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05 maio 2006

Lembranças de Sganzerla na Bahia



Rogério Sganzerla nunca aderiu ao comercialismo. Neste ponto, foi inflexível até o fim. Uma vez, num festival, acho que em Brasília, contrariado com Neville D’Almeida, que, por oportunismo, tinha aderido ao pensamento sganzerliano sobre cinema, mas, depois, aderiu ao puro mercado, foi ao quarto do hotel onde este estava hospedado e lhe desferiu soco violento. Razão alegada: o ex-amigo Neville traiu seus princípios. Em 1978, quando existia, aqui, o escritório da Embrafilme, que programava o Glauber Rocha, dando preferência aos filmes de Barretão, num escárnio sem precedentes, chegando a deixar Menino do Rio mais de dez semanas em cartaz, quando nas últimas a sala estava às moscas, a colocação de O Abismo - ou como se quer agora Abismu - apenas no Rio Vermelho acendeu a fúria sganzerliana. Dirigiu-se ao escritório da Embra e com o pé - estava lá, vi com estes olhos que a Terra há de comer - espatifou o telex da empresa.

Tinha seus princípios, suas concepções sobre cinema, e lutava por eles até o fim. Sua estadia na Bahia foi significativa. Virou hippie, ficava deitado na rede em Itapoã nos anos 70 e, depois, resolveu comprar um apartamento na Avenida Paralela. Curtia muito o sol de Itapoã. Mas, já na Paralela, com a sua sempre querida Helena Ignêz e os filhos, comprou um Chevette enferrujado para se deslocar. Uma vez, tomando carona, ao fechar a porta, esta caiu no chão.

Certa ocasião, encontrei com ele na porta da Tribuna da Bahia aonde ia regularmente entregar minhas colunas. Era de tarde, mais ou menos 2 horas. Fomos beber cerveja no bar de um ‘espanha’ em frente. Mais de dez garrafas das grandes. Sganzerla, com notas de 500 - naquela época a maior, saindo pelo bolso da camisa, pagou tudo, apesar de minha insistência em dividir. Fomos a um escritório à rua Ruy Barbosa onde ele me emprestou A Marca Da Maldade, de Orson Welles, em cópia 16mm contida em duas latas. Eu tinha, nesta época, um projetor IEC desta bitola e vi o filme várias vezes até que, anos depois, Sganzerla irrompeu em meu apartamento para buscar a cópia, que pensava ter ele esquecido para sempre. Bem, nesta rua Ruy Barbosa tinha um bar e continuamos a beber. Corria célere o ano de 1979. Noite adentro, com as portas do bar - um fétido bar, diga-se de passagem somente accessível aos temperamentos etílicos - já arriadas, Sganzerla subiu na mesa e fez um discurso atacando o Cinema Novo. Ninguém, no recinto, entendeu porra nenhuma. Mas embriagados de toda espécie gostam mesmo de entrar, após umas e outras, em qualquer portinha onde venda cerveja - ou, se for o caso, trago forte. Sganzerla, diga-se de passagem, bebia apenas ocasionalmente.

Encontrei-o várias vezes no jardim dos Barris, onde eu ficava esperando a sessão começar na Sala Walter da Silveira com uma namorada. Ele ia muito neste jardim, que ficava atrás da casa dos pais de Helena Ignez, que se localizava na mesma rua da pensão de D. Lúcia Rocha, onde Glauber passou a adolescência e veio a conhecer a linda vizinha com quem se casou na Igreja das Mercês em 1959.

Com o passar do tempo foi deixando o hipismo, e, já nos anos 80, tinha mudado completamente a sua indumentária. Saiu de Salvador, foi morar na Urca no Rio de Janeiro. Ia sempre, porém, a São Paulo. Foi na Bahia que começou a pesquisar sobre Orson Welles. Podia ser encontrado toda tarde no Instituto Geográfico e Histórico, ali perto da Piedade. Contou-me que, um dia, em Itapoã, conversando com um pescador velho, perguntou a ele se conhecera Orson Welles e, para sua estupefação, o pescador o tinha conhecido, sim, descrevendo-o nos mínimos detalhes. É que Welles teve uma temporada baiana e filmou aqui alguma coisa para It’s all true. Ficou encantado com a praia de Itapoã, fez conferência no Instituto Histórico e se hospedou no Palace Hotel na rua Chile na época em que existia jogo de roleta. Tomou um porre homérico, mas não jogou os móveis do quarto pela janela como fizera no Copacabana Palace depois que soube, pelo telefone, que a RKO tinha desistido de It’s all true,cortando-lhe os recursos.

