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09 agosto 2008

O homem mais insuportável do mundo



O cinema de João Caçapava é um cinema que se move em direção a um olhar sobre a solidão e as idiossincrasias do ser humano. Não é um cinema de invenção, como alguns neófitos de carteirinhas (leia-se diplomas de cineastas) procuram fazer e cujo resultado, na maioria das vezes, é um discurso inorgânico na procura do óbvio ululante. Caçapava em O homem mais insuportável do mundo - primeiro filme de uma trilogia que compreende O homem mais pobre do mundo e O homem mais normal do mundo - envereda, neste seu trabalho de estréia, pelo enfoque num personagem trancado em si mesmo e na mais absoluta solidão. O filme pretende acompanhar a trajetória do dia-a-dia desse personagem que todos consideram um homem insuportável, de difícil convivência, de nenhum relacionamento. Uma pessoa cuja idiossincrasia resvala até o desespero, mesmo porque, ele mesmo, não chega a se suportar.

O que importa, no entanto, na criação cinematográfica, é a maneira pela qual o realizador se utiliza dos elementos determinantes da linguagem cinematográfica. Assim, muito mais importante do que João Caçapava diz em O homem mais insuportável do mundo é como ele explicita a sua fábula. É a narrativa que alavanca esta e não o contrário.

O rosto do ator Paulo Ferreira é bem sintomático da insuportabilidade do personagem. A escolha do intérprete se, por um lado, é feliz, pelo tipo, por outro, Caçapava, por ser Ferreira um intérprete mais de teatro, não conseguiu conter os maneirismos típicos dos atores de teatro. Já não bastaria o tipo em si para fazer valer a condiçao de ser insuportável? Mas Ferreira exagera nas suas expressões, no seu constante e quase impenetrável calundu.

Há, indiscutível, na narrativa caçapaviana, um rigor na sua escrita fílmica. As tomadas obedecem a um conceito de duração com bastante funcionalidade em relação àquilo que quer explicitar: a insuportabilidade de Adágio, o nome do personagem, que, por ironia esperta, tem como único passatempo, para despir a solidão, uma vitrola de veludo através da qual ouve um adágio. E a companhia de Malvado, a companhia de "Deus", um cachorro pitt bull.

O dia-a-dia de Adágio, porém, é alterado quando quebra suas pernas e, por isso, obrigado a ficar em casa. A sua empregada doméstica, que Adágio, ao sair para o trabalho, tinha a mania de deixá-la trancada, vem em seu socorro para auxiliá-lo e traz, com ela, uma menina, que, aos poucos, consegue, destrancar um pouco a sua incomunicabilidade.

A seqüencia de sua queda, filmada no esquisito interior do Edifício Sulacap, é muito bem executada com um travelling para a frente e uma partitura eficiente, advindo a surprêsa, quando o personagem entra numa porta e se dá o acidente.

É com este rigor de construção que O homem mais insuportável do mundo manda o seu recado bem dado. Os planos de detalhes (a campanhia da porta, a fechadura com a chave sendo retirada, entre outros) e uma aplicação sonora perfeita que dão um, por assim dizer, touch especial a O homem mais insuportável do mundo. O filme, vale ressaltar, seria outro se não tivesse como diretor de fotografia Petrus Pires, que dá ao filme uma iluminação adequada às solicitações do tema.

João Caçapava, ao contrário de muitos dos realizadores baianos, possui o tão necessário sense of humor. Seu filme tem inseridas observações irônicas sobre o comportamento esquisito das pessoas ditas humanas: as duas senhoras no elevador, os diálogos de Adágio, o nome do cachorrinho, o comportamento sui generis deste ao encontrar pessoas, etc.

Um filme sobre a solidão, este O homem mais insuportável do mundo, que, se não chega a ser uma obra-prima, estando, na verdade, muito longe disso, é um dos filmes mais interessantes e estranhos dessa nova safra do cinema baiano curtametragista tão cheia de provocações vazias e pretensões autorais irritantes.

