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08 fevereiro 2014

Eduardo Coutinho: um cabra marcado para morrer

Eduardo Coutinho, sobre ser, de longe, o melhor documentarista do Brasil, é, no entanto, também considerado um dos melhores do mundo. A sua maneira de entrevistar e o seu respeito àquele objeto de seu retrato proporcionam ao entrevistado uma confiança no realizador cujo resultado é um insólito poder de verdade e um poder de convencimento dado ao espectador. O documentário com Coutinho veio a se libertar do feijão-com-arroz do Ciclo Farkas, monocórdio e que fica apenas como registro sociológico ou antropológico, atingindo, com Coutinho, a dimensão de uma obra de arte. Partindo do já emblemático Cabra marcado para morrer, um filme-farol, a cada novo trabalho uma reinvenção da própria expressão do documentário cinematográfico. O tempo, para ele, antes de ser um fator de estabilização ou de estilização dos mesmos temas, serve de mola propulsora de novas descobertas: a tênue fronteira entre a ficção e a realidade (Jogo de cena), a representação teatral (Moscou), a alma interior que emerge pela música (As canções). Cinema de invenção? Creio que sim. (André Setaro)

Dados retirados da Wikipédia

Eduardo de Oliveira Coutinho (São Paulo11 de maio de 1933 — Rio de Janeiro,2 de fevereiro de 2014) foi um cineasta brasileiro, considerado um dos mais importantes documentaristas da atualidade1
Seu trabalho caracterizava-se pela sensibilidade e pela capacidade de ouvir o outro, registrando sem sentimentalismos as emoções e aspirações das pessoas comuns, sejam camponeses diante de processos históricos (Cabra Marcado para Morrer), moradores de um enorme condomínio de baixa classe média no Rio de Janeiro(Edifício Master), metalúrgicos que conviveram com o então sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva (Peões), etc.2
Formação
Eduardo Coutinho cursou Direito em São Paulo, mas não concluiu. Em 1954, aos 21 anos, teve seu primeiro contato com cinema no Seminário promovido pelo MASP e dirigido por Marcos Marguliès. Trabalhou como revisor na revista Visão (1954-57) e dirigiu, no teatro, uma montagem da peça infantil Pluft, o Fantasminha, de Maria Clara Machado. Ganhou um concurso de televisão respondendo perguntas sobre Charles Chaplin. Com o dinheiro do prêmio, foi para a França estudar direção e montagem no IDHEC, onde realizou seus primeiros documentários.

Centro Popular de Cultura

De volta ao Brasil em 1960, teve contato com o grupo do Cinema novo e integrou-se ao Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da UNE). No núcleo dirigido por Chico de Assis, trabalhou na montagem da peça Mutirão em Nosso Sol, apresentada no I Congresso dos Trabalhadores Agrícolas que aconteceu em Belo Horizonte em 1962. Foi gerente de produção do primeiro filme produzido pelo CPC, o longa-metragem de episódios Cinco Vezes Favela.
Escolhido para dirigir a segunda produção do CPC, Coutinho começou a trabalhar num projeto de ficção baseado em fatos reais, reconstituindo o assassinato do líder das Ligas Camponesas João Pedro Teixeira, a ser interpretado pelos próprios camponeses do Engenho Cananéia, no interior de Pernambuco, inclusive a viúva de João Pedro, Elizabeth Teixeira, que faria o seu próprio papel. O filme se chamaria Cabra Marcado para Morrer, e chegou a ter duas semanas de filmagens, até o Golpe Militar de 1964. Parte da equipe foi presa sob a alegação de comunismo e o restante se dispersou, interrompendo a realização do filme por quase 20 anos.

