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05 março 2014

Cinema e atmosfera

Painel de Carybé que ficava na sala de espera do antigo cinema Guarany em Salvador

Os complexos de salas (Multiplex. Cinemark, Cinépolis, Aeroclube), uma nova modalidade no campo da exibição para superar a crise do mercado, que surgiram na Bahia a partir de junho de 1998, se, por um lado, oferecem conforto e segurança, por outro descaracterizam o cinema enquanto casa de espetáculos. As salas, uniformizadas, todas iguais, produzem o aniquilamento do sentido atmosférico que existia, no passado, com os chamados cinemas de rua. Nestes, cada um tinha o seu estilo, a sua personalidade, proporcionando ao espectador uma sensação de estabelecimento, pois a arquitetura, a decoração, o tamanho da tela, a disposição das poltronas, entre outros fatores, predispunham o contemplador de filmes, ajudando-o no carregamento da emoção.

O amante do cinema atual não mais sabe, passado algum tempo, em que sala viu determinado filme ou, mesmo, pode confundir o Iguatemi com o Aeroclube. O que antes não acontecia. Sabia-se que Os Dez Mandamentos, por exemplo, teve a sua estréia no cine Tupy. A visão do filme e o estar-no-cinema se interligavam como numa espécie sui generis de simbiose. A influência do ambiente na psicologia do espectador é fundamental, pois este o associa ao filme. Quem viu, por exemplo, O Manto Sagrado, o primeiro filme em cinemascope, no Guarany, na década de 50, jamais esqueceu que o assistiu neste cinema. As características particulares de cada sala de exibição cinematográfica produziam, por conseguinte, uma influência avassaladora na contemplação do filme. Mesmo em se tratando de cinemas de segunda categoria, os poeiras, há, nítida, uma sensação particular. A imensa tela do Pax proporcionava um impacto surpreendente que se aliava à atmosfera pesada do ambiente. Até a cortina sebosa do cine Aliança tem um sentido para aqueles que o frequentaram na Baixa dos Sapateiros. Fazia-se de tudo para não se encostar a ela, mas era um empreendimento impossível. E o que teria a cortina com a percepção do filme? Ela, por determinar a sensação de se estar num lugar, envolvendo a ambiência, influenciava, sim, o espectador.

Díspares, os cinemas de Salvador possuíam estilos. O que faz a diferença da contemplação atual nos complexos padronizados, que tiram, inclusive, do cinema, seu caráter de função - no sentido da função teatral, musical. Havia, ainda, uma postura hierática por parte daqueles que recebiam os espectadores, fossem os porteiros, os gerentes, os lanterninhas, sempre vestidos, uniformizados. Comprando o ingresso, o espectador, ao entregá-lo ao porteiro, sempre em pé, quase como um soldado de sentinela, tinha a sensação de acesso, de ter entrado num lugar atmosférico cuja senha, o ingresso, marcava a sua admissão. Da sala de espera à sala de projeção propriamente dita havia certo impedimento, pois ninguém podia adentrá-la se a sessão já estivesse começada ou faltando quinze minutos para terminar. A corrente na porta sinalizava o interdito proibitório. Há nisso tudo, portanto, nesta característica do cinema como função, um espaço imaginário perdido nos dias atuais pela completa desordem na condução dos espectadores ao ritual da projeção.

Com o desaparecimento das salas mais populares e das situadas nos bairros, a classe menos aquinhoada deixou de ir ao cinema. Os complexos de salas, muitos concentrados, cobram muito caro pelos ingressos. Mas o propósito é falar da atmosfera, do estilo de certos cinemas que, ainda vivos na memória, desapareceram em conseqüência da decadência do centro da cidade e do alargamento do espaço urbano. A velha província, calorosa e mais agitada culturalmente, expandiu-se numa metrópole desordenada e enfartada. Quem já tomou uma cerveja gelada, 'a las cinco de la tarde', no Restaurante e Bar Cacique (que ficava à Praça Castro Alves), sabe do que se está falando.

