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04 junho 2011

Camões em baixa

Não é à toa que o Ministério da Educação (MEC), através de seu ministro Fernando Haddad, autorizou que fossem distribuídos milhares e milhares de exemplares de um livro didático que afirma que é certo se falar errado. A cultura literária de há muito que já foi para o beleléu. Ninguém mais se interessa pela literatura, ao contrário do que diz uma reportagem de capa recente da Veja. Qual o jovem de hoje que decide encarar Os irmãos Karamazov, de Fiodor Dostoievski? Quando estudante secundarista, em meados do século passado, meus colegas eram leitores vorazes não somente de literatura como, também, de obras filosóficas, sociológicas etc (Marcuse, Marx, Caio Prado, Celso Furtado...). Mesmo aqueles, e toda regra tem as suas exceções, não é mesmo? que não gostavam de ler - ou liam pouco, para não passar constrangimento entre seus colegas, sobraçavam livros. Mas aqui vai um exemplo de uma aluna universitária que diante de uma questão numa prova para a interpretação de um texto de Camões:



           Amor é fogo que arde
            sem se ver,
            é ferida que dói e não se sente,
            é um contentamento descontente,
            dor que desatina sem doer.”
            Uma vestibulanda de 16 anos deu a sua interpretação :

             “Ah, Camões!, se vivesses hoje em dia,
             tomavas uns antipiréticos,
             uns quantos analgésicos
             e Prozac para a depressão.
             Compravas um computador,
             consultavas a Internet
             e descobririas que essas dores que sentias,
             esses calores que te abrasavam,
             essas mudanças de humor repentinas,
             esses desatinos sem nexo,
             não eram feridas de amor,
             mas somente falta de sexo !”

A vestibulanda ganhou nota DEZ: pela originalidade, pela estruturação dos versos, das rimas insinuantes, e também foi a primeira vez que, ao longo de mais de 500 anos, alguém desconfiou que o problema de Camões era apenas falta de mulher.

Bata-me, correndo, um abacate!

"Noite vazia", de Walter Hugo Khoury


Não se pode mais esquecer a importância de Noite vazia (1964), de Walter Hugo Khoury, sob pena de omissão histórica imperdoável, para o processo de criação do cinema brasileiro. Khoury, um dos raros autores da cinematografia nacional, realiza, em Noite vazia, talvez a sua obra-prima (embora muitos considerem O corpo ardente, 1967). Cineasta de estilo inconfundível, temática própria, é um verdadeiro autor (universo ficcional + estilo particular). Posto a escanteio nos tempos do Cinema Novo, por ser considerado um realizador burguês e que se afastava da realidade brasileira em função de um cinema com fortes acentos de Bergman e Antonioni, os tempos atuais, porém, ainda que as resistências impensadas, vieram a colocar Walter Hugo Khoury no seu devido lugar na história da nossa cinematografia. No elenco, Mario Benvenutti, Norma Bengell, a esfuziante Odete Lara, Gabrielle Tinti (na ocasião o marido italiano de La Bengell).


03 junho 2011

Tendler: "Sou o mais baiano dos cineastas brasileiros!"

Fizemos, eu e Tuna Espinheira, uma entrevista com o prestigiado documentarista brasileiro Sílvio Tendler. Há muitos décadas, o cineasta vem registrando aspectos da História do Brasil (Os anos JK, Jango...) e revelado, em seus filmes, as mazelas de um país em transe (Utopia e barbarie, Josué de Castro, um cidadão do mundo...). Está lançando um box com documentários acerca de personalidades baianas. E gosta de enfatizar: "Sou o mais baiano dos cineasta brasileiros'. Mereceria o título de Cidadão Baiano.



