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09 janeiro 2009

Para compreender Hitchcock

A melhor análise perfuratriz que tive a oportunidade de ler sobre Hitchcock e, principalmente, sobre Janela indiscreta e Intriga internacional, foi na excelente revista eletrônica Contracampo (veja o link no lugar apropriado para os links recomendados nesta página) de autoria de Ruy Gardnier. Pela excelência do texto, peço licença ad referendum para publicá-lo aqui, porque penso dar uma contribuição importante, a fazer vê-lo novamente (e considerando ter sido dado à luz há alguns anos e já depositado nos arquivos da revista - número 09)). Gardnier, sobre ser um dos mais fecundos exegetas dos labirintos da sétima arte, desvenda o enigma hitchcockiano, que parece tão incompreendido até por aqueles que estão comprometidos com a análise fílmica. De uma vez por todas, Hitchcock é um gênio, um dos mais geniais inventores de fórmulas de toda a história do cinema desde que Louis e Auguste Lumière se permitiram criar o cinematógrafo. A foto é de Cary Grant (de costas) com Eve Maria Saint. O que se segue é de autoria plena de Ruy Gardnier.

INTRODUÇÃO. Hitchcock só no parágrafo seguinte.
A crítica no Brasil é devedora do trabalho dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos. No caso de 50% da presente revista, idem. No caso desse que escreve, também. Foram eles os que mais fizeram pela divulgação e pelo questionamento dos processos artísticos da literatura nesse século (e no que esse século considera como seus antepassados, dos provençais a Poe). No plano da crítica, trouxeram os formalistas, Ezra Pound e os estruturalistas. De modo que grande parte das vanguardas brasileiras se apóia, quando escreve, na herança Pound / Fenollosa / Barthes. O mote da crítica concretista, que veio num momento cheio de raiva contra toda uma geração crítica acadêmica e conteudista, dizia: "A forma é o conteúdo", ou à maneira de Marshall McLuhan, "O meio é a mensagem". É claro, o que se tratava naquele momento era tirar de circulação os grandes temas, a fábula moralizante, para, no século da linguagem, fazer a análise poética da linguagem. Resta, porém, um resíduo que não é criação do concretismo mas que lhe veio com o tempo (e é de se acreditar que com o tempo os pós-concretos tenham cristalizadas e plácidas as suas questões outrora vivas). Esse resíduo é a crítica veemente a qualquer coisa que possa parecer à primeira vista uma análise do conteúdo, do assunto da obra. Ora, justo onde parece que estamos falando de conteúdo, vai aí que falamos apenas de formas — pois nos parece evidente que o assunto, o desenrolar de um filme ou de uma peça, vai desenhando, a seu modo, uma gama de formas que um desviar de olhos fatalmente deixaria escapar parte importante da obra em questão. Se você me disser que arte é forma, eu concordarei. Se você me disser que arte não é conteúdo, você se enganou muitíssimo. Numa obra vemos formas — mas formas de expressão e formas de conteúdo. Estilo e assunto, se se quer. Uma análise conjunta dos dois é sempre mais abrangente do que isolar um ou outro numa análise formal (e o estruturalismo esgotou as suas possibilidades há algum tempo, embora ainda tenha heranças bem-vindas). Por isso essa guisa de introdução a um texto de análise das formas do conteúdo.
* * *
Hitchcock é um artista um pouco avesso a uma interpretação de sentido nos seus filmes. Os estudos sobre seus filmes tendem sempre a tentar penetrar em seu (denso) estilo. Seu cinema já chegou inclusive a ser pensado como pura forma e nenhum conteúdo, a expressão máxima da arte visual no cinema. Contudo, as formas de conteúdo são recorrentes, vários filmes são organizados de acordo com o mesmo parti-pris. E, antes disso, sob uma mesma forma de conteúdo geral: o suspense. O suspense é uma forma. Ele trabalha tanto na forma de expressão quanto na forma de conteúdo. Como expressão, ele trabalha com o que está ausente na tela, em suspensão. Como conteúdo, ele opera os complexos semânticos de medo e de passagem de tempo.
