0 que, parece, é inédito no Brasil).

A extensão de sua ficha filmográfica não permite que se coloque, aqui, todos os títulos. Vejamos os mais interessantesalguns inesquecíveis. Como Bonequinha de luxo (Breakfast at Tiffany's, 1961), uma adaptação do livro de Truman Capote sobre uma garota de programa novaiorquina que está prestes a se casar com um milionário, mas que se apaixona por seu vizinho (George Peppard). Mas ele é um escritor pobre e ela, fugindo a seus planos de enriquecer, apaixona-se e tem que optar entre a riqueza e o amor. Ela é interpretada por Audrey Hepburn que, como de hábito, dá um show de elegância e charme. Blake Edwards trata com muita suavidade um tema amargo, pois, na verdade, a mulher é uma prostituta.  Vi Bonequinha de luxo no cine Excelsior, que ficava na Praça da Sé, quando as salas exibidoras de primeira linha se concentram no centro histórico. Na saída, lembro-me bem, caiu um temporal violento. Mas, isto, outra história.

Considero o melhor filme de Blake Edwards Victor ou Victória?, comédia musical de grande inteligência, dotada de um incrível senso de humor para tratar da ambiguidade sexual (que faz lembrar, em outro tom, Quanto mais quente melhor, de Billy Wilder). Julie Andrews é uma cantora desempregada que conhece um cantor homossexual (o último papel do grande galã Robert Preston) e ficam amigos. Os dois planejam então montar uma farsa na qual ele irá apresentar Julie como um transformista, um conde húngaro. Mas as coisas se complicam quando um gangster (interpretado por James Gardner) se apaixona por ela. Belíssimo filme. 

Um convidado bem trapalhão (The party, 1968) é uma comédia já inscrita definitivamente na galeria das grandes obras do gênero. Sellers faz um ator indiano desastrado que destrói uma filmagem e, de repente, é convidado, por engano, para uma festa na mansão de um poderoso produtor hollywoodiano. O filme se passa quase todo dentro da festa, e Sellers consegue provocar uma desordem que acaba numa total bagunça, destruindo, com isso, o party.

O que escrevi aqui não chega a dar uma ideia da extensão da filmografia de Blake Edwards, que, sem dúvida, foi um dos grandes comediógrafos do cinema americano.

03 outubro 2013

Norma crítica: ser obscuro para parecer mais profundo



“A função do crítico não é trazer numa bandeja
de prata uma verdade que não existe, mas pro-
longar o máximo possível, na inteligência e na
sensibilidade dos que o lêem, o impacto da obra
de arte.”
ANDRÉ BAZIN

Creio que a tarefa dos críticos especializados em cinema – não considerando, aqui, os comentaristas meros aficionados – é a de atuar como mediadores entre a obra cinematográfica e o espectador comum, oferecendo um modelo de leitura da primeira e sublinhando os eventuais valores poéticos nela presentes. Refiro-me aos críticos que atuam em jornais e revistas ou que escrevem em suplementos culturais cujo público alvo não se restringe ao meio acadêmico. A função daqueles que escrevem sobre cinema é ajudar – e não complicar – ao leitor a percorrer o itinerário do filme com um mínimo de conhecimento linguístico – de modo a permitir que se reconheça, durante o trajeto, aquilo que é importante e o que não o é. Uma função, portanto, que, mesmo antes de se reportar à apreciação estética da obra considerada no seu conjunto, incide sobre a sua sucessiva racionalização, quer dizer, a tradução em termos lógico-discursivos do sentido poético que ela exprime através dos procedimentos de significação que lhe são próprios.

Sempre que não se queira ficar pelo desempenho de uma mera atividade de informação cronística – como sói acontecer no fracassado e desesperado jornalismo cultural, o crítico de cinema deve valorizar a obra examinada, fazendo emergir, dela, as suas valências ocultas e interpretando-as em ligação com o macrocontexto cultural em que a primeira vê a luz. Na condição, naturalmente, de que tal ação seja desempenhada com uma certa discrição a fim de garantir o respeito pelo texto fílmico contra o perigo de leituras forçadas e de distorções generalizadas, com o uso de ganchos que nada dizem, a exemplo de ‘roteiro enxuto’, ‘lugar comum’, etc – muito comum, aliás, nos neófitos que se arvoram em críticos nesta província da Bahia. De resto, a própria polivalência que caracteriza o filme, como sistema orgânico de sinais susceptível de múltiplas leituras, favorece a pluralidade interpretativa. Portanto, se o espectador normal se limita geralmente a ver um filme, o crítico lê-o por ofício e ajuda o primeiro a fazer outro tanto.