1) Tuna Espinheira: “O documentário marca a gênese do cinema,seguindo, em todas as fases da saga da sétima arte produzindo obras primas. Mas, hoje, na Brasiléia Desvairada, confunde-se muito este gênero com reportagem e, pior ainda, com a reportagem, papel carbono da medusante “estética” da TV. Como você vê isto?”
- Vc tem razão. Desde os anos sessenta existe uma tendência em confundir cinema documentário e reportagem de Tv. Com as novas tecnologias digitais o problema se acentua já que tecnologia e expressão narrativa se confundem
2) Tuna: “Fale sobre a sua preferência por temas políticos, sempre no bojo dos seus trabalhos...”
- Santiago Alvarez se dizia um animal erótico-político. Acho que, de certa forma, sigo seu caminho. O erotismo e a política são minha razão de viver. Não acredito muito na política partidária. Acredito na militância através da expressão artística, dai meu cinema ser totalmente político.
3) Tuna: “Os coveiros de plantão já anunciaram a morte da ideologia, você acredita que a bola da vez é a Utopia?“
- Estão matando a Utopia pelo fastio, pelo excesso de ofertas de utopias. Hoje tudo é utopia, ate'comer um pedaço de pizza virou utopia. Confunde-se a palavra com desejo e consequentemente está havendo um esvaziamento do seu real significado de busca de uma sociedade perfeira com o que isso traz de bom e de ruim, de utopia e barbárie.
4) Tuna: “Existe uma grande celeuma quando em festivais o documentário briga, em pé de igualdade, pelo prêmio de “Melhor Filme”. Vejo isto como um pré-conceito cultural, o que você diz?”
- Vc tem razão. Uma vez cheguei no Festival de Gramado já carimbado por um diretor que fazia parte do juri me explicando que eu ganharia o Especial do Juri (o festival nem tinha começado , estávamos no avião, rumo a) já que os outros prêmios estavam reservados à ficção. O festival terminou e ganhei o... especial do Juri. Quando instituiu-se o Juri Popular virei um ganhador de Juri popular porque o público não tem esse preconceito.
5) André Setaro: "O documentário tomou, nas últimas décadas, um impulso extraordinário, e, creio, você foi um dos pioneiros com filmes como Os anos Jk, Jango, O mundo mágico dos Trapalhões etc. Seus documentários, além de obras palatáveis, conquistaram plateias. Com raras exceções, há um componente político muito forte em seus filmes (Utopia e barbárie, Milton Santos...). Mas, nos últimos anos, está em franca ascensão a onda dos documentários sobre músicos. O que acha do documentário como possibilidade de conquistar parte do mercado brasileiro?"
- A música estabelece uma comunicação mais fácil e direta com o público. Há bons filmes com e sobre música e apelos fáceis de serem digeridos. Ao público cabe escolher. Para uma cinematografia ser boa e completa. a diversidade é fundamental.
6) Setaro: "Até que ponto a realidade atual, violenta, supera a ficção?
- Totalmente. Que filme, que cineasta de ficção seria capaz de conceber o roteiro em que o candidato socialista com todas as chances de se eleger Presidente da República da França terminaria na cadeia, nos Estados Unidos acusado de estupro? O máximo que o cinema americano consegue imaginar é um hipotético mundo futuro recheado de perigos e violências muito distante da genialidade de um Flash Gordon. Existe um filme com o Robert de Niro que é uma paródia do boquete do Bill Clinton no salão oral pela Monica Chupinski mas não é o imaginário que está em cena, trata-se de uma paródia.
7) Setaro: "Existe uma estética para o documentário?"
- Uma não, muitas.O documentário é tão autoral e inventivo quanto a ficção e ele parte da reconstrução da realidade a partir de imagens do real. Só não vale mentir, vale criar e imaginar. E cada autor , à semelhança da ficção, cria sua estética.
9) Você está lançando um box com quatro baianos porretas. Poderia falar mais do que se trata?
- Sou o mais baiano dos cineastas brasileiros e exijo meu título de baiano honorário, Soteropolitano por excelência. Nem Tuna Espinheira reuniu uma cinematografia com figuras como Glauber, Milton Santos, Castro alves e Marighella. Precisa dizer mais? Estes quatro filmes estão reunidos num box primoroso editados com legendas em quatro linguas (inglês, francês, português e espanhol) e lançados juntos com o livro "Os Quatro Baianos Porretas"que publica os rotiros do filme.
10) "Sabe-se que a objetividade no cinema é relativa, pois a personalidade subjetiva do cineasta sempre interfere na realidade objetiva. Nos seus filmes, a querência da realidade é um fato, mas até que ponto se vê restrito pelo relativismo inerente ao próprio cinema?"
- Total. Todo filme encerra uma narrativa subjetiva. Não podemos matar a magia do cinema e dizer que tudo é invenção mas por trás de todo filme existe um autor que narra sua versão da história e quem não concordar que faça outra melhor.