Filmes de ficção

Em 1966, Coutinho constituiu, com Leon Hirszman e Marcos Faria, a produtora Saga Filmes. Dirigiu um episódio do longa ABC do Amor, foi diretor substituto em O Homem que Comprou o Mundo (1968) e realizou uma adaptação de Shakespeare para o cangaçobrasileiro, em que o personagem Falstaff tornou-se "Faustão" (1970).
Especializando-se em roteiro, foi co-roteirista de vários títulos importantes do cinema brasileiro, como A Falecida (1965) e Garota de Ipanema (1967) de Leon HirszmanOs Condenados de Zelito Viana (1973), Lição de Amor de Eduardo Escorel (1975) e Dona Flor e Seus Dois Maridos de Bruno Barreto (1976).

Globo Repórter

Em 1975, passou a integrar a equipe do programa Globo Repórter, da TV Globo, juntamente com Paulo Gil SoaresJoão Batista de Andrade e outros. Permaneceu no programa até 1984, sempre rodando em 16 mm, com uma liberdade editorial surpreendente para a época, e acabou descobrindo sua vocação de documentarista em trabalhos inovadores como Teodorico, o Imperador do Sertão, sobre o líder político nordestino Theodorico Bezerra.

Cabra Marcado para Morrer

Em 1981, Coutinho reencontrou os negativos de Cabra Marcado para Morrer, que haviam sido escondidos da polícia por um membro da equipe, e resolveu retomar o projeto. Conseguiu localizar Elizabeth Teixeira em São Rafael, no interior do Rio Grande do Norte, mostrou-lhe o que havia sido filmado em 1964 e filmou o depoimento dela sobre a dispersão de sua família após a interrupção do filme.
A partir daí, a "ficção baseada em fatos reais" transforma-se num dos mais extraordinários documentários jamais filmados, retratando e acompanhando as tentativas de Elizabeth por reencontrar seus filhos, em diferentes pontos do país, e refletindo sobre o que aconteceu com a sociedade brasileira no longo período da ditadura militar. O filme ficou pronto em 1984 e ganhou 12 prêmios em festivais internacionais, no Rio de Janeiro, HavanaParisBerlimSetúbal etc.

Documentarista

Após o sucesso de Cabra marcado para morrer, Coutinho afastou-se do Globo Repórter e passou alguns anos trabalhando com documentários em vídeo para o CECIP (Centro de Criação da Imagem Popular), com temas ligados a cidadania e educação. São dessa época projetos como Santa Marta e Boca de lixo, visões humanistas e pessoais sobre indivíduos e populações marginalizadas. Também escreveu roteiros para séries documentais da TV Manchete, como "90 Anos de Cinema Brasileiro" e "Caminhos da Sobrevivência" (sobre a poluição em São Paulo).
Em 1988, com o centenário da Abolição da Escravatura, foi estimulado pela então Secretária de Cultura do Rio de Janeiro, Aspásia Camargo, a realizar um documentário sobre a população negra na História do Brasil. O Fio da Memória, centrado na figura do artista popular Gabriel Joaquim dos Santos, só viria a ser concluído três anos mais tarde, com o apoio das emissoras de televisão La Sept(França) e Channel Four (Inglaterra).
Em 2004, a pesquisadora Consuelo Lins publicou, pela editora Zahar, O Documentário de Eduardo Coutinho 3 .

Morte

Coutinho foi morto a facadas em seu apartamento, no Rio de Janeiro. O principal suspeito do crime é seu filho que sofre de esquizofrenia. A esposa de Coutinho também foi gravemente ferida a facadas4 .

Filmografia

Filmes dirigidos por Eduardo Coutinho5 :

Premiações

  • Melhor filme de 2007 segundo a APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte).
  • Kikito de Cristal, no Festival de Gramado pelo conjunto da obra (2007).
  • Prêmio Multicultural Estadão 2003, ganhador na categoria criadores.
  • Kikito de Ouro de Melhor Documentário, no Festival de Gramado, por Edifício Master (2002).
  • Prêmio de Melhor Documentário, no Grande Prêmio BR de Cinema, por Babilônia 2000 (2000).
  • Prêmio de Melhor Documentário - Crítica, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, por "Edifício Master" (2002).
  • Troféu Passista de Melhor Fotografia, no Festival de Recife, por Babilônia 2000 (2000).
  • Prêmio Especial do Júri, no Festival de Gramado, por Santo forte (1999).
  • Prêmio de Melhor Filme, no Festival de Brasília, por Santo forte (1999).
  • Prêmio de Melhor Roteiro, no Festival de Brasília, por Santo forte (1999).
  • Prêmio FIPRESCI, no Festival de Berlim, por Cabra marcado para morrer (1984).