O suspense pode ser desenhado a partir de diversas formas, e o próprio cinema de Hitchcock pode ser considerado como um grande inventário, ou antes como um grande evangelho das formas do suspense. Mas a visão contínua de sua obra permite que se veja que o velho Alfred tem uma predileção imensa por uma delas: a do percurso. O percurso começa com um fator desencadeador, a partir do qual o personagem terá que provar algo, enfrentando com isso a franca oposição dos poderes instituídos (polícia, política, cidadãos "idôneos", etc.). É esse percurso que na maioria das vezes constitui o suspense, por exemplo, em Sabotador, Os 39 Degraus, Correspondente Estrangeiro, A Dama Oculta, até filmes tardios, como Cortina Rasgada.
Mas esse percurso envolve outra coisa — o objetivo. Óbvio, a estrutura narrativa tenta resolver isso de forma simples, através da simples realização do percurso e da inocência por fim encontrada. Mas as linhars subliminares de Hitchcock, ou ao menos de suas principais obras, nos dizem mais. Através do caminho percurso-prova-inocência, se desenha uma outra linha discursiva, um outro fluxo de enunciação que não tematizam mais justiça ou inocência, mas sim os valores de casamento, maturidade e desejo. Quanto a isso, dois filmes colocam isso especialmente em evidência: Janela Indiscreta e Intriga Internacional. Os signos de sexo e casamento são tão patentes nesse filme que é impossível pensá-los como acesssórios à trama. Ao contrário, é a trama que parece colocar-se em segundo plano e servir apenas de metáfora para o que o verdadeiro filme está mostrando.
Em Janela Indiscreta, filme-tese sobre o casamento, vemos L.B. Jeffries com a perna quebrada. Em dois travelings se desenvolve a dialética do filme: um mostra, numa virtuosidade surpreendente, tudo o que envolveu o acidente do personagem, como a câmara de fotografia, as fotos de carros de corrida, até mostrar o gesso e Jeffries dormindo numa cadeira de rodas; no outro traveling, observamos o que Jeff pode ver através da sua janela traseira, como o casal feliz que compartilha todos os seus momentos, a jovem bailarina que freqüenta o bas-fond e vive num mundo vazio à procura de um amor, o pianista que não consegue completar a sua obra por falta de inspiração, a senhora que tem crises nervosas por viver sozinha e um casal que briga infernalmente. O elemento que vai operar essa dialética, que vai conjugar Jeff com a questão do outro prédio (a questão da vida amorosa) é Lisa Fremont, jovem da alta classe que tenta desposar o desajeitado fotógrafon (1). Jeff não parece descontente de viver sozinha: namora a jovem, que é rica, bonita e inteligente, e trabalhando em viagem pelo mundo, acompanhando as corridas de carros. O que impede o desejo de Lisa de se realizar é justamente o fato de Jeff encarar a vida no casamento como tediosa e sem-graça. A operação de Janela Indiscreta é a passagem ao ato. Se temos razão, Jeff observa a questão do casamento através da janela traseira de seu prédio, mas jamais chega a tomá-la para si. Vendo, ele pode viver esse momento sem entretanto correr o risco de sofrer as decepções causadas pelos relacionamentos. Mais uma vez, a questão do medo de sociabilidade em Hitchcock, a vida social sendo sempre o terreno do mal e da sordidez.
Janela Indiscreta tematiza um procedimento caro à obra de Hitchcock (mas nem tanto à sua vida): a passagem ao ato, ir do ver até o ser. Lisa é o operador simbólico da passagem ao ato de Jeff, algo como um "operador de maturidade": ele começa o filme como uma criança, a empregada/enfermeira servindo como uma figura de mãe (as figuras de mãe são recorrentes nos filmes de Hitchcock), e termina o filme casado, feliz com Lisa Fremont. Lisa é operador porque é ela quem consegue fazer ver que o casamento não é (como o menino Jeff pensava) a submissão a um modo sedentário do relacionamento amoroso. A incursão de Lisa pelo prédio em frente é exemplar do universo de desejo hitchcockiano: ela penetra no mundo do casamento, ela penetra no universo do outro, da sexualidade. É só a partir daí que Jeff percebe que pode se entregar ao casamento; o casamento, depois disso, passa a ser uma verdadeira economia política do desejo, nunca mais uma partilha sedentária dos afetos. E só a partir daí o filme pode se completar.