Vindo de dentro do cine Guarany, o cheiro do ar condicionado dessa sala o identificava, pois característico, único. A sala de espera, com dois enormes murais de Carybé esculpidos nas pareces, representando índios com suas armas, de tonalidade vermelha, era, desde já, um convite ao imaginário do espectador. Não havia, para alegria dos verdadeiros cinéfilos, máquinas de fazer pipocas e doidos. Apenas uma discreta bombonière num cantinho ao lado das poltronas com as guloseimas postas em ordem hierática, os dropes enfileirados como numa parada militar. Quem adentrasse a sala de exibição tinha que passar por uma corrente e por portas que se abriam ao manejo de dois funcionários que ficavam à espreita do espectador a olhar pelos dois únicos quadrados não fechados que as compunham. Nas paredes desta sala, peixinhos desenhados pelo artista citado, assim como, do outro lado, índios multiplicados.


04 março 2014

Tentativa de entendimento de Resnais

Les herbes folles tem nos pensamentos dos personagens a sua mola propulsora. São os pensamentos que detonam os atos e as situações. Alain Resnais é um realizador cinematográfico que tem como característica sempre a investigação da mente do ser humano. O que eleva sobremaneira seus filmes é a sua capacidade de apresentar, cinematograficamente, as angústias, os desejos, as hesitações de seus personagens. Há, em Les herbes folles, um trabalho original no que concerne ao tratamento da fragilidade do homem frente as suas circunstâncias. Evitando qualquer tipo de psicologia banal, o filme é sobre o mecanismo de funcionamento paradoxal da mente humana. Kubrick, em De olhos bem fechados (Eyes wide shut, 1999), ainda que uma obra a respeitar, tornaria este seu derradeiro filme numa obra-prima se possuísse os recursos resnaisianos ou, melhor a dizer, se Resnais filmasse De olhos bem fechados daria, a ele, uma funcionalidade e uma expressão que o gênio kubrickiano tentou, mas não conseguiu, a considerar que também aqui se trata dos desvarios da mente humana num processo de obsessão.

Além do mais, As ervas daninhas é um exercício cinematográfico puro no qual a lógica e a psicologia se explodem num redemoinho. A mise-en-scène é de tirar o fôlego (como um movimento de câmera para frente – travelling – na sequência do almoço na casa de Dussolier quando este, que aparece sentado num sofá, de repente, com a continuação, aparece já sentado na mesa, havendo, um deslocamento não somente da máquina de filmar como também dos personagens em cena num tour de force admirável. O recurso resnaisiano dos lances de memória é usado com eficiência na estrutura narrativa: a bolsa amarela roubada em câmera lenta, o plano de detalhe da carteira perdida debaixo de um dos pneus do carro, os close ups de Sabine Azéma, os pacientes a sofrer na cadeira de dentista de Marguerite etc. É o imaginário controverso dos seres em movimento que dá margem à fabulação desse extraordinário Les herbes folle.

Marguerite Muir (interpretada com a elegância de Sabine Azéma, companheira, na vida real, de Resnais) é uma dentista que tem fascinação pelos sapatos exclusivos de uma loja parisiense. Depois de comprá-los, ao sair do estabelecimento, sua bolsa amarela, é-lhe roubada. Georges Palet (André Dussolier, ator constantes dos últimos filmes do cineasta) após comprar um relógio num centro comercial acha a carteira de Marguerite, que fora jogada fora pelos ladrões e se encontra embaixo de seu carro no estacionamento do shopping center. Curioso, verifica os documentos e descobre que a dona da carteira tem brevê de piloto, o que o fascina, porque, desde tenra idade, tem mania por aviões e seu sonho seria ter se tornado um aviador. É bom observar que a ação de Les herbes folles se estabelece a partir dos pensamentos de seus personagens, como já foi dito. Palet, por exemplo, ainda no estacionamento do shopping, fica revoltado com uma mulher que usa uma calcinha preta e tem desejo súbito de matá-la. É neste cipoal de desejos paradoxais e esquisitos que se estrutura o filme, baseado em O incidente, de Christian Gailly, com roteiro de Alex Reval.