Referências

  1. Ir para cima
     Dados biográficos retirados de: RAMOS, Fernão e MIRANDA, Luiz Felipe (org.): Enciclopédia do Cinema Brasileiro, editora SENAC, São Paulo, 2000, pp. 158-159.
  2. Ir para cima
     Matéria do sítio Mnemocine (em português). Página visitada em 21 de agosto de 2009.
  3. Ir para cima
     Sinopse do livro no catálogo da editora. Página visitada em 21/08/2009.
  4. Ir para cima
  5. Ir para cima
     Filmografia no IMDb. Página visitada em 21 de agosto de 2009.

Ligações externas[editar | editar código-fonte]

05 fevereiro 2014

O cinema genial de Alain Resnais

Les herbes folles tem nos pensamentos dos personagens a sua mola propulsora. São os pensamentos que detonam os atos e as situações. Alain Resnais é um realizador cinematográfico que tem como característica sempre a investigação da mente do ser humano. O que eleva sobremaneira seus filmes é a sua capacidade de apresentar, cinematograficamente, as angústias, os desejos, as hesitações de seus personagens. Há, em Les herbes folles, um trabalho original no que concerne ao tratamento da fragilidade do homem frente as suas circunstâncias. Evitando qualquer tipo de psicologia banal, o filme é sobre o mecanismo de funcionamento paradoxal da mente humana. Kubrick, em De olhos bem fechados (Eyes wide shut, 1999), ainda que uma obra a respeitar, tornaria este seu derradeiro filme numa obra-prima se possuísse os recursos resnaisianos ou, melhor a dizer, se Resnais filmasse De olhos bem fechados daria, a ele, uma funcionalidade e uma expressão que o gênio kubrickiano tentou, mas não conseguiu, a considerar que também aqui se trata dos desvarios da mente humana num processo de obsessão.
Além do mais, As ervas daninhas é um exercício cinematográfico puro no qual a lógica e a psicologia se explodem num redemoinho. A mise-en-scène é de tirar o fôlego (como um movimento de câmera para frente – travelling – na sequência do almoço na casa de Dussolier quando este, que aparece sentado num sofá, de repente, com a continuação, aparece já sentado na mesa, havendo, um deslocamento não somente da máquina de filmar como também dos personagens em cena num tour de force admirável. O recurso resnaisiano dos lances de memória é usado com eficiência na estrutura narrativa: a bolsa amarela roubada em câmera lenta, o plano de detalhe da carteira perdida debaixo de um dos pneus do carro, os close ups de Sabine Azéma, os pacientes a sofrer na cadeira de dentista de Marguerite etc. É o imaginário controverso dos seres em movimento que dá margem à fabulação desse extraordinário Les herbes folle.
Marguerite Muir (interpretada com a elegância de Sabine Azéma, companheira, na vida real, de Resnais) é uma dentista que tem fascinação pelos sapatos exclusivos de uma loja parisiense. Depois de comprá-los, ao sair do estabelecimento, sua bolsa amarela é-lhe roubada. Georges Palet (André Dussolier, ator constante dos últimos filmes do cineasta) após comprar um relógio num centro comercial acha a carteira de Marguerite, que fora jogada fora pelos ladrões e se encontra embaixo de seu carro no estacionamento do shopping center. Curioso, verifica os documentos e descobre que a dona da carteira tem brevê de piloto, o que o fascina, porque, desde tenra idade, tem mania por aviões e seu sonho seria ter se tornado um aviador. É bom observar que a ação de Les herbes folles se estabelece a partir dos pensamentos de seus personagens, como já foi dito. Palet, por exemplo, ainda no estacionamento do shopping, fica revoltado com uma mulher que usa uma calcinha preta e tem desejo súbito de matá-la. É neste cipoal de desejos paradoxais e esquisitos que se estrutura o filme, baseado em O incidente, de Christian Gailly, com roteiro de Alex Reval.