Paulino teve contestada a sua autoria em "Um dia na rampa"






Para ler o recorte, melhor clicar na imagem que será aberta em tamanho maior.


Como se não bastasse, Um dia na rampa, que sempre foi considerado um filme de Luis Paulino dos Santos (quem concebeu inicialmente Barravento, que virou o primeiro longa de Glauber Rocha, depois que o produtor, Rex Schindler, num golpe de estado, afastou Paulino da direção), segundo se pode observer no recorte ao lado (Jornal da Bahia de 14 de março de 1959) também teve contestada na Justiça a sua autoria.


Como disse o cineasta baiano Tuna Espinheira, a história do cinema baiano está muito mal contada e precisa, urgentemente, ser reescrita. O seu processo histórico está cheio de buracos ou de furdunços na expressão espinheiriana.

Quem achou a raridade publicada foi Jussilene Santana, uma das mais fulgurantes atrizes do teatro baiano. Já vi peças com ela e devo dizer, a bem da verdade, que tem um espetacular domínio de cena, sobre ser uma bela, insinuante e esfuziante mulher.

08 agosto 2008


I Concurso Estadual de Crítica Walter da Silveira

Creio que a iniciativa da DIMAS é inédito no país inteiro. Veja aqui as informações necessário no texto que recebi:
"O intuito é estimular a reflexão sobre obras audiovisuais, homenageando um dos críticos mais argutos da história do cinema no Brasil e que também dá nome à sala de exibição cult e mais democrática da capital baiana.

A Diretoria de Audiovisual da Fundação Cultural do Estado da Bahia acaba de lançar o I Concurso Estadual de Crítica Cinematográfica Walter da Silveira, no intuito de estimular a reflexão e apreciação de obras audiovisuais. As inscrições já estão abertas e podem ser efetuadas até dia 21 de setembro, na Dimas (Rua General Labatut, n.º 27, subsolo – Barris – CEP: 40.070-100 – Salvador, Bahia), de segunda a sexta-feira, de 13h às 17h.

A premiação destinada a “crítico não-profissional” totaliza a quantia de R$ 5 mil, sendo concedido ao 1º lugar o prêmio de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais), ao 2º lugar R$ 1.500,00 (mil e quinhentos reais) e ao 3º lugar R$ 1.000,00 (mil reais). Por “crítico não-profissional” entende-se pessoa que não publique ou tenha publicado críticas regularmente em veículos de imprensa, seja impressa ou em páginas da web (excetuando-se blogs).
Os textos deverão ser inéditos. Cada proponente deverá apresentar duas (2) críticas, uma sobre um filme brasileiro e a outra sobre um filme internacional entre os seis (6) títulos sugeridos para cada grupo de filmes. O candidato deve escolher apenas uma obra de cada grupo.

Os filmes brasileiros que o edital coloca para análise são Eu me lembro, de Edgar Navarro (2006), O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha (1969), O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla (1968), Cleópatra, de Julio Bressane (2008), Edifício Master, de Eduardo Coutinho (2002) e Samba Riachão, de Jorge Alfredo (2001).
A lista de filmes estrangeiros sugeridos para a crítica agrupa Frankenstein, de James Whale (1931), Passageiro – Profissão repórter, de Michelangelo Antonioni (1975), Viridiana, de Luís Buñuel (1961), Amantes Constantes, de Philippe Garrel (2005), Zodíaco, de David Fincher (2007) e Bamako, de Abderrahmane Sissako (2006).

A comissão julgadora responsável pela classificação e premiação dos inscritos será composta por três (3) membros assessorados por um representante da Dimas. As críticas serão analisadas pelos seguintes critérios: originalidade, criatividade e coerência na análise fílmica; embasamento teórico e histórico acerca da linguagem cinematográfica; relevância crítica para a reflexão cinematográfica no Estado; e qualidade estilística e gramatical.