Palet entra em obsessão para conhecer Marguerite e imagina várias formas de entrar em comunicação com ela. A cena na qual ele está dentro do carro, e imagens laterais vão sendo mostradas como soluções hipotéticas, é bem ao feitio resnaisiano. De repente, durante um almoço familiar (Palet é casado há 30 anos com Suzanne/Anne Consigny e tem três filhos), recebe uma ligação de Marguerite para agradecer a devolução da carteira (não sem antes ter ido à polícia para entregá-la e fazer os trâmites legais com o comissário interpretado por Mathieu Amalric, que se desorienta com as hesitações dele). É quando tem início a idéia fixa de Palet em entrar em contato, custe o que custar, com Marguerite. É a pulsão de um desejo na estrutura mental de Palet que aciona os mecanismos fabulatórios de Les herbes folles, que, para evitar o spoiler, deixa-se, aqui, de contar o resto.

Se ainda pudesse existir uma, por assim dizer, lógica narrativa, esta explode no final numa apologia à liberdade da mise-en-scène. Resnais propõe, na parte final, a apologia do espetáculo puro, do cinema em plena autonomia de vôo, quando a fábula dá lugar à narrativa imaginária à disposição do específico cinematográfico. Os leitmotivs (como que refrões) que permeiam o filme (as ervas daninhas das circunvizinhanças e que adentram a casa de Palet, a bolsa amarela em câmera lenta...) se desatam num processo único. A tal ponto que é a celebração do cinema que se verifica com o passeio aéreo que pontua a obra-prima. A partir mesmo, antes disso, do momento em que Marguerite vai procurar Palet, que se encontra num cinema de bairro a ver As pontes de Toko-Ri (The bridges of Toko-Ri, 1954), com William Holden e Grace Kelly, por ser um filme de guerra e de aviões em combate. Mas, em verdade, não são apenas os tormentos mentais dos personagens que se constituem o móvel de Les herbes folles, mas, também, as formas de expressá-los de maneira puramente cinematográfica.

Duas vezes a bela fanfarra da Fox, a pontuar a fantasia que é o cinema: tocada, com aquela ênfase que fez a emoção dos antigos frequentadores das salas de exibição, no neon do cinema onde Palat se escondera para ver os aviões de As pontes de Toko-Ri, e, quando ele se encontra com Marguerite e a beija no hangar. O filme, na terceira parte, toma um rumo surpreendente, a transformar as hesitações iniciais dos personagens em decisões. A rigor, não há rumo a tomar em Les herbes folles, ainda que haja o rumo do roteiro a seguir, a se fazer cinema pela varinha mágica de Resnais. Mas os personagens, as criaturas resnaisianas, não o têm. Como a vida.

Impressionante o poder de convencimento que passa as interpretações de André Dussolier (que tem neste filme a maior performance de sua carreira) e de Sabine Azéma, além de todos os outros intérpretes, buscados, a maioria deles, na excelência do cast da Comédie Française.

Celebração ao cinema e ao imaginário, como bem acentua a interrogação aparentemente infantil do garoto, na última tomada do filme, que pergunta à mãe: “Quando eu for gato, posso comer a ração do gato?”.

03 março 2014

Momentos sublimes da arte cinematográfica

Delphine Seyrig e Giorgio Albertazzi em O ano passado em Marienbad (1961), do genial Alain Resnais

 OITO E MEIO (Otto e mezzo, 1963), de Federico Fellini. Quando todas as esperanças pareciam impossíveis, Guido Anselmi se reanima e dança, com todo o elenco, o balé burlesco que dá fecho ao filme, com todos dançando contentes e de mãos dadas sob o império sonoro de Nino Rota.

 O PASSAGEIRO: PROFISSÃO REPÓRTER(Professione: reporter/The passenger, 1975), de Michelangelo Antonioni. A cena começa num quarto de hotel, a câmera sobre um tripé. Nicholson e a namorada que ele encontrou ao assumir a identidade de Robertson (Maria Schneider) conversam. O quarto é no andar térreo do hotel, e ao fundo uma ampla janela com grades de ferro dá para a praça lá fora. Sozinho no quarto, Locke acende um cigarro e se deita, e então tem início o longo plano final. A câmera se aproxima lentamente da janela, passa pelas grades, e continua a filmar lá fora até que voltando ao quarto o encontra morto.