01 junho 2011

...E o vento levou

...E o vento levou (Gone with the wind, 1939) está a completar 72 anos de existência. Filme emblemático como espetáculo cinematográfico, característico da escola idealista do cinema no modo de representação da realidade, marcou época e, talvez, tenha sido o mais visto em todos os tempos. As constantes listas que aferem os campeões de bilheteria já não o têm entre os seus dez maiores, porque a aferição é feita em termos dos lucros auferidos e, assim, os ingressos antigamente eram muito mais baratos.
Ainda que hoje a nova geração não o veja mais, o fato é que durante as décadas de 40, 50 e 60,...E o vento levou era uma referência constante, e não havia cinéfilo, que se quisesse prezar, que não o tivesse visto. Acredito que se, atualmente, os campeões de bilheteria, Titanic ou, já a o superar, Batman, o cavaleiro das trevas, tenham obtido as maiores bilheterias da história do cinema, por outro lado, nenhum filme como ...E o vento levou tenha ficado três décadas em cartaz (com as constantes reprises habituais daquela época) e no imaginário dos amantes do cinema. Os espetáculos cinematográficos atualmente são lançados e logo retirados de cartaz e esquecidos com muita facilidade.
Emblemático como obra cinematográfica típica da indústria hollywoodiana da época, cujos sustentáculos estavam em três pilares básicos, o star system, ostudio system, e a divisão dos filmes em gêneros específicos, ...E o vento levou é um filme de autor às avessas, a contrariar em gênero, número e grau, a Política de Autores (Politique des auteurs) formulada pelos jovens turcos da revista francesa Cahiers du Cinema, para os quais o verdadeiro criador de um filme era o seu diretor (embora a admitir também que havia obras nas quais o diretor era apenas administrativo, mas, para os turcos os melhores eram aqueles que se podiam definir como de autores). Porque o verdadeiro autor de ...E o vento levoué o seu produtor supremo David Selznick e seus diretores não passam de meros diretores administrativos, coordenadores de elenco, diretores de cena.
Adaptação do romance bastante popular de Margaret Mitchell, ...E o vento levouapresenta os estertores da época esplendorosa do Sul dos Estados Unidos e sua derrocada quando da eclosão da Guerra de Secessão. Obra essencialmente intimista (idealista), que foge aos cânones do realismo cinematográfico, tem seu interesse centrado na espetacularidade e no violento choque de personalidades entre os personagens vividos por Vivien Leigh, Clark Gable, Olivia de Havilland e Leslie Howard. O conflito bélico que se instaura, como em todo filme característico do idealismo, serve apenas como pano de fundo. O centro de tudo é a personagem de Scarlett O"Hara (Vivien Leigh) e suas ambiguidades em relação aos mistérios do amor e sua esfuziante personalidade. Pese à acusação de excessiva espetacularização, não se pode negar que algumas sequências são antológicas e, mesmo com a tecnologia atual, difíceis de serem vistas atualmente com tal força de impacto, a exemplo do baile aristocrático e a do incêndio de Atlanta.
Uma rica herdeira sulista, Scarlett O'Hara, apaixona-se por seu primo (o ator inglês Leslie Howard que viria a morrer em acidente poucos anos depois de ter participado do filme), mas este dá preferência à sua irmã Melanie (Olivia de Havilland). Ao estourar a guerra, Scarlett vê-se obrigada a assumir a direção da família, e é cortejada por Rhett Butler (Clark Gable), comerciante, e bon vivant, que a salva do incêndio de Atlanta. Assediada por Rhett (no bom sentido do assédio sem as conotações perversas do estabelecido pela onda politicamente correta atual), termina por se render a seus encantos e se casa com ele. O beijo na carroça, quando ela é salva do incêndio, tendo ao fundo as chamas, que o technicolor de então oferece num tom vermelho é um assombro, para os padrões da época, entre ela e Rhett, é antológico, e figura em qualquer livro que se queira abrir sobre cinema. O caráter rebelde e instável, porém, e sua insistência no amor ao primo, e a morte de seu filho (acidente num cavalo) terminam por conduzir o matrimônio a um beco sem saída.
...E o vento levou é a mais gigantesca superprodução do cinema americano da primeira fase do sonoro. Mesmo para os padrões atuais, não se pode imaginar o êxito de seu lançamento com uma multidão de pessoas diariamente em filas quilométricas nas portas dos cinemas. Um verdadeiro fenômeno que marcou definitivamente um tempo em que o sistema de estúdios dava as cartas para o sucesso dos filmes. E, além do mais, Gone with the wind representa bem um estilo de representação não somente da realidade focada, mas um estilo de cinema que se fazia no período.
Neste particular, a obra cinematográfica mais representativa, embora excelentes filmes foram realizados neste magnífico ano de 1939, cristalização da arte clássica, segundo escreveu André Bazin: O morro dos ventos uivantes (Wuthering heights), de William Wyler, No tempo das diligências (Stagecoach), de John Ford,A mulher faz o homem (Mr. Smith goes to Washington), de Frank Capra, A regra do jogo (La règle de jeu), de Jean Renoir, O mágico de Oz (The wizard of Oz), de Victor Fleming, Jesse James, de Henry King, entre muitos outros.
...E o vento levou teve vários diretores, entre eles George Cukor (que filmou quase toda a primeira parte antes da guerra), Sam Wood, e Victor Fleming (que, afinal, ficou com os créditos). Mas apesar do controle absoluto e obsessivo de David Selznick, o filme, sempre um trabalho de equipe, não seria o mesmo sem a contribuição, mesmo que administrativa, dos diretores citados, e, principalmente, de seu diretor de arte William Cameron Menzies. Vale ressaltar que entre os roteiristas de ...E o vento levou há contribuições nos diálogos de William Faulkner e F. Scott Fitzgerald. A atriz negra Hattie McDaniel, que faz a criada de Scarlett, foi indicada para o Oscar de melhor atriz coadjuvante (e ganhou), mas não pôde receber o prêmio, porque um negro não podia entrar, segundo as leis racistas da época, no teatro da entrega dos Oscars.
Para se ter uma idéia, ...E o vento levou, considerado uma fortuna para a época, custou aos cofres da produtora de Selznick apenas cinco milhões de dólares e rendeu trinta e dois. Atualmente o salário de uma atriz como Julia Roberts não sai por menos de vinte milhões (de dólares, de dólares!).

