Seguidores

22 outubro 2009

Do ponto de vista na estrutura do filme


O ponto de vista adotado pela narrativa fílmica é sempre – e simultaneamente – objetivo e subjetivo, nunca redutível a uma única perspectiva por causa da dupla e concomitante ação realista e irrealista do cinema. O que não exclui, em todo caso, a hipótese de a narrativa abraçar uma ótica em detrimento de outra em relação ao desenvolvimento global da narração. Um filme, portanto, nunca pode narrar um acontecimento inteiramente visto de dentro – a coisa que o romance pode fazer, mas tem a necessidade de recorrer a um ângulo de observação que permita unificar a matéria representada a fim de não gerar confusões de perspectiva. No filme-ensaio (vide Meu tio da América/Mon oncle d’Amerique, 1979), do imenso Alain Resnais, que esteve em cartaz recentemente com Medos privados em lugares públicos (Coeurs), esta ótica se identifica com a do autor que seleciona e ajuíza. No filme de ficção, esta ótica segue o olhar de um dos protagonistas, procurando, no entanto, não se confundir completamente com ele.

A perspectiva da câmera é diferente da do olho humano e, como demonstram inúmeros filmes, a lente pode ocupar o olhar de um gato (Um dia, um gato, filme tcheco no qual, em alguns momentos, tem-se a perspectiva do olhar do gato que vê as pessoas de uma localidade segundo o seu caráter, dando-lhes as cores correspondentes). O objeto focalizado também pode ser totalmente deformado – e, nesse particular, o expressionismo alemão é farto de exemplos – O Gabinete do Dr. Caligari, 1919, de Robert Wiene, Nosferatu, o vampiro, 1922, de Friedrich Murnau, etc. Em Cidadão Kane, 1941, de Orson Welles, filme com forte influência expressionista, o cineasta usa tetos baixos para dar uma dimensão insólita aos personagens e, na sequência do palácio de Xanadu, Susan Alexander, a mulher de Kane, é vista em pequena silhueta diante de uma gigantesca lareira. Dentro da mesma obra, um jogo tipo quebra-cabeça – um puzzle que, no final das contas, é a própria chave para a compreensão da obra – tem suas peças em dimensão enorme. Welles, nestes casos, deforma os objetos com a lente com um propósito estético contextual.

Henri Angel, ensaísta francês, acha que o ponto de vista de um filme deve ser sempre o que é adotado pelo cineasta, quer este decida ver o mundo através dos olhos de um dos protagonistas, quer decida manter-se o mais possível exterior à ação narrada. Um caso de identificação autor-personagem é representado por O deserto vermelho (Il deserto rosso, 1964), de Antonioni, onde a realidade é vista pela câmera não como efetivamente é mas como se apresenta aos olhos do protagonista.

Outro caso de identificação autor-personagem está representado em Repulsa ao sexo (Repulsion, 65), de Roman Polansky, onde os pesadelos da protagonista (Catherine Deneuve), apresentados como objetivos, não são mais que o fruto da personagem psicopata, uma manicure sexualmente reprimida que se isola em seu apartamento e vai enlouquecendo.
No polo oposto situam-se, pela sua objetividade extrema, filmes como Nashville, de Altman, uma crônica de cinco dias da vida de uma cidade no Tennessee, Nashville, na hora do show business e de uma campanha eleitoral que serve como um testemunho à beira do desespero sobre os Estados Unidos contemporâneos. Também Lancelot, de Robert Bresson, e Nicht Versohnt, 65, de Jean-Marie Straub, obras centradas numa radical objetividade e construídas de modo a esvaziar qualquer identificação personagem-espectador e, também, redutíveis ao ponto de vista exclusivo do realizador onisciente.

Existem também filmes nos quais os pontos de vista são contraditórios ou contrastantes entre si. Rashomon, 1950, de Akira Kurosawa, filme que projetou o cinema japonês no mercado internacional, é um exemplo bem marcante. A fábula se passa no século XV numa floresta perto de Tóquio, quando um bandido afirma que matou um samurai depois de violentar a mulher dele. A mulher, porém, diz que foi ela quem matou seu próprio marido. Surge, então, a alma do morto que conta a todos, estupefatos, como se suicidou. Mas um açougueiro que a tudo ouvia, dá uma quarta versão. Em Rashomon, portanto, são fornecidos três pontos de vista diferentes do mesmo fato, todos igualmente espectáveis, até emergir deles um quarto que é o verdadeiro.

