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23 julho 2013

A evolução da linguagem cinematográfica

Da câmara fixa, parada, dos tempos dos Irmãos Lumière e de George Méliès, passando pela sistematização da linguagem cinematográfica com David Wark Griffith (O nascimento de uma nação, 1914, Intolerância, 1916), o cinema, que completou o seu centenário em 1995, sofreu, na sua trajetória, várias transformações em seu estatuto da narração. Do reinado da arte muda, quando se pensou o cinema ter alcançado a sua essência como linguagem, passando pela introdução do som – que, inegavelmente, modificou a arte do filme, a linguagem cinematográfica recebeu, na sua trajetória, influências da tecnologia, incorporando seus avanços.
Incorporando os avanços tecnológicos, o cinema conseguiu sair da supremacia da montagem para a profundidade de campo – a invenção das objetivas com foco curto permitiu a Orson Welles a ousadia de uma renovação estética em Cidadão Kane, ponto de partida da linguagem do cinema moderno. A profundidade de campo permitiu a utilização de filmagens contínuas sem a excessiva fragmentação da montagem anterior. Com a profundidade de campo, anuncia-se, uma década depois, a eclosão do modelo de Michelangelo Antonioni que, com sua trilogia A aventura – A noite – O eclipse, deu ao cinema uma nova maneira de pensar e um estilo de representar. O fracionamento deu lugar a demoradas incursões da câmera dentro da tomada, permitindo, com isso, maior poder de captar a alma humana nos seus devaneios e nas suas angústias como, também, com Roberto Rossellini, assaltar com a câmera o momento histórico, o instante real ¿ o cinema como instrumento de conhecimento da realidade.
A instalação da película pancromática (aquela dotada de maior sensibilidade) e a difusão de câmeras mais fáceis de manobrar mudaram a face do cinema e foram fatores que contribuíram para o advento do chamado cinema moderno. A câmera na mão, que veio a facilitar a apreensão da realidade, surgindo o cinema-verité, é uma conseqüência da tecnologia. A película pancromática, por mais sensível, fez com que os realizadores saíssem dos estúdios fechados e se intrometessem com suas câmeras nos exteriores mais recônditos, descobrindo, com isso, um cinema mais verdadeiro porque menos artificial.
Evidentemente que a tecnologia determinou uma transformação da linguagem cinematográfica, ainda que não venha a provocar a revolução estética que se verificou quando da passagem do cinema mudo para o sonoro. A tecnologia encontra-se, por exemplo, hoje, tão evoluída, que provoca no espectador uma impressão de realidade antes impossível de ser verificada (os dinossauros deverdade dos filmes de Spielberg: O parque dos dinossauros). Tem-se a estética cinematográfica quando a técnica se conjuga com a linguagem, instaurando-se, aí, o ato criador.
Se o cinema nasceu em 28 de dezembro de 1895, com a projeção pública do cinematógrafo efetuada pelos Irmãos Lumière, a linguagem cinematográfica somente veio a se consolidar, no entanto, vinte anos depois, em 1914/15 com O Nascimento de uma nação (The birth of a nation), de David Wark Griffith. Entre o seu nascimento e a consolidação de sua linguagem, o cinema passou por uma série de gradações evolutivas, com o descobrimento, aos poucos, dos elementos determinantes de sua especificidade como linguagem sem língua. Um cinegrafista de Lumière, Promio, andando numa gôndola em Viena, e observando o casario, inventou o travelling. Griffith, em alguns curtas da Biograph, ofereceu a expressão definitiva ao close-up. Edwin S. Porter, com sua narrativa ainda balbuciante, tenta a montagem e o enquanto isso que viria a desencadear um elo importante para a construção da linguagem cinematográfica. O fato é que a linguagem fílmica nasce a partir do momento em que se constatou que a câmera podia sair do lugar, que podia se movimentar, mover-se, dando origem, com isso, à mudança do ângulo visual. Outra conquista importante veio com a constatação pelos ingleses da escola de Brighton de que, para contar uma história, é preciso inserir um primeiro plano, um close-up, dentro de um plano geral, nascendo, com isso, a montagem. O grande sistematizador, porém, é David Wark Griffith, o pai da linguagem cinematográfica sem o qual, aliás, o cinema não existiria como é hoje praticado. O próprio Serguei Eisenstein deve muito a Griffith. Este, no frigir dos ovos, é muito mais importante do que o soviético, pois o grande criador, o inventor genial, o sistematizador preciso.