Robert Mulligan: evocação e poesia



Realizador evocativo, cultor das memórias de tempos idos em alguns filmes, dotado de pleno domínio formal de seu meio de expressão, Robert Mulligan (1925/2008) foi-se embora neste mês de dezembro. O que resta, findo Mulligan, da tradição do heróico cinema americano, o cinema do grande segredo na expressão feliz de François Truffaut? Apesar de não ter alcançado a glória de seus ilustres colegas (Billy Wilder, Hitchcock, George Stevens, Cukor...), poder-se-ia considerá-lo um cineasta bem acima da média e que não foi devidamente valorizado, fora alguns filmes ocasionais mais louvados por outros motivos que pela mise-en-scène (como são os casos de O sol é para todos, que deu o Oscar a Gregory Peck, e Houve uma vez um verão).

O blogueiro (ou blogüista), por coincidência, começou a sua trajetória de cinéfilo na mesma época em que Robert Mulligan deu início a seu percurso como realizador cinematográfico, ou seja, em 1957. E, portanto, acompanhou toda a sua filmografia, ainda que os primeiros filmes tenham sido vistos nas constantes reprises que existiam no cinema do passado (a televisão matou a reprise dos filmes). A começar do princípio, não se podia prognosticar o futuro Mulligan em Vencendo o medo (Fear strikes out, 57), uma tentativa biográfica do jogador de beisebol Jim Piersall, interpretado por Anthony Perkins, que se ajusta ao papel, pois o biografado era homem extremamente neurótico, cheio de tiques, manias, e o filme desvenda uma explicação meio freudiana e mostra a causa do desequilíbrio do jogador na infância difícil, dominada por pai severo e rude (Karl Malden). Ainda no cast: Norman Moore.


Mulligan, após Vencendo o medo, passa três anos a esperar a oportunidade de dirigir o seu segundo longa, ainda que, neste interregno, tenha trabalho muito em episódios e seriados da televisão americana. É um cineasta oriundo da tv, mais liberto das normas pétreas dos estúdios, assim como Sidney Lumet, que com mais de 80 anos dirigiu um dos melhores filmes de 2008: Antes que o diabo saiba que você está morto (Before the devil knows you're dead). O filme que se segue a Fear strikes out é A taberna das ilusões perdidas (The rate race, 1960), baseado em peça de Garson Kanin, com Tony Curtis e Debbie Reynolds.