Palet entra em obsessão para conhecer Marguerite e imagina várias formas de entrar em comunicação com ela. A cena na qual ele está dentro do carro, e imagens laterais vão sendo mostradas como soluções hipotéticas, é bem ao feitio resnaisiano. De repente, durante um almoço familiar (Palet é casado há 30 anos com Suzanne/Anne Consigny e tem três filhos), recebe uma ligação de Marguerite para agradecer a devolução da carteira (não sem antes ter ido à polícia para entregá-la e fazer os trâmites legais com o comissário interpretado por Mathieu Amalric, que se desorienta com as hesitações dele). É quando tem início a idéia fixa de Palet em entrar em contato, custe o que custar, com Marguerite. É a pulsão de um desejo na estrutura mental de Palet que aciona os mecanismos fabulatórios de Les herbes folles, que, para evitar o spoiler, deixa-se, aqui, de contar o resto.
Se ainda pudesse existir uma, por assim dizer, lógica narrativa, esta explode no final numa apologia à liberdade da mise-en-scène. Resnais propõe, na parte final, a apologia do espetáculo puro, do cinema em plena autonomia de vôo, quando a fábula dá lugar à narrativa imaginária, à disposição do específico cinematográfico. Os leitmotivs (como que refrões) que permeiam o filme (as ervas daninhas das circunvizinhanças e que adentram a casa de Palet, a bolsa amarela em câmera lenta…) se desatam num processo único. A tal ponto que é a celebração do cinema que se verifica com o passeio aéreo que pontua a obra-prima. A partir mesmo, antes disso, do momento em que Marguerite vai procurar Palet, que se encontra num cinema de bairro a ver As pontes de Toko-Ri (The bridges of Toko-Ri, 1954), com William Holden e Grace Kelly, por ser um filme de guerra e de aviões em combate. Mas, em verdade, não são apenas os tormentos mentais dos personagens que se constituem o móvel de Les herbes folles, mas, também, as formas de expressá-los de maneira puramente cinematográfica.
Duas vezes a bela fanfarra da Fox, a pontuar a fantasia que é o cinema: tocada, com aquela ênfase que fez a emoção dos antigos frequentadores das salas de exibição, no neon do cinema onde Palat se escondera para ver os aviões de As pontes de Toko-Ri, e, quando ele se encontra com Marguerite e a beija no hangar. O filme, na terceira parte, toma um rumo surpreendente, a transformar as hesitações iniciais dos personagens em decisões. A rigor, não há rumo a tomar em Les herbes folles, ainda que haja o rumo do roteiro a seguir, a se fazer cinema pela varinha mágica de Resnais. Mas os personagens, as criaturas resnaisianas, não o têm. Como a vida.
Impressionante o poder de convencimento que passa as interpretações de André Dussolier (que tem neste filme a maior performance de sua carreira) e de Sabine Azéma, além de todos os outros intérpretes, buscados, a maioria deles, na excelência do cast da Comédie Française.
Celebração ao cinema e ao imaginário, como bem acentua a interrogação aparentemente infantil do garoto, na última tomada do filme, que pergunta à mãe: “Quando eu for gato, posso comer a ração do rato?”.

"Pulp Fiction" em exibição especial


03 fevereiro 2014

A tragédia de Eduardo Coutinho

Uma grande tragédia o assassinato do cineasta Eduardo Coutinho, um dos grandes do cinema brasileiro


O fim e o princípio

Por Carlos Baumgarten

Poucas mortes de pessoas públicas, porém admiráveis, mexeram tanto comigo quanto a do cineasta Eduardo Coutinho. Talvez, diante das circunstâncias, talvez diante da perda inesperada, talvez pelo vazio recente que se abre para o nosso cinema. Eu não sei... Nem preciso saber dos motivos que me levam a sentir o que estou sentindo agora.