Os interessados encontrarão o texto completo do edital nos sites da Dimas (www.dimas.ba.gov.br) e da Fundação Cultural do Estado da Bahia (www.funceb.ba.gov.br) e ainda em versão impressa no subsolo da Biblioteca Pública do Estado da Bahia."
Ascom – Dimas – Funceb
Tels: 3116-8123 / 3116-8111
Email: dimas.jornalista@funceb.ba.gov.br
http://www.dimas.ba.gov.br/

A foto ao lado mostra Walter da Silveira ao lado do cineasta Nelson Pereira dos Santos.

06 agosto 2008

Falta grave em reportagem de "A Tarde"



O jornal A Tarde, de Salvador, em sua edição de domingo passado, 3 de agosto, em seu novo encarte, uma revista semanal chamada Muito, publicou uma reportagem de capa sobre a cena do cinema baiano atual assinada pela repórter Katherine Funke, com o título de Eles fazem cinema.

Se o propósito da matéria foi dar uma visão geral do movimento cinematográfico e das novas perspectivas que se abrem para o cinema baiano, cometeu duas falhas graves que a fazem incompleta e mal informada, ao omitir o processo de Revoada, segundo longa metragem de José Umberto, e Cascalho, de Tuna Espinheira. O primeiro, que tambem recebeu recursos do Minc (não foi somente Trampolim como é citado), encontra-se a ser espoliado e esfacelado pelo seu produtor, que, aproveitando-se de um interregno na saúde de seu realizador (felizmente recuperado), seqüestrou o material filmado e, ao que parece, montou-o à sua revelia, desfigurando o seu trabalho, a sua concepção estética, em função de fazer um filme mais palatável para o mercado (sempre o maldito mercado). O segundo, baseado em romance homônimo do consagrado escritor Herberto Salles, está prestes a ser lançado, apesar dos quatro anos de espera numa prateleira.

A omissão por uma reportagem que se quer abrangente sobre a produção baiana se constitui em falta grave do ponto de vista jornalístico, principalmente quando se tem em conta que Revoada e Cascalho são filmes que receberam verbas governamentais, um do Minc, e o outro, o de Tuna Espinheira, teve seu roteiro premiado em concurso do edital da Secretaria de Cultura e Turismo (Fundação Cultural do Estado da Bahia).

Privilegiou-se, na reportagem de Katherine Funke, uma nova suposta nova onda que se encontra a emergir nas praias soteropolitanas. Mas não deixou de citar filmes em fase de conclusão de veteranos como Pau Brasil, de Fernando Belens, e O jardim das folhas sagradas, de Pola Ribeiro.

A omissão teria sido feita de propósito ou tudo não passa de ignorância dos fatos? O affair Revoada é importante na medida em que é um caso que mostra a interferência indevida de um produtor no processo de criação de um cineasta, ainda que este tenha movido ação popular de resgate na Justiça Federal. José Umberto é um cineasta com respeitáel quilometragem rodada e que faz cinema na Bahia desde os anos 60 já tendo, inclusive, realizado um longa, O anjo negro (1973), entre várias curtas premiados (A musa do cangaço, recentemente lançado em DVD) e autor do primeiro filme marginal do cinema baiano, o média Vôo interrompido.

E Tuna Espinheira tem em sua ficha filmográfica um punhado de curtas também premiados, e é também um realizador que labuta no meio cinematográfico soteropolitano desde a década de 60.

Que reportagem (ou seja lá que nome tenha!) é essa que omite fatos relevantes do cinema baiano, em se tratando de obras de realizadores já consolidados?

Fica aqui o espanto e o assombro diante de tal reportagem que, como está, presta mais uma desinformação sobre o momento atual do cinema baiano do que, propriamente, uma informação com bases referenciais exatas.

A foto ao lado é de Revoada, com o ator Jackson Costa a querer matar, com um falcão, uma mulher da Casa Grande.