Esta descontinuidade real do cinema e que se transforma numa impressão de continuidade, de fluxo contínuo, é resultado de uma abstração inconsciente da linguagem cinematográfica pelo espectador. Este, acostumado aos filmes, absorve os seus truques de linguagem, contando que esta não fuja da padronização à qual está acostumado. O que significa dizer: se, antes, para fazer que o público compreendesse que um personagem estava se lembrando do passado era preciso a utilização de fumacinhas e de diversos artifícios – nunca o corte direto presente/passado como num flash-back moderno, o cinema da contemporaneidade abdica de qualquer artifício no sentido explicativo. Os lances de memória que tornaram incompreensível O ano passado em Marienbad (1961), de Alain Resnais, hoje estão sendo utilizados na publicidade televisiva. O puzzleproposto por Welles em Cidadão Kane é perfeitamente identificável em fitas desta suposta pós-modernidade.
Conta-se, entretanto, o caso de uma moça da Sibéria que, em visita a Moscou, julgou horrível o primeiro filme (uma comédia) que tinha visto em sua vida, porque “seres humanos eram despedaçados, as cabeças jogadas para um lado, os corpos para outro”. E quando Griffith mostrou os primeiros close-ups em um cinema, e uma imensa cabeça decapitada sorriu para o público, houve pânico na platéia. Aliás, quando da primeira projeção do cinematógrafo dos Lumiére, em 1895, um trem que se dirigia à câmera determinou que algumas pessoas, ainda que a pequenez da tela, o preto-e-branco nem tão real assim, se escondessem assustadíssimas, debaixo das cadeiras – com medo de o trem sair da tela e esmagá-las. Em dois filmes de 1948, Laurence Olivier (Hamlet) e Alfred Hitchcock (Festim diabólico/Rope) eliminam o corte, substituindo a descontinuidade das imagens por uma circulação incessante da câmera, que soluciona a velha contradição entre cinema e teatro. Em Crimes d’alma (Cronaca de un amore), Michelangelo Antonioni também renova a estrutura fílmica pela valorização da construção formal pelo movimento no interior de longas sequências e não mais pelo movimento de plano a plano.
Glauber Rocha também valoriza a construção formal pelo movimento no interior de longas sequências, ainda que Terra em transe seja filme de montagem sincopada, de planos curtos, com influência clara do cinema investigativo de Welles. A maioria dos filmes de Glauber Rocha, no entanto, revela um predomínio do plano-sequência – ao invés de ser dividido em cenas e diversos planos é feito numa única tomada. Isso levou Marcel Martin, ensaísta francês, a pensar numa transformação do cinema contemporâneo, transformação que começou com a desdramatização praticada por Michelangelo Antonioni, nos anos 50, e o aparecimento da câmera móvel que possibilitou o cinema-verité. Segundo o grande Marcel Martin me seu fundamental A linguagem cinematográfica(Brasiliense, 1990):
“O cineasta tende cada vez menos a decupar seu filme de maneira a destacar uma série unilinear e inequívoca de acontecimentos; já não sublinha por meio de montagem ou de movimentos de câmera aquilo sobre o que ele deseja fixar a atenção do espectador; a câmera não desempenha mais o seu papel habitual de nos dar o ponto de vista de uma testemunha virtual e privilegiada sobre todos os acontecimentos, facilitando, assim, o trabalho perceptivo e estimulando a preguiça intelectual do espectador (…) O abandono da linguagem concebida como conjunto de procedimentos de escrita ligados à técnica, tal como era praticada por Eisenstein ou Welles, é, portanto, acompanhada de uma rejeição do espetáculo, noção ligada à da direção (…) Passamos a um outro plano: o cinema de roteiristas cede espaço ao cinema de cineastas. O cinema não mais consiste essencialmente em contar uma história por meio de imagens, como outros o fazem por meio de palavras ou notas musicais: consiste na necessidade insubstituível da imagem, na preponderância absoluta da especificidade visual do filme sobre seu caráter de veículo intelectual ou literário.Nos filmes decididamente “modernos”, o espectador não mais tem a impressão de estar assistindo a um espetáculo inteiramente preparado, mas de estar sendo acolhido na intimidade do cineasta, de estar participando com ele da criação: diante desses rostos que se oferecem, desses personagens disponíveis, desses acontecimentos em plena constituição, desses pontos de interrogação dramáticos, o espectador conhece a angústia criadora.