A cada foto com a qual me deparo no noticiário, a cada narrativa sensacionalista que tenta problematizar a causa e transformá-la num espetáculo midiático, pequenos fragmentos surgem à minha mente, às vezes desconexos, às vezes interligados. Fragmentos de histórias geniais, personagens memoráveis...

Por que Coutinho era genial? A resposta é óbvia: porque ele era simples. E não podemos confundir o seu “ser simples” com algo que remonte a uma obra simplista. Os filmes do diretor, em sua extensa filmografia, são sofisticados porque são simples, em linguagem, em estética, em narrativa.

Para contar a história de um Brasil “feudal” em pleno século XX, ele não precisou recorrer a fontes oficiais, analistas/historiadores para explicar o contexto social, político e econômico do nosso país. Ele foi até as pessoas diretamente envolvidas, as portadoras da verdade, contava a verdade através delas e, por meio de suas lentes, extraia essa verdade e revelava ao público.

A câmera dirigida por Coutinho não era uma mera observadora. Ela está sempre dentro do mundo de seus personagens, quando entra no morro da Babilônia, no Rio de Janeiro, para perguntar o que os moradores esperam com a chegada do ano 2000 ou quando “invade” a rotina de um edifício entre tantos outros no bairro de Copacabana, quando visita os “peões” sindicalistas do ABC Paulista na era Lula, ou resgata o passado escravocrata do Brasil por uma linha tênue entre o ontem e o hoje.

Não. Ele não está apenas observando. Ele está envolvido naquele mundo, construindo um olhar próprio, e busca envolver o espectador também nessa construção. Podemos dizer que a técnica cinematográfica era um suporte aplicado ao filme para que Coutinho contasse a sua história, pois sua “ferramenta” principal estava na interação humana. E é por isso que o cineasta era reconhecido entre meios internacionais de documentários como um grande entrevistador.

Eu me pergunto, diante de tantos documentários na filmografia mundial, quem conseguiria extrair tantas emoções a partir de histórias aparentemente banais? Como dizem alguns dos que se manifestaram pela morte do cineasta, Coutinho criou um estilo próprio e revolucionou a arte de fazer documentários no Brasil.

É difícil não se emocionar com o morador do Edifício Master que interpreta com paixão a famosa “My Way”, de Frank Sinatra, ou com a senhora de olhar triste que apenas vê a vida passar no morro da Babilônia ou com as canções entoadas por pessoas que vivem das lembranças.

Sim, talvez o ponto de convergência entre esses fragmentos seja o que Coutinho sempre quis mostrar em seus filmes: a memória é uma personagem a parte em nossas vidas, talvez, o que nos mantém vivos. O enquadramento de cada um dos seus personagens ao longo de sua carreira revela muito mais do que aquilo que está nos planos.         

Posso dizer que ele teve uma influência importante sobre a minha formação, em diversos aspectos, mas, especialmente, no olhar sobre outro. A começar pelo meu próprio olhar sobre o que é documentário, que, antes, com minha ignorância, tentava afastá-lo da minha vida, por achar que era um tipo de jornalismo “aperfeiçoado”.

Não cheguei nem perto de estar em um mesmo espaço físico para encontrá-lo. Mesmo assim, Coutinho me mostrou como o cine documentário é grandioso, enquanto arte, enquanto olhar, porque, mais do que contar, revela histórias, provoca os personagens e provoca o espectador. Trabalha em todas as vertentes, decupa os planos, improvisa, encena... Coutinho mostrou a todos, sem ser sentimentalista, sem ser apelativo, que cada história tem o seu valor e cada história é grandiosa por si só.