A lembrança que se tem de O grande impostor (The great impostor, 1961) é muito boa, ainda que memória de adolescente que nunca mais teve a oportunidade de revê-lo. A vida de um homem (Tony Curtis) que, durante a sua existência, adotou perto de vinte identidades diferentes, saindo ileso de todas as confusões. Além de Curtis, Edmond O'Brien, Karl Malden, e música do grande maestro Henry Mancini. Neste mesmo ano, 61, uma sophisticated comedy que causou enorme sucesso de bilheteria, mas que, crê-se, vista hoje, não se sustentaria: Quando setembro vier (Come september), com Rock Hudson (o queridinho das comédias românticas), Gina Lollobrigida (a italiana sensual), Walter Slezak, Sandra Dee, Bobby Darin. Rock é um milionário que descobre que seu caseiro transformou sua belíssima villa na Itália em hotel. Mas ele se apaixona por uma das hóspedes, a sensual Lollobrigida. As canções foram compostas (e cantadas) por Bobby Darin. Recorda-se que o primeiro plano do filme, em cinemascope, colorido, mostra um imenso avião que, abrindo seu compartimento de bagagens, faz sair, dele, um Rolls Royce de prata. O script é perfumaria de Stanley Shapiro.
Rock Hudson é convidado para estrelar Labirinto de paixões (The spiral road, 1961), que tem, ainda, Gena Rowlands (a atriz estupenda e esposa de John Cassavetes), Burl Ives, entre outros menos votados. Na verdade, um melodrama, que viu-se no Rio, no poeira Politeama, quando este saudoso cinema, que ficava no Largo do Machado, passava programa duplo, um vehiclepara Rock Hudson. No máximo, uma direção eficiente do ponto de vista artesanal.

O grande Mulligan põe sua manga de fora no ano seguinte, em 1963, em O sol é para todos (To kill a mockinbird, 1962), filme que deu o Oscar de melhor ator a Gregory Peck no papel de um advogado humanista que defende um negro. A ação se localiza numa cidadezinha de Alabama em 1920, racista e preconceituosa. O negro é injustamente acusado de violentar uma branca. Tudo é contado pelo ponto de vista do casal de filhos do advogado e há um tom evocativo que Mulligan viria a adotar em outros de seus filmes. Com Mary Badham, Rosemary Murphy. Baseia-se num livro escrito por Herman Lee, amiga de Truman Capote.

Em 1963, Mulligan resolve fazer um filme in loco em Nova York: O preço de um prazer (Love with the proper stranger, 1963). Cineasta oriundo da televisão, como já aqui se referiu, com os talentosos Frankenheimer, Lumet, há, neste filme, um enfoque que se pretende menos hollywoodiano e com certa influência do neo-realismo italiano (Hitchcock, o grande Hitchcock, o mestre dos mestres, já fizera uma experiência quase neo-realista em O homem errado (The wrong man, com Henry Fonda como o músico que é confundido com um assassino e, no final, quando a polícia descobre o verdadeiro culpado, e os dois se encontram face a face, Fonda tem pena do homicida, porque sabe que vai passar pelo mesmo calvário que ele.) Mas O preço de um prazer é sobre uma caixeira do Macy’s, que não é outra senão a sublime Natalie Wood, que engravida depois de passar uma noite com um estranho (Steve McQuenn). Ela, então, pede sua ajuda para encontrar um médico para que realize um aborto. A partitura é de Elmer Bernstein e a fotografia (em expressivo preto e branco), de Milton Krasner.

Ainda em 1965, Mulligan, apesar de já ter demonstrado ser um realizador acima da média, fora notado apenas por alguns exegetas da crítica francesa, e certos hermeneutas americanos como Andrew Sarris e Peter Bogdanovich, mas, neste ano, realiza O gênio do mal (Baby, the rain must fall), aproveitado o astro (McQuenn) do filme anterior, que, aqui, é um homem que sai da prisão, volta para a mulher (Lee Remick) e tenta ganhar a vida como guitarrista e cantor. Mas o xerife da cidade (Don Murray) vem a se apaixonar por ela, criando, com isso, o conflito básico. O afamado Glenn Campbell aparece no conjunto no qual McQuenn toca.

touch mulliganiano está acesso com sensibilidade e a devida evocação na obra que se segue: À procura do destino (Inside Daisy clover, 1966), cujo tratamento temático é avançado para a época. Mulligan procura fazer de sua personagem principal, uma estrela juvenil problemática de Hollywood, o protótipo de todas as atrizes que tiveram problemas na sua trajetória (de Judy Garland a Marilyn Monroe): o patrão tirânico, o marido homossexual, a avó psicótica. Com Natalie Wood, em seu esplendor na relva, Robert Redford, Christopher Plummer, colhendo os louros como o Capitão Trapp de A noviça rebelde/The sound of music, e a sempre inexcedível Ruth Gordon.