05 agosto 2008

"Rio Bravo", de Howard Hawks

Em Onde começa o inferno (Rio Bravo, 1959), de Howard Hawks, resposta desse grande mestre ao western psicológico que então emergia no cinema americano, há uma cadência que o distingue dos filmes do gênero que foram seus contemporâneos e, de certa forma, o que interessa ao autor é o estudo de comportamentos de homens numa dada situação. Excetuando-se o tiroteio final, e uns poucos tiros aqui e ali, os seus 144 minutos de projeção se concentram num espaço exíguo, qual seja a delegacia da qual é xerife John Wayne, com algumas deslocações dos personagens pelas ruas e pelo hotel onde se hospeda a bela Angie Dickinson – uma das pernas mais bonitas de toda a história do cinema. Hawks, num faroeste, sempre sinônimo de ação e contínuo corte em movimento, predispõe seu filme – uma obra-prima! – a uma quase inação, podendo se ver, nesta obra, um estilo muito mais próximo ao de Michelangelo Antonioni do que de um John Ford, por incrível que isso possa parecer. Há uma escrita bem marcada na utilização dos procedimentos cinematográficos, há, em Hawks, uma constância temática e estilística. Daí poder ser considerado um verdadeiro autor de filmes. Mas, na sua filmografia, existe uma diáspora, porque nas comédias a emergência de um non sense, de uma loucura, entra em choque com seus filmes fora desse gênero, como podem servir de exemplo Levada de breca, Bola de fogo, O esporte favorito dos homens, O inventor da mocidade, entre muitos outros.
Um filme brilhante como Hatari! (1962), por exemplo, segue, na sua estrutura narrativa, um mesmo tipo de itinerário. Se em Rio Bravo os personagens esperam e, durante a maior parte do filme nada acontece de significativo, em Hatari!, eles também estão sempre a esperar pela próxima caçada, e é na espera que o cineasta aproveita para estudar a índole comportamental humana. Hatari!, que foi visto como mera fita de aventuras, é, na verdade, uma obra grandiosa, inteligente, e que propicia, ainda, o prazer do cinema, o que tem se tornado uma fato raro na mediocridade contemporânea que confunde obscuridade com profundidade – ver, por exemplo, Filme de amor, de Júlio Bressane. Uma vez, Jean-Luc Godard, desconstrutor do cinema nos anos 60, realizador admirado e considerado de vanguarda, respondendo a um repórter acerca do que era o cinema respondeu-lhe: "O cinema é Howard Hawks".
Não se viaja na maionese quando se está diante de um filme de Howard Hawks. O Telecine Classic (Net/Sky), quando existia e se respeitava e não tinha, ainda, se transformado no híbrido ‘Cult’, exibiu várias vezes Bola de fogo (Ballfire), desse realizador, que tem Gary Cooper e Barbara Stanwick nos principais papéis. Um grupo de eruditos se encontra há anos numa casa com o objetivo de elaborar a mais perfeita das enciclopédias, quando, de repente, uma mulher, fugindo de uma confusão que envolve gangsteres, encontra nela um refúgio. Esfuziante, bela, termina por se fazer apaixonar por Gary Cooper. A mulher, aqui, é elemento deflagrador de uma reviravolta na vida dos sábios.
Ver Hawks é essencial! Infelizmente existem poucos hawks disponíveis em locadoras, mas nas televisões por assinatura, de vez em quando, um deles se apresenta para o prazer do cinéfilo. Já Rio Bravo, cujo título em português deve ser desprezado – Onde começa o inferno, tem em DVD e a cópia é das mais luminosas, conservando, como é justo e correto sem atentar contra a integridade da obra cinematográfico, o formato original pelo qual foi visto nos cinemas. Esse filme, uma obra-primíssima, é considerado como um dos maiores filmes de todos os tempos, chegando mesmo, numa lista definitiva solicitada pela ‘Folha de S.Paulo’ a críticos do mundo inteiro, Inácio Araújo encimá-lo como seu filme preferido. O western em Hawks segue um itinerário, uma trajetória, um percurso: Rio Vermelho (1948), com John Wayne e Montgomery Clift, Rio Bravo, com Wayne e Dean Martin, Eldorado (1965), com Wayne e Robert Mitchum e, como canto de cisne, obra crepuscular, Rio Lobo (1970). Eldorado é uma refilmagem disfarçada de Rio Bravo, mas, mesmo, assim, filme de brilhantismo assegurado, ainda mais quando se tem presente a figura emblemática do sonolento Mitchum, que a crítica tanto desprezou quando atuava, chamando-o de canastrão e não sabendo vê-lo como um tipo, uma personalidade, um emblema.