OS BRUTOS TAMBÉM AMAM (Shane, 1953), de George Stevens. Cena da morte de Paredón pelo pistoleiro Wilson. Paredón (Elisha Cook Jr) se aproxima, em travelling, da varanda na qual está o pistoleiro Wilson (Jack Palance). Corte. Wilson se levanta e começa a calçar as suas luvas. Paredón lhe desafia e recebe um tiro que o joga longe no meio da lama. Stevens declarou que usou um tiro de canhão.

A MARCA DA MALDADE (Touch of evil, 1958), de Orson Welles. O plano-sequência inicial. Com uma só tomada, Welles percorre uma cidadezinha fronteiriça com uma câmera ágil até a explosão de uma bomba perto de um posto de gasolina, encontrando Charlton Heston e Janet Leigh. Na versão espúria lançada comercialmente, todo o plano é aproveitado para a colocação dos letreiros. Mas a versão restaurada mostra que o autor não usou, nesta introdução, nenhum sinal gráfico.

O PROFESSOR ALOPRADO (The nutty professor, 1963), de Jerry Lewis. Cena da saída da buate depois da transformação. Usando uma poção mágica feita por ele, o tímido professor Kelp se transforma no engomado galã Buddy Love. Quando este sai da buate, em câmera subjetiva (em lugar de Love), andando,  o que se contempla são mulheres e homens surpresos e extasiados com o que estão a ver.

CIDADÃO KANE (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles. Um travelling mostra os pertences de Charles Foster Kane empilhados e a impressão que se tem é a de se estar a ver uma metrópole com seus arranha-céus. O percurso do travelling tem seu fecho num plano de detalhe do trenó onde se encontra inscrita a palavra Rosebud, cujas letras ardem e se desmancham pelas chamas.
O ANO PASSADO EM MARIENBAD (L'année dernière a Marienbad, 1962), de Alain Resnais. Ostravellings se sucedem na mansão, a câmara passeia pelos seus longos e intermináveis corredores, à procura de um cinema que se faz como um processo de investigação do universo mental. Delphine Seyrig salta na cama imensa, como se fosse um pássaro numa gaiola dourada

SUSPEITA (Suspicion, 1942), de Alfred Hitchcock. Cary Grant, numa angulação expressionista, sobe a escada, uma grande escada meio circular, com um copo de leite na mão. O espectador suspeita que o leite esteja envenenado e ele vá matar a mulher. O realizador colocou uma lâmpada dentro do copo para fazê-lo mais sugestivo.

ACOSSADO (A bout de souffle, 1959), de Jean-Luc Godard. Ferido, fatigado, Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo) deambula por uma rua de Paris enquanto a câmera, em travelling, o acompanha até que, ao final da escapada, tomba. Todo o itinerário tem um forte acento jazzístico.

A LARANJA MECÂNICA (A clockworke orange, 1971), de Stanley         Kubrick. Enquanto Alex e seus companheiros espancam e torturam o casal de escritores com uma violência inaudita, estuprando a mulher, o que se ouve é uma canção suave, a deSingin'ng in the rain. A narrativa, aqui, contraria a fábula

FRENESI (Frenzy, 1972), de Alfred Hitchcock. A prdução de sentidos sendo feita pelo travelling, que acompanha Barry Foster, o estrangulador que o público já tem conhecimento, a entrar no edifício acompanhado da namorada de John Finch, o falso culpado. De repente, a câmera pára no meio da escada e faz um travelling a derrière (para trás) e sai do prédio. O grito da mulher é abafado pelo vozerio do mercado em frente

RASTROS DE ÓDIO (The seachers, 1956), de John Ford. Finda a jornada, John Wayne traz de volta Natalie Wood para o lar. A càmera, no último plano, plantada dentro da casa, apenas recebe a claridade que vem do fora e a porta aberta, que se destaca como silhueta na escuridão. Todos entram felizes, alegres, com o retorno. Menos John Wayme, o Tio Ethan, que, cumprida a missão, caminha para fora, deambulando, sem destino

OUTUBRO (Oktiabr, 1927), de Sergei M. Eisenstein. Kerensky sobe os degraus do palácio, mas retorna sempre ao mesmo ponto, enquanto as legendas citam suas inumeráveis atribuições ditatoriais e, "desafiado", Kerensky é confrontado com divindades africanas, budistas, barrocas, cristãs etc