Subindo por onde se desce (Up the down staircase, 1967) é também um filmein loco, que procura enfocar a problemática de uma professora de escola de periferia de Nova York, Sandy Dennis, obra que procura sempre um tom realista no desenvolvimento de sua narrativa. Ainda que não seja um grande filme, lembra Sementes da violência, de Richard Brooks, com Glenn Ford e Sidney Poitier.

Os anos 60 se aproximam do fim e Maio de 68 se anuncia. Mas Mulligan, alheio ao que se passa, se refugia no western, mas western de primeira linha, um de seus melhores filmes: A noite da emboscada (The stalking moon, 1969), com Gregory Peck, militar do exército que, prestes a se aposentar, encontra, desamparados, uma mulher (Eva-Marie Saint) e seu filho, fruto de uma relação com apache violento, e decide transportá-los a lugar seguro, mas o índio, ao tomar conhecimento, resolve perseguí-los. A perseguição, num desenvolvimento que faz lembrar, tal a tensão, um thriller eletrizante, em nenhum momento faz aparecer o apache. Tudo é tensão, atmosfera, clima. Uma direção de brilhantismo indiscutível.

Em 1970, porém, volta-se aos jovens contestadores, apoiando-se num argumento bem de acordo com sua época contestatória e faz uma espécie de documento sociológico em O caminho da felicidade (The pursuit of happiness). Michael Sarrazin é um rebel withou a cause que, com seu carro, para escapar de pagar o estacionamento, mata um operário e vai para trás das grades, mas foge e, com sua namorada (Barbara Hershey) empreendem uma fuga alucinante que parece não ter fim num autêntico road movie.

E vem Houve uma vez um verão (Summer of ’42, 1971), obra delicada e feita com sensibilidade sobre a iniciação sexual de um adolescente (Gary Grimes) que, num verão de 1942, quando os Estados Unidos entram em guerra, seduz a esposa (Jennifer O’Neil, carioca de nascimento, que Howard Hawks, por causa deste filme, aproveitaria em seu derradeiro western, Rio Lobo, ao lado de John Wayne) de um oficial que está ausente envolvido no conflito bélico de então. Mulligan conduz o relato com extrema finesse e o filme é uma mostra da vacuidade de certas mulheres que, deixadas sozinhas por circunstâncias alheias à sua vontade, ficam ao relento do desejo e das paixões. Há um tom evocativo que o cineasta repete com plena consciência de suas possibilidades poéticas, principalmente quando a partitura é de um maestro como Michel Legrand. E a fotografia de Robert Surtees é um assombro.

Talvez não exista um filme que trata da maldade embutida na infância do queA inocente face do terror (The other, 1972). Ambientado em Connecticut, em 1935 – e novamente aquele atmosfera de evocação tão peculiar a Mulligan, dois garotos gêmeos se deparam com a maldade e a perversidade. A mise-en-scène do realizador atesta o seu vigor, a sua singularidade, a sua marca no cinema americano. Mas o melhor, por incrível que possa parecer, ainda estaria por vir: Jogos do azar, testamento do cineasta, uma obra de densidade exemplar, um pulsar envolvente, magistral, cinema puro na sua procura de decifrar e fazer ver a beleza possível de uma mise-en-scène. O intérprete principal de Jogos de azar (The nickel ride, 1974) é Jason Miller, que viria, neste mesmo ano, a fazer um padre em O exorcista, de William Friedkin.

31 maio 2011

"A cidade dos desiludidos", de Vincente Minnelli

Vincente Minnelli, esta a palavra, é um cineasta fascinante. Estilista admirável, aplica em seus filmes uma tensão inusitada entre a realidade e a fantasia. Nos filmes desse realizador, o espetáculo cinematográfico se faz pleno. O seu sentido de mise-en-scène é raro e, muitas vezes, surpreendente. O vídeo que mostro aqui é o trailer de A cidade dos desiludidos (Two weeks in another town, 1962), que tem um elenco cheio de astros e estrelas, como verão, liderado por Kirk Douglas. Há alusões a Assim estava escrito (The bad and the beautiful, 1953), que Minnelli realizou quase dez anos antes e que também trata dos bastidores da indústria de Hollywood.


