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26 julho 2012

Noitada de Samba – O Livro e o Filme


Texto de Tuna Espinheira – Cineasta – tuna.dandrea@gmail.com

 Era uma vez, nos anos de chumbo... dois personagens indômitos, Jorge Coutinho e Leonides Bayer, dariam início, no dia 1º de novembro de 1971, véspera de finados, com o tempo ameaçando um dilúvio, uma das mais importantes manifestações de resistência cultural, com o foco principal na música de raiz. O convidado especial para a abertura era Antenor de Oliveira, popularmente conhecido como Cartola. Tinham de pegá-lo no Morro da Mangueira, seu habitat. Dona Zica já tinha pronto um panelão de xinxim de galinha. Foi ela quem demoveu Cartola que não acreditava na existência de publico naquela chuvarada. Para surpresa e alívio o teatro Opinião ficou super lotado, vendeu-se todo o xinxim e bebeu-se as batidas, providenciadas por Afonsinho (ele mesmo, o ídolo do futebol, autor da Lei do Passe Livre). Uma noite memorável. Ficaria em cartaz, em pleno sucesso, por mais de 12 anos.
Todas as feras da velha guarda passariam pelo espaço sagrado do Teatro Opinião. Cartola, Nelson Cavaquinho, Clementina de Jesus, Ciro Monteiro, Dona Ivone Lara, Elizete, a Divina e dezenas de outros mais novos, Paulinho da Viola, Milton Nascimento, Clara Nunes, uma lista muita extensa. A plateia delirava, no coração de Copacabana, a mais autêntica música popular, dialogava com o público, cada vez mais ecumênico.

O livro, Noitada de Samba – Foco de Resistência, com texto de Márcia Guimarães, narrando a saga destes espetáculos que marcaram época com seu caráter aguerrido de resistência de uma cultura de raiz, então com baixíssima visibilidade. Além de contar a alegria das apresentações, o calor humano, registra fatos acontecidos nestes anos sombrios, em pleno regime de exceção. Livro com sabor de uma narração épica, afinal, Jorge Coutinho & Leonides Bayer, sem dúvidas, são uma espécie de heróis.
O filme documentário, dirigido por Cély Leal, baseado no livro acima comentado, está em lançamento na Sala de Arte-Cine Vivo. Programa imperdível

25 julho 2012

Cinefilia. O que é isso?

Para os que nasceram na era do vídeo, e, agora, do disquinho mágico, nada muito surpreendente. Mas para aqueles, como eu, que nasceram em priscas eras, em meados do século passado (1950, para ser mais preciso), com o tempo passando rápido - ó, tempo, suspende o teu vôo! -, o advento do VHS foi uma surpresa, e a do DVD, com tantos dreyers e bergmans, minnellis e langs, hawks e fellinis, espalhados por aí, quase um assombro.
Alguém já disse que foi pelo assombro que o homem começou a filosofar, mas, isto, outra história. Acontece que, antigamente, as imagens em movimento somente eram possíveis de ser contempladas no escurinho das salas exibidoras, havendo, para isso, de se pagar um ingresso. A televisão, naquela época, era muito ruim em termos de imagem. 

Assim, havia duas características no que diz respeito à psicologia da recepção: a inacessibilidade e a impossibilidade de o espectador intervir na temporalidade. Na primeira, quando dentro do cinema, e sala enorme, com quase dois mil lugares, verdadeiros palácios, a imagem que se via na tela era algo mágico, inacessível. Lembro-me que havia um senhor que vendia fotogramas de filmes na Praça da Piedade (aqui em Salvador), e que também oferecia para compra uma lata que, devidamente furada, continha, em uma de suas extremidades, uma lente de óculos que permitia ver os fotogramas com mais nitidez do que a olho nu.

Se um determinado filme era exibido e, por acaso, estivesse doente ou viajando, retirado de cartaz, podia perdê-lo para sempre, excetuando-se os grandes sucessos que sempre eram recolocados. E, na segunda característica, a impossibilidade de intervenção na temporalidade. Projetado o filme, este se desenrolava na tela - ou no écran, como se dizia então, e ninguém podia pará-lo, retrocedê-lo, avançá-lo, salvo se entrasse na cabine de projeção e, revólver em punho, ameaçasse o operador. 