Levei-o uma vez à Facom (Faculdade de Comunicação da Ufba), ainda no prédio de Biblioteconomia. Exibi em 16mm O bandido da luz vermelha, e depois Sganzerla falou muito para uma platéia apática, que, em 1982, o desconhecia. Saímos com as latas pesadas do filme e nos dirigimos ao Avalanche no Canela onde ficamos a tomar umas e outras. Para minha vergonha, alguns alunos se retiraram no meio da palestra do grande cineasta.

A última vez que o vi foi em 2001 quando fiz parte da comissão julgadora dos roteiros do Prêmio Carlos Vasconcelos Domingues. Ele também fazia parte. Para julgar melhor os roteiros, o presidente da comissão teve a idéia de passar com seus membros uma semana inteira em Cachoeira, em sua melhor pousada. Sganzerla estava bem disposto, vendendo saúde, chegando, inclusive, a me criticar por um porre de cerveja que tomei.

03 maio 2006



A musa do blog aqui presente. Amém!

O DVD dá luz a Carl Theodor Dreyer

O advento do DVD, pelo menos para mim, foi uma coisa revolucionária. Ainda que no mercado faltem muitas obras importantes, o que se encontra disponível já dá para se ter uma pequena cinemateca. Por exemplo: se não existisse o disquinho onde poderíamos ver os filmes do dinamarquês Carl Theodor Dreyer?. Excetuando-se o seu famoso La passion de Jeanne D'Arc (1928), acredito que a Cinemateca Brasileira, de São Paulo, não possua em seu acervo obras fundamentais como A palavra (Ordet, 1955), Gertrud (1964), Vampyr, entre outros. Tendo-as, então seria o caso do amante do bom cinema, que não mora em SP, ter que viajar para vê-las e, mesmo assim, subordinado à programação da sala. Se não as tem, somente poderiam ser contempladas em Paris e Nova York. Mas o disquinho possibilita a apreciação de cinco obras de um realizador especialíssimo, como Carl Theodor Dreyer. E o resgate de todo o grande cinema do passado está sendo processado através do DVD. Se este não existisse, estaríamos condenados ao lixo da contemporaneidade e a nova geração ficaria sem saída para saber o que foi o cinema.

Assistindo a Ordet, percebi que Ingmar Bergman sofreu muita influência do dinamarquês. Simbiose do expressionismo alemão com o realismo nórdico, Ordet é uma obra-prima indiscutível, ainda que não se acredita em milagres. Os momentos de Ingrid a morrer, a agonia da espera de sua morte, lembra muito Harriet Anderson em Gritos e sussurros. O que impressiona muito é a cenografia, o branco que compõe o quarto da doente. Já Bergman, fazendo uma variação, coloca o vermelho. Mas Ordet não é para se considerar assim em poucas palavras.

01 maio 2006

Glauber Rocha: ruptura e revelação


A realização de Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, em 1964, sobre ser um acontecimento para a consagração do Cinema Novo, traumatiza duramente toda uma geração de cineastas por meio de seu estilo esfuziante determinador de um verdadeiro impacto estético. O filme, que consta da relação do eminente crítico francês Claude Beylie como uma das obras-primas do cinema em todos os tempos, está a completar 42 anos de existência, e seu lançamento em DVD, em cópia luminosa, comprova, na revisão, uma atualidade surpreendente ao contrário de outros de sua época datados e envelhecidos. O tempo, comprova-se mais uma vez, é o melhor juiz no julgamento da obra cinematográfica.E, agora, está já nas melhores locadoras o seu maior trabalho, a obra-prima que é Terra em transe.