30 maio 2011

Dançando com os filmes

Dancing at the movies é um clip sobre as mais variadas danças no cinema. O ritmo é clipado, e oferece uma montagem esfuziante. Não temos mais o gênero musical, o chamado filmusical, na sua essência clássica. Não há mais uma infra-estrutura, como havia antigamente nos grandes estúdios, principalmente na Metro, para que se possa fazer musicais como no passado. Também houve uma transformação no gosto musical e o romantismo daquela época parece que não se aplica mais ao presente, à contemporaneidade como gostam de dizer os comunicólogos. O último musical clássico data de 1958: Gigi, de Vincente Minnelli, que, inclusive, ganhou o Oscar de melhor filme. Leslie Caron no auge da beleza. É verdade que, na década de 60, o musical tomou ares de superprodução sem a simplicidade e o despojamento de outrora (West Side Story, A noviça rebelde, A estrela, Funny Girl, Hellô Dolly...). 

29 maio 2011

A tradução do real no cinema

Rock Hudson e Lauren Bacall em Palavras ao vento, de Douglas Sirk

O realizador cinematográfico traduz a realidade através de quatro modos básicos, quatro maneiras de 'olhar' o real: o realismo, o idealismo, o expressionismo e o surrealismo. A tradução do real nas imagens em movimento é feita, portanto, nesse sentido. É o que se poderia chamar de escola cinematográfica, entendida como um conjunto de realizadores e de suas manifestações que se orientam pelos mesmos princípios estéticos, os quais refletem convicções filosóficas, políticas e morais de determinada época. A escola pressupõe a existência de premissas coincidentes, tanto quanto ao conteúdo da atividade criadora como quanto à forma pela qual esse conteúdo se manifesta. Supõe mais uma atitude, um modo de perceber e representar o mundo. O expressionismo, por exemplo, que surge na Alemanha dos anos 10, abarcando quase todas as artes, revela um momento histórico, mas sua influência, avassaladora, deixa rastros na posteridade e ainda hoje se pode perceber influências expressionistas no modo de perceber e representar o mundo de determinados cineastas. O expressionismo 'puro', contudo, se restringe a uma época determinada, assim como as outras escolas, apesar dos fortes acentos deixados na contemporaneidade. 