Se em Janela Indiscreta o universo de desejo é patente, em Intriga Internacional será o próprio assunto do filme. A maturidade de que o filme trata é justamente a maturidade sexual. É claro, trata-se nesse filme de criar uma metáfora inteira do percurso sexual. Através do caminho do noroeste, chegar no Norte (2). No começo do filme, vemos Roger Thornhill, filhinho da mamãe que, apesar de profissional bem-sucedido, mantém uma vida abobalhada e desinteressante. Alfred Hitchcock nos mostra fisicamente: Thornhill age como uma criança, causando os risos dos que o circundam e os da platéia. O burlesco atinge sua dimensão legítima de caricatura de costumes, sempre com sentido expressivo e deboche. Um artifício narrativo faz com que ele seja confundido com um espião americano e, por vias laterais, possa conhecer Eve Kendall, que o salva da polícia e com quem desenvolve uma relação amorosa. A título de exemplo, a conversa que acontece no trem, no momento em que se conhecem, já diz tudo: ela é sedutora e ele não sabe o que fazer com uma mulher que se sinta à vontade com assuntos sexuais. Ele revela que suas duas esposas se separaram dele porque ele tinha uma vida muito comum. De fato, até então, só vemos Roger Thornhill praticando atos infantis.

A verdadeira virada na narrativa se dá quando, numa estrada árida e longe de tudo. Ele deve se encontrar com o verdadeiro espião, aquele com quem ele é confundido. Nesse momento do filme, o espectador já sabe que não há espião nenhum espião e que a doce Eve é a verdadeira espiã. Ela trabalha para o estado americano e faz jogo duplo com um grupo de espionagem que quer tirar informações do país. Nesse caminho de estrada, Thornhill enfrenta um avião que tenta matá-lo. Essa seqüência é uma das mais famosas na obra de Hitchcock inteira (3). Mas faz sentido. É possivelmente a cena síntese da filosofia hitchcockiana: o homem contra um inimigo muito maior que ele, inimigo social, institucional; o íntimo contra o social. A cena é um primor de composição, feita inteiramente de gestos, veículos e barulhos, sem palavra alguma. Thornhill sozinho contra o avião evoca o inimigo contra o mundo, tema onde não existe o outro. Por isso a política em Hitchcock é sempre tão complicada de encontrar, mesmo que ela apareça freqüentemente em seus filmes. A política de Hitchcock não aceita agrupamentos, mas se desenvolve sempre contra a sociedade constituída. É definitivamente o indivíduo contra a sociedade, num tipo de anarquismo radical.
Pois é exatamente como vai se desenvolver a parte final de Intriga Internacional. Depois de salvar Eve das mãos dos espiões (cumprir o percurso), é a vez de fazer as contas com o aparelho de estado que deixou Thornhill nas mãos dos agentes de Vandamm. Ele e Eve, para fugir com os microfilmes, caminham pelo monte Rushmore, onde, sabe-se, estão as enormes estátuas dos rostos dos primeiros presidentes americanos. É só aí que Thornhill vai poder finalmente (norte pelo noroeste, uso da metáfora) acertar as contas pisando nos presidentes americanos (4) depois de haver sido perseguido pela polícia, pelas Nações Unidas e enganado pelo FBI. A etapa seguinte é operar a síntese: depois de pisar na América, trata-se de tirar uma funcionária das mãos do Estado, ao mesmo tempo que conseguir entrar no mundo da sexualidade (5). Thornhill aceita o sexo mundano e, percurso de maturidade feito, pode fruir de seu desejo plenamente. Hitchcock disse que Intriga Internacional tem a cena final mais impertinente já feita por ele. Trata-se de uma cena de coito, mas devidamente maqueada (norte por noroeste de novo). Eve Kendall e Roger Thornhill estão na mesma cama, num trem. Fim de plano, o plano seguinte deixa ver um trem que passa e entra no túnel. Hitchcock deixa bem claro em sua entrevista com Truffaut: trata-se de um objeto fálico, o trem. Se os veículos no meio do filme servem para destruir, no fim do filme Hitch opera mais uma reversão: a reversão do desejo, tudo servindo no fim para o indivíduo Roger Thornhill. Depois de fazer pouco dos presidentes e de tomar Eve, Hitchcock faz com que o social denote a liberdade do indivíduo. Só por isso saímos com um sentimento de liberdade de Intriga Internacional. Depois de seu filme mais paranóico, mais preso (Vertigo), Hitchcock faz Intriga Internacional: os dois filmes, suas duas principais obras, revelam os dois lados de todo seu cinema: em um a prisão do desejo, em outro a libertação dele.