LUZES DA CIDADE (City lights, 1930), de Charles Chaplin. Pelo toque nas mãos de Carlitos, a florista, já operada da vista graças a ele, reconhece o seu benfeitor. E o close up final de Chaplin é o mais enigmático de toda a história do cinema, a atingir a tragédia da condição humana

ASSIM ESTAVA ESCRITO (The bad and the beautiful, 1953), de Vincente Minnelli, Depois da conferência com Walter Pidgeon, Lana Turner, Barry Sullivam e Dick Powell, na saída da casa, não resistem a pegar um telefone externo para ouvir o que Pidgeon conversa com Kirk Douglas, que está disposto a trabalhar novamente com os três. Em plano fixo, Lana pega o gancho do telefone e o ouve primeiro, e os rostos de Sullivam e Powell vão surgindo nas laterais, curiosos também em saber o que está sendo dito. Final do filme: The end. Partitura exasperante de David Rastkin.

PSICOSE (Psycho, 1960), de Alfred Hitchcock. A antológica sequência do chuveiro, quando Janet Leigh é esfaqueada. Durando pouco mais de um minuto, a cena possui quase cinqüenta tomadas, o que possibilita constatar que o processo de criação no cinema é uma ilusão. A sua fragmentação é radical e, nesse sentido, alguns ensaístas europeus comparam-na à escadaria de Odessa de O encouraçado Potemkin para a evolução da linguagem cinematográfica.

O LÍRIO PARTIDO (Broken blossoms, 1919), de David Wark Griffith. Lilian Gish se contorcendo dentro de um armário cuja porta o boxeador destrói a golpes de machado, antes de espancar a menina com o cabo de um chicote

VAMPYR (1932), de Carl Theodor Dreyer. As cenas vistas por um cadáver transportado em seu caixão, os olhos mortos fixos no céu e nos tetos.

O ENCOURAÇADO POTEMKIN (Bronenosetz Potemkin, 1925), de Sergei Eisenstein. A Escadaria de Odessa. A multidão nos degraus aclamando os marinheiros e, de repente, os primeiros tiros de fuzis; as botas dos soldados passando por cima dos cadáveres; o menino morto, a mãe que torna a subir a escadaria trazendo o filho já sem vida; os fuzileiros descendo a escadaria; uma mulher, no alto da escadaria, atingida, e seu cadáver empurrando para frente o carrinho do bebê.

DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL (1964), de Glauber Rocha. A matança dos beatos em Monte Santo.

02 março 2014

Os 10 melhores filmes de Woody Allen

Por Luis Nassif

Quando solicitado para oferecer a sua lista dos seus melhores filmes da história do cinema, Woody Allen sempre se negou, mas, recentemente, o British Film Institute solicitando-a, o veterano cineasta resolveu dá-la à publicação. Os dez títulos, porém, e vale ressaltar, não estão em ordem de importância. O que se pode observar é que Woody Allen dá preferência aos filmes de autor e às obras já consolidadas como clássicos absolutos. Basta verificar que os títulos mais recentes datam de 1972. O cinema contemporâneo está ausente da lista alleniana. O que não significa uma crítica a ela, pois na minha, já publicada por aqui, também raros são os filmes que ultrapassam os anos 70. Federico Fellini, pelo visto, é o realizador que Allen mais admira, pois colocou dois filmes dele na relação (Amarcord e Oito e meio). Inclusive Allen fez em  Memórias (Stardust Memories, 1980, o seu oito e meio. Senti falta de um Hitchcock, pois grande mestre e um inventor de fórmulas da linguagem cinematográfica. E John Ford? E Howard Hawks? Bem, toda lista é subjetiva. Faço aqui comentários aos filmes escolhidos.

OS INCOMPREENDIDOS (Les quatre-cent coups, 1959, de François Truffaut, com Jean-Pierre Léaud, Albert Rémy, Claude Maurier, Patrick Aufey. Primeiro longa metragem de Truffaut, o severo e temerário crítico do Cahiers du Cinema, detonador, ao lado de Acossado (A bout de souffle, 1959), da Nouvelle Vague, Les quatre-cent coups (seu título original é uma expressão idiomática francesa que pode ser entendida como pintar o sete) é um filme sobre a solidão de um garoto e sua inadaptação ao meio social, que acaba cometendo um roubo, e, preso, foge da casa de correção para menores. Obra quase autobiográfica, o personagem Antoine Doinel (sempre interpretado pelo mesmo ator: Jean-Pierre Léaud) pode ser considerado o alter ego do autor. Truffaut repetiria em outros filmes a devoção aos temas da infância e da solidão.