O realismo é a escola que se baseia nos sentidos, ou seja, registra tão verazmente quanto possível aquilo que nossos sentidos conseguem perceber no mundo real. O idealismo, por sua vez, parte de uma visão realista que é deliberadamente selecionada e exaltada em alguns de seus aspectos. Assim, o idealismo induz das formas da realidade uma idéia abstrata mais perfeita que o original. Há, no entanto, outra camada do ego consciente do homem no qual estão as emoções, e a estas corresponde precisamente o expressionismo. Já o surrealismo tenciona apresentar a realidade interior e a realidade exterior como dois elementos em processo de unificação.
O cinema contemporâneo apóia-se mais no realismo, quando não no naturalismo. A maioria do público reage a filmes estilizados, preferindo aqueles que registram o mais verazmente quanto possível o que seus sentidos percebem como real. Aí se encontra uma das causas da pobreza da cinematografia que se pratica atualmente. As pessoas não se importam com a estilização, restringindo-se, tão somente, à história e muitos ainda consideram um bom filme aquele que possui uma natureza nobre no tema. O cineasta precisa se estilizar para melhor poder ser compreendido e apreciado. A verificação das escolas cinematográficas surge, portanto, como a verificação da riqueza pela qual o realizador pode lançar mão no desenvolvimento de seu processo de criação. Mas parece que o 'realismo' dos tempos que correm está a impedir a emergência de uma estilização capaz de tirar o cinema da mesmice cotidiana. O Realismo Realismo é, nas artes plásticas, o esforço para representar o mundo tal como ele se oferece aos nossos sentidos, sem atenuação, sem omissão, sem falsidade de nenhuma espécie. O realismo cinematográfico também se baseia na realidade exterior e no seu conjunto de fenômenos momentâneos, periódicos ou permanentes. Mas o que nele importa é a essência do fenômeno, não a sua exterioridade. Isso distingue o realismo do naturalismo, porque neste a reprodução da realidade não procura as relações de causa e efeito. O autêntico realismo, por outro lado, reproduz a realidade sempre a procurar as relações de casualidade e sem excluir dela os problemas existenciais e espirituais do homem. São filmes realistas, por exemplo, 'Rocco e Seus Irmãos", de Luchino Visconti, 'Morangos Silvestres', de Ingmar Bergman, 'Ladrões de Bicicleta', de Vittorio De Sica, 'Gosto de Cereja', de Abbas Kiarostami, 'Short Cuts', de Robert Altman, 'Central do Brasil', de Walter Salles, 'Cabra Marcado Para Morrer', de Eduardo Coutinho, os documentários soviéticos e os da escola britânica, 'Vidas Secas', de Nelson Pereira dos Santos, os filmes do 'cinema-verité' (cinema verdade), entre muitos outros. São filmes naturalistas: 'Ouro e Maldição e 'A Marcha Nupcial', de Erich Von Stroheim, 'A Besta Humana', de Jean Renoir, 'Êxtase', de Gustav Machaty, etc.
O intimismo representa por excelência a escola idealista no cinema. Nele, a realidade é filtrada pelo sentimentalismo e pela subjetividade, o que o identifica com o romantismo. Nos filmes intimistas, no entanto, nem sempre o desfecho da história é feliz, fato característico dos filmes românticos. Como as normas de conduta próprias do intimismo são normas ideais, elas acarretam uma técnica de renúncia aos valores autênticos da vida. O universo romântico-intimista configura um sistema de forças em conflito - as forças do sentimento e as da razão. Mas em sua fé nos sentimentos, os personagens se tornam quase místicos (exemplo perfeito: 'O Morro dos Ventos Uivantes', de William Wyler, com Laurence Olivier e Merle Oberon). Em geral, o intimismo significa a evolução de uma história cinematográfica em torno das eternas constantes do amor, com sua tônica no estudo exaustivo das relações afetivas e dos fatores que as precipitam ou as impedem. O intimismo - cujo apogeu se dá na época de ouro do cinema americano nos anos 30 e 40 e parte dos 50 - cria um universo dramático especificamente feminino, centrado nas relações da mulher diante do mistério do amor. A dimensão lírica do intimismo é dada por um tratamento acentuadamente romântico dos personagens e das situações, explicando todos os acontecimentos básicos do filme em função de estados passionais. A própria realidade é recriada em termos de poesia e de ternura, Torna-se estática e, portanto, desvitalizada, isolando os personagens de seu meio. É, contudo, pela imobilização da realidade circunstancial que o intimismo se torna revelador, transformando o vulgar em invulgar, o superficial em transcendente. São filmes intimistas: 'Anna Christie', de Clarence Brown, 'Grande Hotel', de Edmund Gowlding, 'Esquina do Pecado', de John M. Stahl, 'A Dama das Camélias', de George Cukor, 'Adeus Mr. Chips', de Sam Wood, 'Um Lírio na Cruz', de Frank Borzage, 'Por tua Causa', de Joseph Pevney, 'Palavras ao Vento' (que o Telecine da Sky passa e repassa), de Douglas Sirk (e quase todos os melodramas desse diretor fascinante), e Cartas de uma desconhecida', de Max Ophuls, entre muitos outros.

Cannes em tempos idos

A foto de cima, de maio de 1957, mostra o produtor Mike Todd (que viria a morrer pouco tempo depois de desastre aéreo) e Elizabeth Taylor, que era, na ocasião, sua esposa, quando foram ao Festival de Cannes apresentar A volta ao mundo em 80 dias (Around the world in 80 days), obra grandiosa e espetacular que Todd conseguiu produzir numa verdadeira façanha por reunir recursos de produção imensos e um elenco de notáveis em pequenas pontas.  Na outra imagem, Francesca Annis, Roman Polanski, e Jon Finch, quando a versão de MacBeth (que é, por sinal, muito boa, mas, na época, foi desvalorizada) foi mostrada em Cannes em maio de 1972. O ator Jon Finch faz o papel título e apareceria em seguida no penúltimo Hitchcock, Frenesi (Frenzy, 1972), que o mestre rodou em seu torrão natal: Londres. Cliquem nas fotos para que possam vê-las ampliadas e mais nítidas.