Há o caso de a ação ser contada por um morto que relata do além a sua história trágica – não existem nem realizador oculto nem personagem visível. É o que acontece em Crepúsculo dos deuses (Sunset Boulevard, 1950), de Billy Wilder, no qual o encenador protagonista conta da sua situação de defunto, o como e porque de sua morte devida à atriz famosa da qual tinha sido hóspede. A ex-estrela é Glória Swanson que, vivendo esquecida num suntuoso palácio antiquado de Hollywood, acompanhada de seu fiel criado (Erich von Stroheim), contrata um roteirista fracassado que se torna seu amante e que ela mata quando ele se recusa a continuar a relação.

21 outubro 2009

Os "bastardos" de Tarantino fazem a festa do cinéfilo

Bastardos inglórios (Inglorious basterds, 2009), de Quentin Tarantino, coloca-se, ainda no mês de outubro, a faltar dois meses e meio para a tradicional lista dos 10 melhores do ano, no primeiro lugar: é, sem sombra de dúvida, o melhor filme apresentado no ano em curso, tal a sua mise-en-scène inteligente, tal a criatividade verificada a cada plano, a cada tomada. Filme sobre cinema, é cinema na mais alta extensão do vocábulo e um prazer do cinema, uma festa para cinéfilos, uma surpreendente demonstração de força cinematográfica em tempos de vacas magras, de crise no processo de criação. Tarantino reprocessa o seu imenso repertório cinematográfico (adquirido numa locadora quando era o seu gerente e passava os dias e as noites a ver filmes) com um pulso de cineasta, um sentido de espetáculo que surpreende a cada sequência. Recomendaria que os amantes do bom cinema fossem vê-lo ainda quando se encontra nas salas exibidoras para que possam sentir todo o seu impacto. Inglorious basterds não proporcionará a mesma sensação assim que estiver posto no disquinho (DVD). Escrevi terça passada, na minha coluna do Terra Magazine, um comentário sobre Bastardos inglórios e a carreira de seu autor:

Tivemos, neste 2009 que se encontra quase no ocaso, ótimos filmes que foram lançados no circuito exibidor, ainda que a maioria seja constituída de obras desmerecedoras e que se constituem em absoluta perda de tempo para o cinéfilo. Mas não se pode negar que Inimigos públicos, de Michael Mann, é um filme a respeitar. Assim como Amantes (Two lovers), de James Grat, Grand Torino e A troca, ambos de Clint Eastwood, Entre os muros da escola (Entre les murs), de Laurent Cantet, Beijo na boca, não (Pas sur le bouche, 2003), de Alain Resnais, Aquele querido mês de agosto, entre outros. Há filmes, portanto, para encher uma lista dos 10 melhores - o que não se revelou tão fácil em anos anteriores.

Faço parte da Liga dos Blogues Cinematográficos: http://ligadosblogues.wordpress.com/

20 outubro 2009

Morre a bela Rossana Schiaffino

Morreu Rossana Schiaffino, mas, por incrível que pareça, nem o maior banco de dados sobre cinema no mundo, o Imdb (The Internet Movie Database) registrou o passamento da bela. Desaparece aos 70 anos, quase 71, que iria completar a 25 de novembro (nasceu em 1938). Era o tipo de mulher que fazia sucesso nos anos 50: cheia, corpulenta, no estilo de Sophia Loren, Gina Lollobrigida. Já Brigitte Bardot, a musa deste blogueiro, era mais magrinha, mais esguia. Mas tinha uma certa fascinação por Rossana Schiaffino, principalmente depois que a vi, esplendorosa, em A longa noite de loucuras (La notte brava, 1959), de Mauro Bolognini (diretor importante que está completamente esquecido). Mais adiante, em 1962, lá estava ela, num filme do príncipe Vincente Minnelli, A cidade dos desiludidos (Two weeks in another town) ao lado de Kirk Douglas. Em La notte brava, Schiaffino contracenava com outra deslumbrante mulher: Elsa Martinelli (que veio a trabalhar no cinema americano e se encontra inesquecível em Hatari!, de Howard Hawks. Com a ascenção e a ditadura das mulheres ossudas, Rossana Schiaffino saiu dos padrões da imposição de beleza ditada pelos estilistas. Mas sua saída de cena foi pelo tempo, pelo passar dos anos.