LADRÕES DE BICICLETA (Ladri di biciclette, 1948), de Vittorio De Sica, com Lamberto Magnorani. Obra-prima do neorrealismo italiano, que, com sua nova maneira de apreender o real no cinema, exerceu profunda influência sobre a geração posterior (o Cinema Novo, por exemplo, tem muito da escola neorrealista), Ladri di biciclette, com roteiro de Cesare Zavattini, figura-chave, objetiva representar a realidade sofrida de uma Itália pós-guerra através da história de um operário, que, com a perda de seu instrumento de trabalho, uma bicicleta, parte em sua busca, ao lado de seu filho pequeno. O filme poderia ter se tornado apenas um mero registro sociológico do período, mas com sua singular poesia da fealdade ainda hoje é pleno de sensibilidade e humanismo. Um instrumento do humanisno.

CIDADÃO KANE (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles, com Everett Sloane, Joseph Cotten, outros. Ponto de partida da linguagem do cinema contemporâneo, instauração de um novo modelo narrativo baseado na fragmentação em que o relato se assemelha a um puzzle, com vários pontos de vista, sábia utilização da profundidade de campo, pode-se dizer que existe um cinema antes de Kane e outro depois, tal a sua importância para a evolução da estrutura audiovisual moderna, que, na sua época, foi uma verdadeira revolução na forma de narrar. Primeiro lugar em quase todas as enquetes mundiais desde os anos 50, Kane apenas perdeu o pódio ano passado, quando ficou em segundo lugar na lista dos maiores filmes de todos os tempos, dando lugar, na revista inglesa Sight and Sound a Um corpo que cai (Vertigo, 1958), de Alfred Hitchcock.

AMARCORD (idem, 1973), de Federico Fellini. Estilização das constantes fellinianas e a recordação da cidade natal, Rimini, do realizador. Se em Os boas-vidas (I vitelloni, 1953), Fellini revisita a sua vida de vitelloni pelas ruas com os companheiros e a atmosfera da província, mas num acento realista, neste a estilização excessiva (mas necessária e envolvente) promove, em algumas cenas, a sensação de plena sublimidade. Obra de grande criatividade imaginativa, de poesia borbulhante, bem de acordo com o temperamento esfuziante do artista que a criou. A partitura de Nino Rota fica nos ouvidos. Filme-síntese do cineasta, considerando que, depois de Amarcord, nunca mais o autor de Oito e meio atingiria tal nível de sublimidade. Sequências antológicas: a ida de Magali Noel ao palácio para ser recebida pelo príncipe; os rapazes que dançam no nevoieiro; a chegada deslumbrante do transatlântico Rex; o tio que sobe na árvore; o busto gigantesco de Mussollini em dia de parada; entre tantas outras.

A GRANDE ILUSÃO (La grande illusion, 1937), de Jean Renoir, com Jean Gabin, Erich von Stroheim, Pierre Fresnat, Marcel Dalio. Para muitos, como Woody Allen e François Truffaut,, Jean Renoir é o maior cineasta francês de todos os tempos. Nesta obra mais que prima, três pilotos franceses capturados (a ação se passa na Primeira Guerra Mundial) entram em choque com oficial alemão (interpretado por Von Stroheim). O momento em que o francês morre, em consequência de um tiro dado pelo alemão, e este lhe pede o perdão, é antológica. As afinidades entre as classes sociais são mais importantes, segundo Renoir, do que suas diferenças ou luta. Grande momento da história do cinema que diz muito não somente sobre a guerra mas sobre a urgência do humanismo como instrumento de integração entre os povos. Renoir, dois antes mais tarde, faria a sua obra definitiva: A regra do jogo (La règle du jeu, 1939).