Agora, com o fim inesperado de sua vida, um ciclo se fecha e o sentido se inverte. É hora de outros contarem a história de um dos nossos grandes cineastas que, como um breve consolo, foi reconhecido ainda em vida. Não teremos novos filmes de Eduardo Coutinho, mas ficamos com o legado que ele deixou ao longo de quase 50 anos dedicados ao cinema. E isso não tem fim...

02 fevereiro 2014

Cinco vezes Hitchcock

Publicado originariamente no catálogo do Panorama Internacional Coisa de Cinema

A revisão de cinco filmes de Alfred Hitchcock (Um corpo que cai, Psicose, Janela indiscreta, Disque M para matar, Os pássaros), em cópias restauradas e luminosas, surge como oportunidade única para aqueles que somente os viram na televisão ou em DVDs. Além do mais, Disque M para matar é exibido no Panorama Coisa de Cinema em Terceira Dimensão, que foi, aliás, projeto inicial do realizador, que não deu certo na época, 1954, por causa da tecnologia de 3D ainda muio precária.

Psicose (Psycho, 1960) é hoje um clássico indiscutível, cuja estrutura narrativa se articula em três blocos, havendo, em cada um deles, um in crescendo dramático no qual existe uma linha ascendente explorada até o clímax. O que permite dizer que o autor mata a protagonista no primeiro terço da narrativa e tudo vem a começar de novo até o momento em que o detetive é assassinado na escada e, também aqui, o filme retrocede a sua ascese dramática para retornar a um começo de tudo. A cena do chuveiro é um primor, que revela uma fragmentação total do espaço fílmico e proclama a total ilusão da arte do filme, que se consubstancia, neste caso, pela montagem criadora. Há mais de cinquenta tomadas para menos de um minuto de duração da cena. Há críticos, inclusive, que a consideram mais importante para a evolução da linguagem cinematográfica do que a Escadaria de Odessa do prestigiado O encouraçado Potemkin (1925), de Sergei Eisenstein.

Janela indiscreta (Rear window, 1954) é a própria teoria do espetáculo cinematográfico. A câmera somente vê o que o protagonista interpretado por James Stewart consegue enxergar de seu cativeiro numa cadeira de rodas por causa de um acidente. É o exemplo máximo da tela que se dá ao olhar.

Já em Um corpo que cai (Vertigo, 1958), Hitchcock atinge a sua quintessência. Filme sobre a criação de uma imagem, trata-se de  recriar  uma mulher a partir da imagem de uma morta, ou seja: fixar a ideia como fundadora do mundo e o mundo como produto da imaginação. Hitchcock atinge em Vertigo o apogeu da arte clássica (que implica imitação) e, num mesmo gesto, ultrapassa-a, afirmando a supremacia da construção sobre o realismo e a verossimilhança. O conteúdo, aqui, se expressa pela forma, numa afirmação inquestionável de que tout est dans la mise en scène.

Em Os pássaros (The birds, 1963), que no ano em curso completa 51 anos, a ameaça vem do céu nesta obra apocalíptica, com efeitos especiais surpreendentes para uma época na qual não existiam os truques computadorizados. Os pássaros são reais domados por um especialista. Algumas sequências são antológicas: a homenagem ao cinema mudo, quando Tippi Hedren conduz um barco para chegar a outra margem, a debandada geral dos alunos após a invasão dos corvos no colégio, o bate-papo pleno de humor negro no restaurante, o ponto de vista de uma ave, no céu, em suposta câmera subjetiva etc. Mas, quem são os pássaros? “Os pássaros somos nós”, disse Hitchcock.

Ray Milland e Grace Kelly estão em Disque M para matar (Dial M for murder, 1954). Um ex-tenista profissional decide matar sua mulher para poder herdar o seu dinheiro. Baseado num peça teatral, Hitchcock não esconde a teatralidade da versão, insinuando, inclusive, os passos dos personagens sobre um tablado. Um filme menor do autor, mas nem por isso menos importante.