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03 julho 2013

Cidadão Kane

Cidadão Kane, de Orson Welles, completa em 2013 72 anos de existência. Revi o filme na semana passada e constatei a sua plena atualidade. Parece que foi feito ontem. Não se pode imaginar o impacto na época de seu lançamento, porqueCidadão Kane lançou os postulados do cinema moderno, sendo o seu ponto de partida. A sua avant-première aconteceu no majestoso New York City, em Nova York, em 1 de maio de 1941, mas o filme somente foi lançado oficialmente nos Estados Unidos em 5 de setembro do mesmo ano, cinco meses depois. Por incrível que pareça, estreou antes no Brasil, em 16 de junho de 1941. Na França e em alguns países europeus, o lançamento de Cidadão Kane demorou cinco anos. Os franceses, por exemplo, tomaram conhecimento da obra-prima de Orson Welles em 1946, porque, durante a Segunda Guerra Mundial, houve a proibição da importação de filmes oriundos dos Estados Unidos. A coluna presta hoje homenagem a este grande momento da história do cinema.
Nas mais recentes pesquisas, para se saber qual o maior filme de todos os tempos (a recente da inglesa Empire, que escolheu O poderoso chefão, apenas registra opiniões de aficionados), Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles, encontra-se sempre em honroso primeiro lugar. Qual o fascínio que exerce este filme através dos tempos, incapaz de ser tirado do topo de todas as listas? Estréia de Orson Welles no cinema, o qual, antes, somente fizera uma curta metragem, Citizen Kane é considerado o ponto de partida da linguagem do cinema contemporâneo. Havia "um" cinema antes de "Kane", e, "outro", renovado, depois deste filme.
Curiosamente, no entanto, lançado no Brasil em 1941, levou 15 anos sem ser apreciado, desaparecido das telas, até que uma iniciativa do crítico Antonio Moniz Viana, numa retrospectiva do cinema americano, colocou-o, de novo, à vista de uma nova geração, que o viu admirado, ou mesmo estupefato (como conta José Lino Grunewald em Um filme é um filme, antologia organizada por Ruy Castro e editada pela Companhia das Letras, de seus escritos na imprensa).
Em 1968, a revista Filme/Cultura (que está novamente em circulação), numa ampla enquete entre os críticos brasileiros, para eleger o melhor filme da história, lá estava Cidadão Kane como o mais cotado, o mais apreciado, em primeiríssimo lugar. O filme, que tem excelente cópia em DVD da Warner (há uma espúria, da Continental), permanece atual, vibrante, como se tivesse sido feito no ano em curso.
O filme começa no momento da morte de Charles Foster Kane, magnata de imprensa que Welles, segundo se conta, inspirou-se num verdadeiro e poderoso: William Randolph Hearst. Um cine-jornal, no estilo bombástico da época, March of time conta a vida dele desde o nascimento até o seu desenlace. De modo que a história, que se possa pensar encontrá-la durante o desenvolvimento da narrativa, já é dada em linhas gerais. Findo o filme de atualidades, que jornalistas estão a vê-lo, numa cabine da redação, e um deles, intrigado com a última palavra pronunciada por Kane no leito, "Rosebud", acha que precisa ser investigada. O que significaria "Rosebud"?
Um jornalista é então encarregado de descobrir o enigma e sai para entrevistar as pessoas que conviveram com o magnata desaparecido. A sua vida vai se reconstruindo através dos testemunhos daqueles que a compartilharam. As memórias de Thatcher evocam a sua infância junto a sua mãe (Agnes Morehead) e as do velho Bernstein (Everett Sloane) contam como ele dirigia o periódico e, como este veio a provocar a guerra de Cuba. Leland (Joseph Cotten), outro amigo e companheiro, que narra o matrimônio de Kane com a sobrinha (Ruth Warrick) do presidente dos Estados Unidos, seus amores com uma jovem (Dorothy Comingore), com a qual volta a se casar (a primeira morre em acidente), e, finalmente, o fracasso do magnata como candidato à presidência de seu país.