21 julho 2013

20 momentos antológicos do cinema

Maria Schneider e Jack Nicholson em O passageiro: profissão repórter (1975), de Michelangelo Antonioni
   Sem ordem de importância, aqui alguns momentos antológicos do cinema.

     1.  OITO E MEIO (Otto e mezzo, 1963), de Federico Fellini. Quando todas as esperanças pareciam                 impossíveis, Guido Anselmi se reanima e dança, com todo o elenco, o balé burlesco que dá fecho ao        filme, com todos dançando contentes e de mãos dadas sob o império sonoro de Nino Rota
  1. O PASSAGEIRO: PROFISSÃO REPÓRTER(Professione: reporter/The passenger, 1975), de Michelangelo Antonioni. A cena começa num quarto de hotel, a câmera sobre um tripé. Nicholson e a namorada que ele encontrou ao assumir a identidade de Robertson (Maria Schneider) conversam. O quarto é no andar térreo do hotel, e ao fundo uma ampla janela com grades de ferro dá para a praça lá fora. Sozinho no quarto, Locke acende um cigarro e se deita, e entãotem início o longo plano final. A câmera se aproxima lentamente da janela, passa pelas grades, e continua a filmar lá fora até que voltando ao quarto o encontra morto.
  2. OS BRUTOS TAMBÉM AMAM (Shane, 1953), de George Stevens. Cena da morte de Paredón pelo pistoleiro Wilson. Paredón (Elisha Cook Jr) se aproxima, em travelling, da varanda na qual está o pistoleiro Wilson (Jack Palance). Corte. Wilson se levanta e começa a calçar as suas luvas. Paredón lhe desafia e recebe um tiro que o joga longe no meio da lama. Stevens declarou que usou um tiro de canhão. 
  3. A MARCA DA MALDADE (Touch of evil, 1958), de Orson Welles. O plano-sequência inicial. Com uma só tomada, Welles percorre uma cidadezinha fronteiriça com uma câmera ágil até a explosão de uma bomba perto de um posto de gasolina, encontrando Charlton Heston e Janet Leigh. Na versão espúria lançada comercialmente, todo o plano é aproveitado para a colocação dos letreiros. Mas a versão restaurada mostra que o autor não usou, nesta introdução, nenhum sinal gráfico. 
  4. O PROFESSOR ALOPRADO (The nutty professor, 1963), de Jerry Lewis. Cena da saída da buate depois da transformação. Usando uma poção mágica feita por ele, o tímido professor Kelp se transforma no engomado galã Buddy Love. Quando este sai da buate, em câmera subjetiva (em lugar de Love), andando,  o que se contempla são mulheres e homens surpresos e extasiados com o que estão a ver.
  5. CIDADÃO KANE (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles. Um travelling mostra os pertences de Charles Foster Kane empilhados e a impressão que se tem éa de se estar a ver uma metrópole com seus arranha-céus. O percurso do travelling tem seu fecho num plano de detalhe do trenó onde se encontra inscrita a palavra Rosebud, cujas letras ardem e se desmancham pelas chamas. 
  6. O ANO PASSADO EM MARIENBAD (L'année dernière a Marienbad, 1962), de Alain Resnais. Ostravellings se sucedem na mansão, a câmara passeia pelos seus longos e intermináveis corredores, à procura de um cinema que se faz como um processo de investigação do universo mental. Delphine Seyrig salta na cama imensa, como se fosse um pássaro numa gaiola dourada.
  7. SUSPEITA (Suspicion, 1942), de Alfred Hitchcock. Cary Grant, numa angulação expressionista, sobe a escada, uma grande escada meio circular, com um copo de leite na mão. O espectador suspeita que o leite esteja envenenado e ele vá matar a mulher. O realizador colocou uma lâmpada dentro do copo para fazê-lo mais sugestivo.
  8. ACOSSADO (A bout de souffle, 1959), de Jean-Luc Godard. Ferido, fatigado, Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo) deambula por uma rua de Paris enquanto a câmera, em travelling, o acompanha até que, ao final da escapada, tomba. Todo o itinerário tem um forte acento jazzístico.