La notte brava, além das esfuziantes Schiaffino e Martinelli, também conta com Antonella Lualdi (outra formosa mulher), Mylène Demongeot (quem, de sã consciência, foi capaz de esquecê-la? - lembro-me dela no Rio de Janeiro a filmar Copacabana Palace). Baseado numa novela de Pier Paolo Pasolini, que também roteirizou o filme, La notte brava é um filme que precisa ser revisto e reavaliado.

Não pretendo fazer a filmografia desta deusa. Bastam estes dois filmes para consagrá-la. O blog está de luto fechado.

P.S: Nos anos 50, 60, havia tantos gênios no cinema italiano (Visconti, Fellini, Antonioni, Rossellini...) que alguns diretores brilhantes passaram para o segundo time, a exemplo de Mauro Bolognini (1922/2001) - e o que dizer de um Francesco Rosi, de um Dino Risi, de um Alberto Lattuada, de um Mario Monicelli, de um Pietro Germi (Divorzio all'italiana e Sedotta e abbandonata são obras-primas), de um Florestano Vancini, de um Damiano Damiani, entre tantos outros, e de um Valerio Zurlini, cujo exegeta maior no Brasil, Carlos Reichenbach, considera um dos maiores cineastas do cinema?). Mauro Bolognini, formado em arquitetura, como Antonioni, era um realizador bastante refinado. Tem filmes que não se podem esquecer assim tão facilmente. O belo Antonio (1959), à guisa de ilustração, causou frisson na época em que foi lançado, aqui no Brasil dois ou três anos depois de sua realização, como era de acontecer com os filmes. Il bell'Antonio gira em torno de Marcello Mastroianni, um personagem atormentado, que se casa com Claudia Cardinale, mas, na hora do vamos ver, brocha magnificamente. Vergonha para uma família conservadora e machista de uma cidade italiana. O pai, desesperado, para mostrar que era homem, vai a um prostíbulo e tem um enfarte em cima de uma mulher. Mas Marcello, no final, revela ter engravidado a empregada, Santina, e o plano final é de seu rosto, um plano demorado, que revela nele uma angústia desesperada. Há muito que não vejo este filme, mas várias de suas cenas ficaram na minha memória. Há outros momentos bologninianos a deter: Um dia de enlouquecer (La giornata balorba, 1960, com Jean Sorel e Lea Massari), Desejo que atormenta (Senilità, 1960, com Jean-Paul Belmondo e Claudia Cardinale), Caminho amargo (La viaccia, 1961, com Cardinale e Anthony Franciosa), um dos episódios de As bonecas (Le bamboli, 1965), Monsignor Cupido, Arabella (1967), com Virna Lisi, Aquele novembro maravilhoso (Un belissimo novembre, 1969), Metello (1970), A grande burguesia (Fatti di gente perbene, 1974, com Catherine Deneuve e Giancarlo Giannini), entre outros.

18 outubro 2009

...E o cinema é Richard Quine

Richard Quine, o realizador de Quando Paris alucina, é um grande comediógrafo do cinema americano, príncipe da elegância narrativa, desmistificador das convenções hollywoodianas, cineasta metalinguístico avant la lettre, que começa a se revelar em meados do decurso da década de 50, quando aparece Jejum de amor (My sister Eileen), um filme musical que conta a trajetória de duas irmãs a tentar a sorte na selva de pedra nova-iorquina. Uma é bonita (Janet Leight) e a outra, feia (Betty Garret). Conseguindo uma fluência extraordinária para um realizador meio neófito no gênero, e, ainda por cima, com o excelente Jack Lemmon no elenco, figura atípica como integrante de musicais, Quine marca a sua presença como narrador de rara habilidade e agilidade. A irmã feia quer ser escritora, e a bela conquista marinheiros brasileiros. A coreografia de Bob Fosse é um ponto alto de Jejum de amor. Em 1956, O cadillac de ouro (The solid gold cadillac) tem a presença esfuziante de Judy Holliday como uma pequena acionista que atrapalha um plano de diretoria desonesta. Filmado em preto-e-branco, conta, porém, com a seqüência final a cores. Trata-se de uma comédia baseada numa peça de George Kauffman e H. Teichman, cuja teatralidade é bastante diluída pela competência de Quine – cineasta com particular habilidade no sentido do espetáculo. Ao lado de Holliday, Paul Douglas. Com a mesma Judy Holliday, neste mesmo ano, com o sucesso de O cadilac de ouro, Quine filma Um Casal em apuros (Full of life), outra comédia, com Richard Conte, na qual um sogro italiano vem morar e atrapalhar a vida de um casal que espera o primeiro filho. Jack Lemmon volta a trabalhar com Quine (como viria a trabalhar inúmeras vezes) em O baile maluco (Operation mad ball, 57), filme menor na carreira de Quine, mas não desprovido de atributos. Lemmon, que considera este um de seus melhores papéis cômicos, arma, aqui, uma verdadeira operação militar para poder, em época de guerra, namorar uma enfermeira. O elenco é muito bom: Mickey Roooney, Kathy Grant, Ernie Kovacs. Lemmon novamente, e em Sortilégio de amor (Bell, book and cadle, 1958), mas a atenção maior fica com James Stewart e Kim Novak, atriz preferida de Quine e sobre a qual constrói o mito, fazendo, aqui, nesta comédia baseada em John Van Drutten, uma feiticeira em plena Nova Iorque do Século XX, que usa todos os seus poderes para conquistar um editor. Quem pode resistir aos encantos de uma feiticeira vivida por Kim Novak? Como coadjuvantes, Janice Rule e, novamente, Ernie Kovacs.