Os depoimentos recolhidos pelo repórter são narrados em flash-backs. Quando este entra na biblioteca de Thatcher, o cenário grandioso revela em Welles a forte influência do expressionismo alemão, principalmente no que se refere à plástica da imagem (a luz, surpreendentemente forte, a configurar o próprio décor, a desenhar seus contornos gigantescos, assim como suas figuras e a pontuação da música - de Bernardo Herrmann -, os cortes abruptos). É magistral o plano no qual aparecem as letras do diário que está a ser lido pelo repórter e, num travelling, elas, as letras, se transformam, de repente, no menino Kane a brincar na neve. Outro plano sublime, quando Kane está em Xanadú, é o do quebra-cabeça que a sua esposa tenta montar, a colocar suas peças, essência do próprio filme, significação, pois o trabalho do repórter se assemelha a isso justamente: a montagem de um quebra-cabeças constituída pelos depoimentos em flash-backs.
Cidadão Kane é um puzzle, portanto. E o repórter prossegue na sua busca pelo significado de Rosebud, a entrevistar, em seguida, Susan, a cantora de ópera, que fala dos esforços extenuantes de Kane para convertê-la numa cantora lírica de sucesso, ainda que sua falta de talento, mas, para ele, uma idéia fixa a ponto de lhe construir um teatro, e a retirada do convívio social no exílio em Xanadú, seu fracasso no casamento, mas nunca a aparecer a palavra Rosebud.
Mas o espectador, e somente ele, saberá, ao final, o significado de Rosebud: é a inscrição que figura num velho trenó que Kane possuía em sua infância. Mas a significação do filme não se encontra na decifração desse enigma, uma pista falsa dada por Welles para aqueles que procuram, ansiosos, por "mensagens". O puzzle ou, melhor, o quebra-cabeças montado, pulveriza a estrutura narrativa em diversos pontos de vistas e determina uma desestruturação da temporalidade, do tempo cinematográfico, ao qual não estavam acostumados os espectadores da época. Não há nessa estrutura uma intensidade dramática nos moldes do cinema clássico de então, mas ela se desintegra nos pontos de vista dos depoentes. O fato é que, como puzzle que é, Citizen Kane tem sua significação maior nos dois travellings, um no início, e outro, no fim, iguais, que mostram a grade de ferro do portão de Xanadu com a inscrição "Não ultrapassar", como a dizer que a ninguém é dado adentrar na personalidade de um homem, ambíguo e complexo como o magnata retratado.
Trata-se, na verdade, de uma obra de enorme complexidade, quer em seu relato, quer em relação às técnicas empregadas. Neste sentido, são célebres e antológicos os cenários com teto baixo (a agigantar os personagens em cena) e a profundidade de campo, obtida graças ao emprego de procedimentos inventados pelo genial diretor de fotografia Gregg Toland. No que se refere ao relato em si, encontra-se uma inteligentíssima utilização do flash-back, que permite dar, quando o caso o requer, distintas versões de um mesmo acontecimento, segundo a ótica de quem o relata.
Realizado com inteira liberdade, Cidadão Kane não dá, em nenhum momento, a impressão de ser uma obra de estréia. Welles, aliás, carregaria o "estigma" pelo resto da vida, assim como outros cineastas que realizam uma obra-prima de primeira, a exemplo, aqui no Brasil, de Rogério Sganzerla, cujo O bandido da luz vermelha foi-lhe cobrado pela vida afora. Pela modernidade de seu estilo, Kane não logrou ser compreendido pelo público americano de seu tempo, ainda que a crítica o tenha acolhido entusiasticamente. Por outro lado, o público europeu não o conheceu devido às circunstâncias históricas do momento (a Segunda Guerra Mundial). O que determinou que a RKO, que havia acolhido de braços abertos o recém-chegado enfant terrible, modificasse sua atitude e interviesse na montagem de Soberba (The magnificent Ambersons, 1942), seu filme seguinte.
Pode-se assegurar que o cinema contemporâneo não seria o que é se Orson Welles não houvesse realizado Cidadão Kane.