Mas a inacessibilidade e a temporalidade se tornaram favas contadas com o surgimento do VHS e do DVD. Há, inclusive, creio, uma perda da aura cinematográfica. Se os disquinhos funcionam como o resgate do cinema, por outro lado, no entanto, perdeu-se a magia do espetáculo, visto em comunhão numa platéia. O indivíduo hoje já nasce vendo imagens em movimento e, por isso, elas se tornaram vulgares no sentido de corriqueiras.

Quando me contaram que, nos Estados Unidos, inventaram um aparelho pelo qual se podia ver filmes, que ficavam dentro de uma caixinha, não acreditei. Era o vídeo que então estava inventado e restrito ao território de Tio Sam. Precisei, como São Thomé, ver para crer, o que aconteceu em torno da metade dos anos 80, quando comprei o meu primeiro aparelho de VHS, um Sharp, que me deu muito trabalho de sintonizar. E as cópias eram péssimas. Precisou-se esperar que o DVD surgisse para que o cinema recebesse uma punhalada nas costas (na região pulmonar).

E atualmente ir ao cinema é entrar num festim diabólico onde reinam as pipocas, as conversinhas fora de hora, os celulares que, atendidos, infernizam o espectador que queira contemplar o filme. O público de cinema, no Brasil, pelo menos, se tornou uma espécie de patuléia desvairada. Repito sempre que o ir ao cinema hoje é uma das fases do shoppear. Não se vai mais ao cinema, esta a verdade, mas aos shoppings. Até mesmo nas salas ditas alternativas o público se comporta com apatia e as pessoas gostam mais de aparecer, porque, na sua grande maioria, pseudo-cinéfilos, pseudo-intelectuais. Mas vou contar uma história.

Corria o ano de 1973. Estava no Rio de Janeiro a passar as férias de julho. O jornal da época era o Jornal do Brasil, com seu excelente Caderno B. Neste, tomei conhecimento que Ladrões de bicicleta ia ser exibido na Cinemateca do Museu de Arte Moderna numa única sessão pela tarde. Conhecia muitos filmes, nesta ocasião pré-vídeo, de ouvi dizer e de leitura, alguns importantes com muitas informações. Era o caso de Ladri di biciclette, de Vittorio De Sica, que nunca tinha visto por falta de oportunidade e, também, porque nunca foi exibido em Salvador durante o meu itinerário existencial (depois passou algumas vezes). Assim, fiquei a postos, esperando o horário, com certa expectativa, aliás, que não tenho mais para quase nada. Chovia fino. Entrei na sala da saudosa Cinemateca. Mas, quando saí, um toró se abateu sobre a cidade, que ficou completamente engarrafada. Difícil pegar um táxi. Depois de algum padecimento embaixo da marquise do museu, resolvi ir andando do Flamengo, onde fica este, até Laranjeiras, onde estava hospedado. Cheguei encharcado e, no outro dia, com febre alta, ameaçado de pneumonia. Mas estava feliz por ter visto Ladri di biciclette. Atualmente, tenho-o em VHS e DVD, que fica guardado, parado.

Não seria mais possível um sacrifício tal para ver um filme. Tenho um amigo, por exemplo, que ia sempre a Paris para se meter na Cinematheque Française e ficar o dia todo vendo obras clássicas. Hoje tem um home theater em sua casa e há anos que não viaja. Viajava somente para ver filmes.

A cinefilia, como se praticava antigamente, está morta, e bem enterrada.