Quine é um esquecido. Um cineasta importante, talvez não tanto como Frank Tashlin, mas de uma extraordinário mise-en-scène não mais encontradiça na demência cinematográfica contemporânea. Kovacks, mais Lemmon, acrescida de Doris Day, fazem parte de A viuvinha indomável (It happened to Jane, 59), outra comédia, como de hábito, com os atores preferidos, seguindo o estilo de Frank Capra ao contar a história de uma viúva que processa dono de ferrovia que deixa estragar seu carregamento de lagosta. A obstinação da “viuvinha”, da cidadã consciente de seus direitos, faz com que consiga alcançar seu objetivo.
Uma obra-prima, em 1960: O nono mandamento (Strangers when we meet), filme de envergadura, reflexão sobre o casamento e a paixão, com uma mise-en-scène capaz de provocar a mais pura estesia em cinéfilos admiradores de um Minnelli e de um Quine. É a expressão mais alta de um estilo cinematográfico, de uma maneira de fazer cinema, com uma fluência narrativa que dá à estrutura dramática um toque de musicalidade explícita. Nesta obra absorvente, Kirk Douglas é um arquiteto casado com Bárbara Rush que se apaixona, num ponto de ônibus escolar, por Kim Novak. O aspecto melodramático é diluído pela intensidade dramática da mise-en-scène.

O mundo de Suzie Wong (The world of Susie Wong, 60), que faz bastante sucesso comercial, mostra o relacionamento entre um americano tranqüilo (William Holden) e uma asiática (Nancy Kwan). É um interregno, uma pausa, para Quine se preparar para uma comédia de humor negro insuperável – e que, infelizmente, não é citada como merece: Aconteceu num apartamento, com, novamente, Kim Novak e Jack Lemmon. Quine fez mais, e filmes inteligentes, bem articulados como Quando Paris alucina e Como matar a sua esposa.

Aconteceu em um apartamento, cujo título em português vem em decorrência do sucesso de Se meu apartamento falasse (The apartment, 1960), de Billy Wilder, pois seu original é The notorius Landlady, prova de que a alusão ao filme de Wilder acontece somente na distribuição brasileira, é comédia notável. Mas não podia esquecer de outra, de rara inspiração, bom gosto, humor, elegância narrativa (característica de Quine), que é Médica, bonita e solteira (Sex and the single girl, 1964), com Tony Curtis, Natalie Wood, Henry Fonda (será que uma preciosidade assim tem em DVD?). Há um filme de Quine que tem um título quilométrico: Coitadinho de papai, mamãe pendurou você no armário e eu estou tão triste (Oh dad, foor dad, mama's hung you in the closet anda I'm feeling so sad, 1967). O seu último filme foi O prisioneiro de Zenda (The prisioner of Zenda, 1979). A mediocridade, imensa, que já se instalava no cinema, afasta Richard Quine, que morre amargurado, a pensar na sua linda Kim Novak, que o tinha abandonado há muito tempo. Perdeu a mulher e o cinema. Mas culpa dos tempos pavorosos que então se instalam.

A imagem é o cartaz de O nono mandamento.