04 agosto 2008

"O Leopardo" em versão completa



Está na grade da programação do Telecine Cult O leopardo (Il gattopardo, 1963), de Luchino Visconti, e, desta vez, o Cult está de parabéns por ter preservado a integridade do formato em cinemascope. O filme é magnífico, nunca me canso em revê-lo. Reparei que alguns coadjuvantes, que depois se tornariam atores famosos, já trabalham em Il gatoppardo, a exemplo de Pierre Clementi, como Francesco Paolo, um jovem ainda imberbe, louro, que depois apareceria em Belle de jour, de Luis Buñuel, como o rapaz esquisito e temperamental que Catherine Deneuve se apaixona numa relação sado-masoquista. Clementi, no crepúsculo dos anos 60, era um ator cult, chegando até a participar do elenco de Cabeças cortadas, de Glauber Rocha. Outro ator que aparece em Il gattopardo é Giuliano Gemma, como o General Garibaldi, que mais tarde viria a se destacar nos westerns-spaghettis com o pseudônimo de Montgomery Wood. Ainda: Mario Girotti, o Terence Hill dos vários Trinitys.
Na imagem, Burt Lancaster recebe um beijo da belíssima Claudia Cardinale.

03 agosto 2008

O maior amor do mundo

Surpreendente o décimo sexto longa de Carlos Diegues, O maior amor do mundo, que, perdido no lançamento, somente agora, dois anos depois, tive a oportunidade de vê-lo no Canal Brasil (embora se encontre também em DVD), que abre a tela em fulgurante full screen deformador mesmo que o filme não seja em cinemascope - quando o é, como Casa de areia, de Andrucha Waddington, o esfacelamento é total.

Cineasta irregular, com pontos altos e baixos na sua carreira, o fato é que, no cômputo geral, Carlos Diegues é um realizador sensível na maneira pela qual desenvolve o que quer contar, havendo, nele, e em especial neste O maior amor do mundo (desde já um dos filmes brasileiros mais envolventes dos últimos tempos) um sentido de cinema que procura, e sem medo de ser feliz, o envolvimento do espectador naquilo que está sendo narrado. Se Ganga Zumba, primeiro longa, hoje parece velho e datado, o mesmo não acontece com o segundo, A grande cidade, um dos filmes mais saudáveis da fortuna crítica cinemanovista, que respira um frescor narrativo longe do massacre dos planos dissonantes e dos mergulhos abissais em elocubrações autorais dadas mais à aporrinhação dos sentidos do que à explicitação do que se está a querer dizer. Carlos Diegues não tem medo da emoção, esta, a verdade. E a prova disso, a revelar a maturidade plena de um cineasta, já com uma grande quilometragem rodada, é O maior amor do mundo, desconsiderado durante o seu lançamento e visto de esguelha por aqueles que somente vêem cinema quando a estrutura narrativa vira um quebra-cabeças ou possui um tema nobre para o enfoque.