30 junho 2013

De Walter da Silveira

Guido Araújo acende seu cigarro sob o olhar de Walter da Silveira. O outro, à direita, é Nelson Pereira dos Santos

Por 
Gilberto Felisberto Vasconcellos

Walter da Silveira foi o homem que aprendeu a ler para ver cinema. Insistia por telefone a meu amigo José Walter Lima que me enviasse da Bahia o livro. Durante meses foi essa lengalenga, até que enviou-me os quatro volumes de Walter da Silveira, Maravilha.

Eu havia lido, mal e rapidamente, Fronteiras do Cinema. Passei uns tempos em Salvador na casa de meu tio marxista, Armando Domingues, pai de Carlos Vasconcelos Domingues.


Fiquei sabendo depois pelos escritos de Glauber Rocha que Walter da Silveira era o seu mestre e responsável por sua iniciação no cinema. Havia, no entanto, muito mais porque nunca foram publicados os artigos e ensaios de Walter entre 1928 a 1970, o que ocorreu somente agora graças a José Umberto Dias.


Ler Walter da Silveira em 2003 é uma descoberta e também uma perplexidade, que põe e repõe em cena a cultura brasileira do século 20. O lugar comum recorrente é o da injustiça intelectual que se comete na picaretagem de país colonial.


Demorou muito tempo (Walter morreu em 1970) para a Bahia publicar seus textos. Ninguém fez tanto para elevar o nível cultural de Salvador, ninguém militou como ele. Afinal sem bons filmes não haveria formação de cineastas e críticos, portanto inexistiria cinema brasileiro. Foi aí que em 1950 teve a ideia de fundar um cineclube, que pode ser comparado a qualquer outro do mundo (por exemplo, Henri Langlois com a Cinemateca de Paris).


Nasceu Walter da Silveira em 1915, começou a escrever sobre cinema aos 13 anos em jornal. Aprendeu a ler para ver cinema. “A vontade de ler os programas então distribuídos em folhetos pelas portas me ensinou o alfabeto”. Clareza, concisão, avesso ao beletrismo e a filmar obras literárias.


Em seu livro A História do Cinema, Jean-Luc Godard homenageou os organizadores de cineclubes e cinematecas. Equacionemos: Godard está para Langlois assim como Glauber está para Walter da Silveira.


O crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes, que teve maior notoriedade pela mídia e universidade, intuiu que os inéditos do cineclubismo baiano viessem a lume, a história do Cinema Novo deveria ser revalidada. Isso sem mencionar que Walter tinha o que nem o arguto e perspicaz André Bazin conseguiu: um estilo próprio.


Dizê-lo crítico de cinema é pouco, Walter foi um pensador do cinema que não estudou em Roma ou em Nova Iorque. Um pensador de cinema que gerou em sua província Glauber Rocha e Roberto Pires. O Walter que foi fazer cinema era Glauber, assim sem o cineclube de Walter não existiria Glauber. Em ambos a oposição ao colonialismo capitalista.


O livro A Revolução do Cinema Novo, de Glauber, é no estilo o Walter com sincope e parataxe (ausência de sintaxe), mas é a mesma concepção do cinema como sistema de ciência e arte.

Walter ensinou a juntar a análise formal dos filmes com a sua tessitura sociológica e, do ponto de vista mundial, foi um dos grandes críticos a incorporar o método do marxismo (tal qual George Sadoul). E vendo e escrevendo a partir de uma subperiferia colonial. Em seus textos a província de Salvador converte-se em umbigo do mundo, portanto dotada de autoestima cultural, embora tivesse ojeriza ao cabotinismo que persegue muitos baianos metidos a besta.

Gilberto Felisberto Vasconcellos é jornalista, sociólogo e escritor. Texto originalmente publicado na revista Caros Amigos