Porém, nesta sua função de intérprete e guia, o crítico de cinema deve contar com uma dificuldade resultante da natureza não-homogênea da linguagem escrita por ele utilizada relativamente à linguagem visual empregada pelo filme. Dificuldade esta que o intérprete dos textos literários não conhece, podendo entremear tranquilamente o seu discurso crítico com o do texto analisado em virtude da identidade linguística que preside a ambas as manifestações expressivas. Isto se mostra tanto mais intrigante quanto mais presente se tiver o caráter narrativo do filme, caráter assente nas outras artes visuais que também têm as suas práticas críticas correspondentes, não obstante serem igualmente irredutíveis às formas da linguagem verbal. A complicar ainda mais o caso está a natureza de linguagem sem língua – como gostam de dizer os semiólogos – que é típica do filme. De fato, a partir do momento em que não existe um sistema abstrato preexistente ao filme, mas, apenas, obras fílmicas isoladas, não parece possível – como acontece, pelo contrário, na análise dos textos literários – estimar o eventual afastamento, entre a parole-film e a langue-cinema, afastamento do qual derivaria a poeticidade do texto fílmico. Trocando em miúdos: é impossível distinguir entre um uso banal ou cotidiano da linguagem cinematográfica e uma sua utilização que obedeça a propósitos artísticos, e isto pela simples razão de que no filme o plano de denotação coexiste sempre com o da conotação e que, por conseguinte, não existe um grau zero da escrita fílmica a partir do qual se possam avaliar os eventuais afastamentos efetuados em sentido expressivo pela linguagem examinada.

Ainda que sem emitir, mas, nas entrelinhas, já emitindo, juízos valorativos, não acredito numa cientificização da crítica cinematográfica, quando o analista mais se assemelha a um cientista pacientemente a procurar significados na obra cinematográfica e, com isso, destruindo não apenas a emoção do filme – essencial em toda obra que se queira de arte – como também o prazer de ler o resultado da investigação. Sigo, desde sempre, as palavras do eminente jurista Vicente Rao – sou também formado em Direito e advogado de carteirinha, embora não saiba entrar nos labirintos forenses, quando escreveu no volume 60 de seus comentários ao Código de Processo Civil: “A clareza tem o direito de fazer parecer superficial, mas que não se infira desse aviso a conveniência de ser obscuro para parecer mais profundo.”

Estou a refletir sobre a condição de crítico que, no geral, é pedante e autoritário. Como fui um pouco neste texto.

01 outubro 2013

Cuíca de Santo Amaro

Cuíca de Santo Amaro, documentário dos baianos Joel de Almeida e Josias Pires, antes de ser um filme sobre a personagem lendária que dá título, é um extraordinária passeio pelas imagens da Bahia antiga e, também, a revelação para uma nova geração de como os soteropolitanos puderam viver num celeiro de artes e criatividade na Bahia dos efervescentes anos 50 e 60. Os realizadores, Almeida e Pires, estabelecem a estrutura audiovisual do filme apoiada em arquivos de imagens, fotos de jornais e dos livros de cordéis, e  em depoimentos de personalidades da terra. O resultado é gratificante para o espectador. O verdadeiro Cuíca somente aparece em imagens captadas de A grande feira (1961), de Roberto Pires. Mas como  fio condutor da narrativa há uma voz bem parecida com a de Cuíca, que passa, verossímil, a impressão de que é o próprio quem fala as suas diatribes peculiares. Poderiam os cineastas responsáveis ter procurado um ator que o representasse, mas a solução da voz creio mais engenhosa e eficaz. 