O CHARME DISCRETO DA BURGUESIA (Le charme discret de la bourgeoisie, 1972), de Luis Buñuel, com Fernando Rey, Delphine Seyrig, Stephane Audran, Jean-ìerre Cassel, Paul Frankeur. Grupo de burgueses se reúne para jantar mas sempre, quando se preparam para sentar na mesa, são sempre interrompidos por acontecimentos espantosos. Ante-penúltima obra do mestre do surrealismo no cinema, que antecede os seus derradeiros opus (O fantasma da liberdade, 1974, Este obscuro objeto do desejo, 1977), faz parte da fase francesa do autor em que o surrealismo é diluído em fartas doses de humor. A virulência buñueliana de Viridiana é substituído pelo humor corrosivo.

OITO E MEIO (Otto e mezzo, 1963), Federico Fellini, com Marcello Mastroianni, Sandra Milo, Anouk Aimée. Filme que estabeleceu um corte longetudinal na história da arte do filme. A crise de um cineasta, Guido Anselmi (Mastroianni, alter ego de Fellini) e uma reflexão sobre o processo de criação no cinema. A realidade é vista de modo mediatizado, isto é, refletida pela consciência do protagonista ou pela do realizador omnisciente. O espectador é colocado diante de um desenvolvimento narrativo que não é lógico mas puramente mental. A admiração de Woody Allen por este filme não é à toa, pois tentou fazer seu Otto e mezzo em Memórias (1980).

O SÉTIMO SELO (Det sjunde inseglet, 1956), de Ingmar Bergman, com Max von Sydow, Gunnar Bjornstrand, Bibi Anderson. Alegoria tragicômica em forma de mistério medieval, com um desenvolvimento livre do imaginário da Idade Média, O sétimo selo ( Det sjunde inseglet) tem sua fábula estruturada na volta de Antonius Blok (Max Von Sydow) à Suécia após dez anos de luta na cruzada e o jogo que estabelece com a Morte num tabuleiro de xadrez. Antonius e seu lacaio Jons (Gunnar Bjornstrand) se dirigem, por uma longa jornada, ao castelo onde moram, e, no caminho, contemplam uma terra arrasada pela peste. Este itinerário de Blok, do erro inicial à Verdade final, é conduzido com extrema maestria por Ingmar Bergman, que se utiliza, aqui, do cinema, como um veículo filosofante e reflexivo acerca da condição humana. No percurso, Blok e Jons encontram vários personagens, mas apenas um casal de artistas mambembes se constitui num remanso de paz e tranquilidade, longe da mesquinharia e da hipocrisia dos outros. Blok, entretanto, continua o jogo de xadrez com a Morte (impressionante caracterização de Bengt Ekerot), mas esta, de repente, ganha partida. Vencedora, precisa levar consigo todos os personagens, deixando na vida somente o casal de cômicos (Bibi Andersson e Nils Poppe), o único capaz de desfrutá-la de maneira pacífica e feliz. EmA última noite de Boris Grushenko (Love and death, 1975), a última sequência do filme é uma homenagem explícita a este filme.

GLÓRIA FEITA DE SANGUE (Paths of glory, 1967), de Stanley Kubrick, com Kirk Douglas, Adolphe Mejou. Um dos mais vigorosos libelos anti-bélico no qual Kubrick mostra a carnifica promovida pelo exército francês durante a Primeira Guerra Mundial. Proibido na França, quando de sua estreia mundial, levou muitas décadas para ser lançado em Paris. O discurso cinematográfico kubrikiano é duro e sem papas na língua. Por causa deste filme, Kirk Douglas, admirado pelo talento do jovem diretor, convidou-o, com a saída de Anthony Mann, para dirigir Spartacus, do qual, além de ator, funcionou com produtor executivo com recursos de sua produtora.

RASHOMOM (1959), de Akira Kurosawa. No século XV, numa floresta perto de Tóquio, um bandido afirma que matou um samurai depois de violentar a mulher dele. A mulher diz que foi ela quem matou o marido. Mas a alma do morto, que aparece, diz que, na verdade, suicidou-se, e um açougueiro dá uma quarta versão. Leão de Ouro no Festival de Veneza e o filme que projetou o cinema japonês internacionalmente. O que é a verdade?
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