Filmado em Monte Santo, produzido pelo carioca Jarbas Barbosa, e segundo longa metragem de Glauber Rocha – o primeiro, Barravento (1959/1962), Deus e o diabo na terra do sol surge, no panorama do cinema brasileiro, como um divisor de água, considerando ser uma obra renovadora na sua estrutura narrativa que consolida uma invenção formal inédita entre as películas realizadas no país. Ópera sertaneja ou, talvez, melhor dizendo, concerto barroco, cujas influências alienígenas notórias não poluem o estilo, o filme, no entanto, possui um toque pessoal e uma maneira toda particular na manipulação dos elementos da linguagem cinematográfica.

Há, na estrutura narrativa barroca de Deus e o diabo na terra do sol, a influência da tragédia grega – o cego Júlio como fio condutor; a de John Ford – na exploração dos grandes espaços em planos abertos como na seqüência da morte da mãe do vaqueiro Manoel e o tiroteio que vem a seguir; a de Akira Kurosawa – na gestualística do personagem de Corisco (Othon Bastos), o rodopio quando morre; a de Sergei Eisenstein – a matança dos beatos em Monte Santo por Antonio das Mortes se estrutura de acordo com as coordenadas da montagem eisensteiniana da escadaria de Odessa em O encouraçado Potemkin; a de Luis Buñuel – a morte do beato por Rosa dentro da Igreja, entre muitas outras. Se, à primeira vista, isso pode parecer uma colcha de retalhos, na verdade, porém, há uma confluência que se canaliza para uma demonstração estilística particular e própria, instauradora daquilo que se chama de uma escrita glauberiana.

Deus e o diabo na terra do sol é, sem sombra de dúvida, para muitos exegetas, o maior filme do cinema brasileiro, ainda que alguns críticos vejam em Terra em transe um avanço ainda maior (como é o caso, aqui, desse mal escrevinhador). Mas em ambos se verifica uma manifestação no sentido de quebrar a linguagem cinematográfica dos cânones acadêmicos inaugurados por David Wark Griffith com o estabelecimento da montagem narrativa em 1914 com O nascimento de uma nação (The birth of a nation), e que configuraria, quase como uma norma gramatical, a lei da progressão dramática – apresentação do conflito, desenvolvimento deste, clímax e desenlace. Sergei Eisenstein, na década de 20, em plena efervescência da transformação revolucionária soviética, subverte-a com a teoria da montagem intelectual ou ideológica. Mas o padrão cinematográfico continua sendo o da narrativa griffithiana. Que já nos anos 50 a desdramatização de Rossellini e Antonioni põe em xeque, inaugurando a anti-narrativa, que seria radicalizada nos 60 pelos filmes de Godard & Cia.

Se já em sua obra de estréia, Barravento, se insinua um touch eisensteiniano – na cena em que Firmino (Antonio Pitanga), desesperado, fala a pescadores impassíveis – e se percebe que ele se encontra em outro espaço fílmico, Deus e o diabo na terra do sol constitui-se num amálgama de influências diversas cujo processamento se faz em tom original, podendo ser considerada a primeira obra com a quintessência da escrita glauberiana, já que, em Barravento, Glauber Rocha entrou após um golpe com 2/3 do filme já executados. Mas se, em Deus e o diabo na terra do sol, ainda que haja seqüências que procuram o dinamismo do corte em movimento, a sua maioria, entretanto, é de planos longos, com a câmera a passear entre os personagens, demorando-se na captação de seus gestos e emblemas. O mesmo não vem a acontecer com o processo de criação cinematográfica de Terra em transe, cuja montagem é sincopada, os planos curtos, a câmera sempre acelerada em torno dos personagens e, em alguns casos, sem que, com isso, se apague a marca do autor, a presença da mise-en-scène wellesiana.