22 julho 2012

Do ponto de vista da narrativa

Nosferatu, o vampiro (1922), de Murnau (Cliquem na imagem)
O ponto de vista adotado pela narrativa fílmica é sempre - e simultaneamente - objetivo e subjetivo, nunca redutível a uma única perspectiva por causa da dupla e concomitante ação realista e irrealista do cinema. O que não exclui, em todo caso, a hipótese de a narrativa abraçar uma ótica em detrimento de outra em relação ao desenvolvimento global da narração. Um filme, portanto, nunca pode narrar um acontecimento inteiramente visto de dentro - a coisa que o romance pode fazer, mas tem a necessidade de recorrer a um ângulo de observação que permita unificar a matéria representada a fim de não gerar confusões de perspectiva. No filme-ensaio (vide Meu tio da América/Mon oncle d'Amerique, 1979), do imenso Alain Resnais, esta ótica se identifica com a do autor que seleciona e ajuíza. No filme de ficção, esta ótica segue o olhar de um dos protagonistas, procurando, no entanto, não se confundir completamente com ele. A perspectiva da câmera é diferente da do olho humano e, como demonstram inúmeros filmes, a lente pode ocupar o olhar de um gato (Um dia, um gato, filme tcheco no qual, em alguns momentos, tem-se a perspectiva do olhar do gato que vê as pessoas de uma localidade segundo o seu caráter, dando-lhes as cores correspondentes). O objeto focalizado também pode ser totalmente deformado - e, nesse particular, o expressionismo alemão é farto de exemplos - O Gabinete do Dr.Caligari, 1919, de Robert Wiene, Nosferatu, o vampiro, 1922, de Friedrich W. Murnau etc. Em Cidadão Kane, 1941, de Orson Welles, filme com forte influência expressionista, o cineasta usa tetos baixos para dar uma dimensão insólita aos personagens e, na sequência do palácio de Xanadu, Susan Alexander, a segunda mulher de Kane, é vista em pequena silhueta diante de uma gigantesca lareira. Dentro da mesma obra, um jogo tipo quebra-cabeça - um puzzle que, no final das contas, é a própria chave para a compreensão da obra - tem suas peças em dimensão enorme. Welles, nestes casos, deforma os objetos com a lente com um propósito estético contextual. 

Henri Angel, ensaísta francês, acha que o ponto de vista de um filme deve ser sempre o que é adotado pelo cineasta, quer este decida ver o mundo através dos olhos de um dos protagonistas, quer decida manter-se o mais possível exterior à ação narrada. Um caso de identificação autor-personagem é representado por O deserto vermelho (Il deserto rosso, 1964), de Antonioni, onde a realidade é vista pela câmera não como efetivamente é, mas como se apresenta aos olhos do protagonista. Há uma experiência radical feita em 1947: A dama do lago (Lady in the lake) no qual o personagem principal não aparece, substituído pela câmera subjetiva. O que se vê na tela é o que o personagem está a ver. Mas a experiência não deu certo, e o público ficou confuso. A este processo, chama-se câmera subjetiva, que é muito usado, mas com alternância do objetivo e do subjetivo. 

Outro caso de identificação autor-personagem está representado em Repulsa ao sexo (Repulsion, 65), de Roman Polanski, onde os pesadelos da protagonista (Catherine Deneuve), apresentados como objetivos, não são mais que o fruto da personagem psicopata, uma manicure sexualmente reprimida que se isola em seu apartamento e vai enlouquecendo. 

No pólo oposto situam-se, pela sua objetividade extrema, filmes como Nashville, de Altman, uma crônica de cinco dias da vida de uma cidade no Tennessee, Nashville, na hora do show business e de uma campanha eleitoral que serve como um testemunho à beira do desespero sobre os Estados Unidos contemporâneos. Também Lancelot, de Robert Bresson, e Nicht Versohnt, 65, de Jean-Marie Straub, obras centradas numa radical objetividade e construídas de modo a esvaziar qualquer identificação personagem-espectador e, também, redutíveis ao ponto de vista exclusivo do realizador onisciente. 

Existem também filmes nos quais os pontos de vista são contraditórios ou contrastantes entre si. Rashomon, 1950, de Akira Kurosawa, filme que projetou o cinema japonês no mercado internacional, é um exemplo bem marcante. A fábula se passa no século XV numa floresta perto de Tóquio, quando um bandido afirma que matou um samurai depois de violentar a mulher dele. A mulher, porém, diz que foi ela quem matou seu próprio marido. Surge, então, a alma do morto que conta a todos, estupefatos, como se suicidou. Mas um açougueiro que a tudo ouvia, dá uma quarta versão. Em Rashomon, portanto, são fornecidos três pontos de vista diferentes do mesmo fato, todos igualmente espectáveis, até emergir deles um quarto que é o verdadeiro. Ou não? 

Há o caso de a ação ser contada por um morto que relata do além a sua história trágica - não existem nem realizador oculto nem personagem visível. É o que acontece em Crepúsculo dos deuses (Sunset Boulevard, 1950), de Billy Wilder, no qual o encenador protagonista conta da sua situação de defunto, o como e porque de sua morte devido à atriz famosa da qual tinha sido hóspede. A ex-estrela é Glória Swanson que, vivendo esquecida num suntuoso palácio antiquado de Hollywood, acompanhada de seu fiel criado (Erich von Stroheim), contrata um roteirista fracassado que se torna seu amante e que ela mata quando ele se recusa a continuar a relação.