A emoção parece que se encontra descartada da apreciação crítica, tornando-a um obstáculo para o reinado do filme entre os possíveis eleitos por ela. Mas Carlos Diegues é um realizador sem medo de torná-la explícita e contundente. E entre os pontos altos na sua filmografia, não se poderia deixar de citar Chuva de verão, Bye, bye Brasil, Um trem para as estrelas, entre outros razoáveis, a exemplo de Quando o carnaval chegar. Quando quis assumir um cinema mais tropicalista, ficar in com o espírito do tempo e as suas circunstâncias, e menos emocional, errou feio, como Os herdeiros é atestado e prova. Assim como na abrangência temática, e errática, de Deus é brasileiro, que, ao invés de se fechar tematicamente, tem o seu tem expandido, ao contrário de O maior amor do mundo, que se fecha num universo muito específico.

Talvez o seu pior filme seja realmente Quilombo, um autêntico e genuíno filme mala-sem-alça, mas, justiça se lhe faça, Tieta do agreste, desconfigurou o romance amadiano no qual foi baseado para o converter em passeio turístico pelo sex appeal de Sonia Braga e pelas praias da Bahia. Desculpa-se tais agressões filmográficas quando pode, de repente, realizar, com grande sentimento, um filme como Chuva de verão ou este excepcional O maior amor do mundo.

Além de cineasta, Carlos Diegues é um excelente articulista, sabe manejar o trato escrito e expor suas idéias com lucidez e coerência. Autor da expressão patrulha ideológica, há pouco, por exemplo, escreveu artigo sobre a cultura sob intervenção (já em 2003) no lulismo ululante. Declarou sobre o filme em questão: "O maior amor do mundo é um de meus raros filmes escritos apenas por mim mesmo. Entre a concepção de seu roteiro e o início das filmagens, não se passaram mais do que uns 18 meses. O que me permite dizer que este é um filme instantâneo - que aliás tem como um de seus fundamentos o tema do instante, da importância do instante por mais breve que ele seja."

E disse mais: "Em O maior amor do mundo um homem passa a vida a olhar apenas para o céu, dedica-se ao controle das leis que regem o universo e, para ser bem-sucedido em seu projeto, evita os sentimentos e suas imperfeições, ignora o que se passa a seu lado, sobre a terra onde ele pisa. E por ignorar o mundo, perde sua vida. De certo modo, esse filme se opõe ao fanatismo iluminista, a essa idéia de que a razão absoluta será um dia capaz de tudo pôr sob seu controle, como se fôssemos travestis de Deus. Ao contrário, desde Darwin sabemos que somos mesmo bichos como os outros e nunca deixaremos de sê-lo. Muitas vezes, alguns dos melhores momentos de nossas vidas, momentos de imensa e inesquecível felicidade, nós tiramos é dessa condição mesma de bichos, de nossos corpos e mentes de bichos."

Resta dizer, para fechar este post, motivado, como já disse, pela visão, ontem, no Canal Brasil, que O maior amor do mundo tem uma das mais comoventes interpretações do cinema brasileiro, que é a de José Wilker. Uma recomendação que faço aqui sem hesitação. Procurem O maior amor do mundo nas locadores. Ele está bem distribuído. E cliquem na imagem para vê-la ampliada.

Introdução ao cinema (12)