  9. A LARANJA MECÂNICA (clockworke orange, 1971), de Stanley         Kubrick. Enquanto Alex e seus companheiros espancam e torturam o casal de escritores com uma violência inaudita, estuprando a mulher, o que se ouve é uma canção suave, a deSingin'ng in the rain. A narrativa, aqui, contraria a fábula.
  10. FRENESI (Frenzy, 1972), de Alfred Hitchcock. A prdução de sentidos sendo feita pelo travelling, que acompanha Barry Foster, o estrangulador que o público játem conhecimento, a entrar no edifício acompanhado da namorada de John Finch, o falso culpado. De repente, a câmera pára no meio da escada e faz um travelling a derrière (para trás) e sai do prédio. O grito da mulher é abafado pelo vozerio do mercado em frente.
  11. RASTROS DE ÓDIO (The seachers, 1956), de John Ford. Finda a jornada, John Wayne traz de volta Natalie Wood para o lar. A càmera, no último plano, plantada dentro da casa, apenas recebe a claridade que vem do fora e a porta aberta, que se destaca como silhueta na escuridão. Todos entram felizes, alegres, com o retorno. Menos John Wayme, o Tio Ethan, que, cumprida a missão, caminha para fora, deambulando, sem destino.
  12. OUTUBRO (Oktiabr, 1927), de Sergei M. Eisenstein. Kerensky sobe os degraus do palácio, mas retorna sempre ao mesmo ponto, enquanto as legendas citam suas inumeráveis atribuições ditatoriais e, "desafiado", Kerensky é confrontado com divindades africanas, budistas, barrocas, cristãs etc.
  13. LUZES DA CIDADE (City lights, 1930), de Charles Chaplin. Pelo toque nas mãos de Carlitos, a florista, já operada da vista graças a ele, reconhece o seu benfeitor. E o close up final de Chaplin é o mais enigmático de toda a história do cinema, a atingir a tragédia da condição humana.
  14. ASSIM ESTAVA ESCRITO (The bad and the beautiful, 1953), de Vincente Minnelli, Depois da conferência com Walter Pidgeon, Lana Turner, Barry Sullivam e Dick Powell, na saída da casa, não resistem a pegar um telefone externo para ouvir o que Pidgeon conversa com Kirk Douglas, que está disposto a trabalhar novamente com os três. Em plano fixo, Lana pega o gancho do telefone e o ouve primeiro, e os rostos de Sullivam e Powell vão surgindo nas laterais, curiosos também em saber o que está sendo dito. Final do filme: The end. Partitura exasperante de David Rastkin.
  15. PSICOSE (Psycho, 1960), de Alfred Hitchcock. A antológica sequência do chuveiro, quando Janet Leigh é esfaqueada. Durando pouco mais de um minuto, a cena possui quase cinqüenta tomadas, o que possibilita constatar que o processo de criação no cinema é uma ilusão. A sua fragmentação é radical e, nesse sentido, alguns ensaístas europeus comparam-na à escadaria de Odessa de O encouraçado Potemkin para a evolução da linguagem cinematográfica.
  16. O LÍRIO PARTIDO (Broken blossoms, 1919), de David Wark Griffith. Lilian Gish se contorcendo dentro de um armário cuja porta o boxeador destrói a golpes de machado, antes de espancar a menina com o cabo de um chicote.
  17. VAMPYR (1932), de Carl Theodor Dreyer. As cenas vistas por um cadáver transportado em seu caixão, os olhos mortos fixos no céu e nos tetos.
  18. O ENCOURAÇADO POTEMKIN (Bronenosetz Potemkin, 1925), de Sergei Eisenstein. A Escadaria de Odessa. A multidão nos degraus aclamando os marinheiros e, de repente, os primeiros tiros de fuzis; as botas dos soldados passando por cima dos cadáveres; o menino morto, a mãe que torna a subir a escadaria trazendo o filho já sem vida; os fuzileiros descendo a escadaria; uma mulher, no alto da escadaria, atingida, e seu cadáver empurrando para frente o carrinho do bebê…
  19. DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL (1964), de Glauber Rocha. A matança dos beatos em Monte Santo.