1. Na verdade, a metáfora é impressionantemente mantida até o final do filme, pois na hora de exercer alguma ação sobre o que acontece no prédio em frente, quem vai fazê-lo é Lisa, e só isso, o espírito aventuresco de Lisa, é que vai fazer com que Jeff finalmente queira se casar com a moça.
2. O nome do filme em inglês é North by Northwest, norte pelo noroeste. Por trás de um aparente percurso de aventuras e ação, o filme trata de um crescimento espiritual e de uma maturidade para alcançar aquilo que já estava lá desde o começo. Relato mítico como a Odisséia, pois
3. Talvez seja também a seqüência mais minuciosamente estudada. Depois do enorme artigo de Raymond Bellour na revista Communications 23, Le Blocage Symbolique, não há muito como analisar formalmente essa seqüência.
4. Essa seqüência foi o ponto inicial do roteiro de Intriga Internacional, tendo sido inventada pelo próprio Hitchcock.
5. Eve Kendall, como agente dupla, teve que manter relações afetivas com o espião Vandamm, o que aproxima ela semanticamente (quando Thornhill não sabe que está do lado dela) de uma prostituta.
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07 janeiro 2009

A bela Rossana Schiaffino

Uma enquete de blog, pelo menos é assim que faço, é formulada ao sabor da hora e da memória sem uma pesquisa maior para que não haja omissões. E há a considerar o tamanho, pois as opções possum um número limitado para as respostas. Na atual, sobre as divas e deusas do cinema italiano, Monica Vitti corre solta à frente. O motivo do post, no entanto, é ressaltar uma outra atriz que deslumbrou, por sua beleza, os anos 50 e 60: Rosanna Schiaffino, que o blogueiro esqueceu de colocar na lista. Schiaffino fez tanto sucesso que Vincente Minnelli a convidou para participar de A cidade dos desiludidos (Two weeks in another town, 1961), filme sobre a indústria do cinema que tem boa parte de sua ação transcorrida na Itália. Mas a Schiaffino que nos ficou na imaginação foi aquele beleza fulgurante que apareceu em A provocação (La sfida, 1958), de Francesco Rosi (sim, o grande diretor que mais tarde faria filmes como O bandido Giuliano, O caso Mattei...), em A longa noite de loucuras (La notte brava, 1959), de Mauro Bolognini, Teseu e o minotauro (Teseo contra il minotauro, 1960, um sub-filme na linha do filão pseudo-histórico, mas Schiaffino está linda aqui), de Silvio Amadio, Milagre dos lobos (Miracle des loups, 1961), de André Hunebelle, com Jean Marais, Os vitoriosos (The victors, 1963), de Carl Foreman, El Greco, de Luciano Salce, entre tantos e tantos outros. Embora com acesso a Hollywood, Schiaffino não teve, porém, a sorte lotérica de Sophia Loren, que, apesar de bela e talentosa, foi auxiliada pelo marido, produtor de prestígio, Carlo Ponti.

04 janeiro 2009

Cinema baiano de férias

A série sobre o cinema baiano está de férias. São duas semanas, dois domingos, mas no próximo ela volta para dar continuidade aos registros sobre a cinematografia que se fez e se faz nesta terra. Estava, na verdade, sob stress, e precisou se ausentar. Mandei-a a Paris, dar um giro na Cidade Luz.