Se o verdadeiro acontecimento narrado pelo filme é o que se relaciona com o comportamento da própria linguagem fílmica - e não, como já se disse, o que se reporta ao comportamento dos protagonistas, torna-se imprescindível o discernimento, por parte daqueles que pretendem compreender e entender a arte do filme, entre o plano da fábula e o plano da narrativa.O plano da fábula refere-se à coisa da narração - quer dizer, à história - e o plano da narrativa refere-se ao como - quer dizer, ao conjunto das modalidades de língua e de estilo que caracterizam o texto narrativo. De um lado, tem-se a story e, do outro o discourse. Assim, é evidente que o plano onde se torna necessário procurar a sua eventual poeticidade não é o plano da fábula-story mas, sim, o plano da narrativa-discourse, porque em qualquer filme nascido com intenções artísticas o conteúdo serve sempre de pretexto à forma, entendendo-se por forma, esclareça-se, não a que em tempos idos foi definida como expressão da beleza, porém o modo como a obra se encontra organicamente estruturada do ponto de vista semântico. O que significa dizer: tanto no cinema como no romance, é o discurso que escolhe a fábula que lhe parece mais funcional.O fundamental é compreender que o lugar geométrico onde se individualiza a poética de um autor é, por conseguinte, representado pela esfera da linguagem por ele utilizada, sempre na condição de o ser em sentido polívoco e não banal. A polivalência semântica se constitui na conditio sine qua non da artisticidade relativamente a qualquer sistema expressivo. A distinção entre fábula e narrativa pode parecer artificial, no entanto, quando se está diante de obras em que os dois planos caminham paralelos e em perfeita harmonia. Ocorre sempre nos filmes que seguem os cânones do naturalismo, nos quais a conotação tende para o grau zero e a coisa impõe uma espécie de ditadura sobre o como ou, melhor, a história, a fábula, exerce, uma ascendência sobre a narrativa.

Isso pode ser constatado nos filmes nos quais a ação da linguagem está completamente a serviço dos personagens, sendo estes últimos apresentados como pré-existentes à obra e dotados de uma autonomia extrapoética. Nestes casos, tem-se evidente a mistificação pelo uso passivo e mentiroso da linguagem, considerando-se que a função precípua das linguagens artísticas é a de recriar o mundo e não copiá-lo nas suas aparências.Por outro lado, a distinção entre fábula e narrativa se encontra plenamente legitimada nos filmes em que os dois planos se dissociam para refutar-se - ou, pelo menos, controlar-se - alternadamente. Pode acontecer, de fato, que, no decorrer do filme, a mensagem expressa pela fábula seja contrariada pela mensagem expressa pela narrativa. Neste caso, a narrativa provoca sutilmente a erosão da fábula a ponto, inclusive, de produzir um significado real oposto ou divergente do que se extrairia de uma leitura fílmica limitada exclusivamente aos valores da história - ou da fábula. Em A laranja mecânica (A clockwork orange, 1971), de Stanley Kubrick, filme que permaneceu nove anos proibido de exibição no Brasil - justamente por causa da acidez de sua fábula, a ironia da narrativa encarrega-se de neutralizar a violência da fábula. À guisa de ilustração: Alex e seus amigos, rebeldes sem causa, adeptos da ultraviolência, invadem a casa de um famoso escritor, espancando este e sua esposa com requinte de perversidade. Mas enquanto Kubrick mostra a violência do ataque a trilha sonora apresenta a voz de Gene Kelly cantando na chuva.

Em outro filme, Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, o personagem vivido por Paulo Autran, um político arrivista e demagogo, é visto sob a ótica de várias tomadas (ou planos) enquanto uma voz em off, radiofônica e séria contrasta com o tom de deboche do personagem que ri às gargalhadas. Já em Mouchette (1967), de Robert Bresson, a verdadeira crueldade não reside tanto na matéria da história como no rigor formal que caracteriza o plano do discurso. Donde se pode concluir: o verdadeiro significado de um filme situa-se, portanto, numa área marginal relativamente ao seu centro aparente. Há que se ter a consciência da distinção narrativa-fábula porque essencial para compreender a poética de um filme. Na filmografia do cineasta Alfred Hitchcock, segundo análise de Eric Rohmer e Claude Chabrol, o conteúdo é a forma, o que, a rigor, não se aplica apenas a esse autor de filmes mas a todas as obras de autênticos autores da história do cinema, obras cujo distintivo consiste numa carga de sentido que só se esgota mediante uma leitura em profundidade. É o discurso, nesse sentido, que, nas obras plenas de artisticidade, por assim dizer, escolhe a fábula que lhe pareça mais funcional.