Na filmografia glauberiana, percebe-se um realizador sempre em transe, sempre em busca, sempre incomodado, sempre numa procura desesperada da traduzir a realidade brasileira num discurso quase alucinatório, servindo-se do próprio mundo para o recriar de maneira completamente original. O maior cineasta brasileiro? Sim, nenhum outro foi capaz, como ele, de recriar a realidade nacional numa tradução revolucionária. Na obra que se segue a Terra em transe, não considerando, aqui, Câncer – que é o pioneiro do Cinema Underground, embora Glauber nunca tenha assumido esta paternidade, O dragão da maldade contra o santo guerreiro, o realizador tenta traduzir para as imagens em movimento a linguagem da literatura de cordel numa mistura, poder-se-ia dizer, insólita, com a tragédia transposta para a aridez dos cenários sertanejos.

As duas grandes manifestações da arte glauberiana estão em Deus e o diabo na terra do sol e Terra em transe, vindo o cineasta, após estes dois fulgurantes momentos da expressão cinematográfica, a um reprocessamento de suas constantes temáticas que atingiu pleno êxito apenas em O dragão da maldade contra o santo guerreiro. O exílio europeu não lhe proporciona um estímulo de renovação nem de equilíbrio como autor, considerando, neste caso que, num autor, não se pode exigir permanente renovação, pois ele se caracteriza pela variação sobre um mesmo tema – Bergman, Fellini, Chaplin, Antonioni, Mizoguchi, Buñuel, et caterva. Mas Cabeças cortadas e O leão de sete cabeças – ou, como queria Glauber, em cinco idiomas: Der leone have sept cabeças, revistos hoje, são simplificações temáticas que culminariam, entre outros filmes, como o genial Di Cavalcanti – uma exceção na segunda fase do autor de Deus e o diabo na terra do sol, no radicalismo da montagem atômica de A idade da terra, canto de cisne do cineasta que viria a morrer num aziago agosto de 1981. Mas, como se costuma dizer, no macrofilme glauberiano, que é toda a sua filmografia, uma obra singular, ainda que menor, não pode ser considerada, por isso, menos importante.





30 abril 2006

Barbaridade


Quinta, vi anunciado que ia passar no Telecine Cult, O leão do inverno (The lion in the winter, 1968), de Anthony Harvey, (montador de Lolita e Dr. Fantástico, ambos de Stanley Kubrick), com um elenco de monstros sagrados: Peter O'Toole, Katherine Hepburn (ganhou um Oscar pelo desempenho primoroso da rainha, ex-aequo com Barbra Streisand por Funny Girl, de William Wyler), Anthony Hopkins (aqui, em seu primeiro papel no cinema, muito jovem e gordo), Tomothy Dalton (que, nos anos 90, foi James Bond), secundados por atores inglêses do proscênio teatral de altíssimo nível. Tinha um compromisso que levou a tarde toda, mas, perto da hora marcada, 19:30, saí antes do fim, para ver O leão do inverno, pois visto no cinema Tupy no fim da década de 60, guardava, dele, boa lembrança. Esta sala exibidora era especializada em exibir filmes em 70mm e, evidentemente, já foi fechada. Assim, o meu único contato com The lion in the winter foi "no esplendor dos 70mm". Filmado em cinemascope, pelo artista Douglas Slocombe, para suavizar o excesso de diálogos, porque baseado em peça teatral, The lion in the winter tem excelentes composições de enquadramento em plano geral e, nos momentos de diálogos, os personagens geralmente ocupam as laterais do quadro. Trata-se de um cruel e impiedosa reflexão sobre o poder com acentos shakespearianos, com roteiro do próprio autor da peça, James Goldman. Impossível reduzi-lo a uma tela cheia, por exemplo. Mas foi o que aconteceu. Iniciado, conservou o Cult, durante a apresentação dos créditos, o formato original. Findo estes, a tela se espicha para dar lugar ao full screen. Quinze minutos decorreram para que, hidrófobo, desligasse, incontinenti, a televisão.

Aliás, os canais telecine não respeitam mais o formato cinemascope. Agora mesmo, domingo, ia ver Viagem ao fundo do mar, de Irwin Allen, mas fizeram o mesmo: após os créditos, as imagens se esticaram, e, também, estiquei-me do sofá para fazer outra coisa.