Apesar de parecer mais velho, Cuíca morreu com 57 anos de idade, pois nasceu em 1907, vindo a falecer em 1964. Figura, além de lendária, folclórica, com seus escritos em cordel. Homem de inspiração, era um crítico social, ainda que, no seu último decênio, deu-se a fazer propaganda para políticos interesseiros, tal o alcance de sua literatura peculiar.

Cuíca de Santo Amaro tem a sua última apresentação em Salvador amanhã, dia 2 de outubro, às 20 horas e 25 minutos, no Cinema do Museu (Corredor da Vitória).

Maiores informações no site:  http://www.cuicadesantoamaro.com.br/

29 setembro 2013

"A última estação", de Marcio Curi



Em Salvador, o filme está em cartaz no Espaço Itaú Glauber Rocha

Filme de inusitada importância no panorama do cinema brasileiro contemporâneo, A última estação é uma viagem interior de descoberta, uma obra de sentimento, construída com boa artesania por Marcio Curi, veterano da cinematografia nacional (tem uma filmografia cheia de títulos como diretor de produção, assistente de direção, inclusive ajudou muito a produção do cultuado Meteorango Kid, o herói intergalático, de André Luis Oliveira, entre muitos outros). Narra a trajetória de um adolescente libanês que vem tentar a vida no Brasil. Na tortuosa viagem de navio, faz amizade com vários companheiros árabes e sírios, mas, quando da chegada, cada um segue o seu caminho, a sua vida. Os anos passam. Meio século depois, já velho, e com a ajuda de sua filha, o adolescente do pretérito decide reencontrar aqueles que conheceu e faz uma viagem por várias capitais brasileiras. Filmado no Líbano e no Brasil, A última estação se insere como uma educação sentimental no ocaso da vida e, em alguns momentos, chega a lembrar Morangos silvestres, de Ingmar Bergman, porque a viagem do personagem principal tem, no seu itinerário, várias estações. Notar a presença, como ator, de Edgard Navarro como Joseph. Abaixo uma declaração do próprio autor sobre o seu filme:

 "Ao filmar essa delicada história de um homem comum, um imigrante libanês, movido por paixões bem simples, mas dono de uma vontade gigantesca, quis homenagear a um só tempo os libaneses (árabes) e os brasileiros. 

Os libaneses, pela capacidade de adaptação que os fez os imigrantes mais queridos. Por trazerem consigo, como diria Drummond, "apenas as duas mãos e o sentimento do Mundo". Pelo carinho e generosidade que espalham por onde andam.



Os brasileiros, por terem herdado da matriz lusitana o melhor da tradição mourisca transplantada para a Península Ibérica. Por serem sonhadores incansáveis. Por sofrerem as dores da "imigração" dentro do seu próprio País e, ainda assim, ostentar a fama de um povo feliz.



A Última Estação quer celebrar a amizade, a tolerância, a diversidade... Acredita na convivência harmoniosa entre raças, entre culturas, entre religiões. Celebra o encontro do homem com a mulher, do jovem com o idoso, do oriental com o ocidental. Sonha com um mundo em que a cultura da paz e da não violência una definitivamente a humanidade.



Convido todos a assistirem logo nos primeiros dias e garanto que sairão com uma vontade enorme de celebrar a vida. De aproveitar melhor o tempo e as pessoas queridas."



Marcio Curi - diretor

24 setembro 2013

Tv Dimas apresenta "Conversas Críticas com André Setaro"



A TV Dimas, já no ar no espaço virtual (http://www.tvdimas.ba.gov.br/), é um canal que pretende apresentar vídeos que discutam o cinema baiano. Criado pelo Departamento da Imagem e Som da Fundação Cultural do Estado da Bahia, coordenado atualmente por Marcondes Dourado, o canal tem já um pequeno acervo de depoimentos e conversas de diversos cineastas soteropolitanos (Edgard Navarro, José Umberto, Roque Araújo, outros). Numa dessas conversas, comigo, com este blogueiro, falo da crítica de cinema e de outros aspectos relativos à chamada sétima arte. O cigarro foi um coadjuvante bastante influente para a tentativa de fazer fluente o discurso.