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13 outubro 2007

"Barravento" quarentão


Já se aproximando o ocaso de 2007, e praticamente nenhuma alusão à passagem dos 45 anos de Barravento, primeiro longa metragem de Glauber Rocha que, lançado em 1962, tem, agora, quatro décadas e meia de sua realização. Sobre ser um filme do maior cineasta brasileiro de todos os tempos, Barravento se estabelece mais além na sua importância, pois se enquadra como um dos detonadores do importantíssimo – e quase esquecido pela ausência de memória característica dos brasileiros e, particularmente, dos baianos – Ciclo Bahiano de Cinema, que eclodiu com Redenção, de Roberto Pires, o primeiro filme de longa duração feito na Bahia, e transformou a cidade de Salvador numa efervescência cinematográfica nunca vista, quando se tentou criar uma infraestrutura capaz de dar prosseguimento, aqui, a um cinema característico da baianidade e dotado de acentos universalistas. Assim, com a aparição de Redenção, várias pessoas acreditaram na real possibilidade de se fazer cinema nestas plagas, como Rex Schindler, Braga Neto, Palma Netto, David Singer, principalmente o primeiro, que tiraram dinheiro do bolso para produzir filmes como Barravento, A Grande Feira (1961), Tocaia no Asfalto (1962) - ambos de Pires, O Caipora (1963), de Oscar Santana, Sol sobre a lama (1964), de Palma Netto e Alex Viany, O grito da terra (1964), de Olney São Paulo, obras genuinamente baianas e bancadas com capital de empresários locais. A febre, porém, tal qual um imã, atraiu produtores do sul e até estrangeiros – para ficar num só exemplo: O pagador de promessas (1962), de Anselmo Duarte, produzido pelo paulista Oswaldo Massaini e que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes – é bom que se diga que este é o único filme brasileiro a conquistar a tão cobiçada palma do Croisette.

A efervescência que tomou conta da cidade se liga a um momento particular das artes baianas, que, por sua vez, se vincula ao espírito da época, configurando o que Antonio Risério chamou de a “avant-garde” na Bahia em ensaio do mesmo nome publicado pela Corrupio. A província, nesta época, teve um singular desenvolvimento: fazia-se um teatro da melhor qualidade na Escola da UFBa do Canela, com Martim Gonçalves à frente, formando toda uma geração de intérpretes qualificados em encenações que despertavam interesse de pessoas do eixo Rio-São Paulo; Lina Bo Bard revolucionava com a criação do Museu de Arte Moderna; Roelrreutter, Ernest Widmer, entre outros, desconcertavam as tonalidades acadêmicas do Seminário de Música; os suplementos culturais agitavam com textos críticos e escritos literários; o Clube de Cinema da Bahia, liderado por Walter da Silveira, informava e formava uma platéia de interessados, fazendo-os ver e compreender a arte do filme, entre eles, Glauber Rocha, atento e assíduo. O Brasil crescia e parecia ser o país do futuro com o desenvolvimentismo de JK.

Barravento teve gestação difícil. Começou a ser filmado em 1959 por Luis Paulino dos Santos que, apaixonado pela atriz principal, Sonia Pereira, atrasou o cronograma porque ficava apenas fazendo planos demorados de sua amada. Glauber Rocha, que fazia parte da equipe, com o consentimento do produtor, Rex Schindler, deu um golpe, demitindo Paulino e assumindo o controle total das filmagens. Reescreveu o roteiro com José Telles de Magalhães, e terminou um filme que se arrastava indefinido. Pronto o copião, o início da rodagem – pelo mesmo grupo – de A Grande Feira – determinou a paralisação dos trabalhos de pós-produção e, somente em 1961, com o término da fita sobre a feira de Água de Meninos, Glauber, com Barravento debaixo do braço, levou-o ao Rio para ser montado, pedindo ajuda para isso a Nelson Pereira dos Santos, que, seguindo as orientações glauberianas, montou-o para que, no ano seguinte, pudesse ser lançado. Assim, três anos (de 1959 a 1962) foram necessários para Barravento vir à luz, tornar-se realidade no écran luminoso. Barravento, na realidade, considerando o início de suas filmagens, tem, a rigor 48 anos, quase um cinquentão.

Apesar de algumas tentativas de incluir conceitos de Serguei Eisenstein e da sua montagem ideológica, Barravento pode ser considerado um rascunho do que viria a seguir, uma promessa de um cineasta, que veio a traumatizar duramente o cinema brasileiro com Deus e o diabo na terra do sol (1964), uma indiscutível obra-prima. Tem sua importância dentro de um momento histórico, por ser a primeira obra de Glauber e por refletir a mentalidade de uma época em relação ao misticismo dos pescadores negros da praia de Buraquinho. O argumento é bem simples: numa vila de pescadores, a única rede pertence a um explorador, mas a comunidade não se revolta, postando-se passiva diante da opressão. A chegada de Firmino (Antonio Pitanga), vindo da cidade grande, onde se conscientizara politicamente, cheio de idéias revolucionárias, vai se chocar com o pensamento de Aruã (Aldo Teixeira), o favorito da deusa Iemanjá. Para libertar o povo, Firmino tem que destruir a credibilidade de Aruã frente aos pescadores, o que consegue no final.O negro moderno e urbanizado derrota o negro semitribal e mais próximo das raízes africanas. Segundo notou o crítico João Carlos Rodrigues em seu livro O negro no cinema brasileiro. Barravento é, assim, um filme revolucionário no sentido estrito do termo e parece aceitar a máxima de que “a religião é o ópio do povo”.

Neste ponto de vista, um filme preconceituoso, mas muito característico da mentalidade dos intelectuais da época. Mentalidade que seria reformulada pelo próprio Glauber em filmes posteriores – notadamente A idade da terra –e por Nelson Pereira dos Santos em O amuleto de Ogum, onde o cineasta, respeitando as crendices do povo, conta a história sem tomar partido e assumir, como fez Glauber em Barravento, uma atitude paternalista com acentos revolucionários.

Discretamente, assim, faço desta coluna que ainda se quer setariana, uma homenagem a Barravento, que, abstraindo-se a questão revolucionária, é um filme belo e envolvente com luz fascinante de Tony Rabattoni na exploração de um cenário exuberante. No elenco, além dos citados, a beleza negra de Luiza Maranhão – que desapareceu sem deixar vestígios, contando a lenda que se casou com um milionário europeu e largou o cinema, Lucy Carvalho, e Lídio Cirillo dos Santos – que viria a incorporar o beato Sebastião em Deus e o diabo na terra do sol.

E não se pode esquecer da influência de Alexandre Robatto, Filho em algumas tomadas de Barravento, influência negada por Glauber Rocha, mas provada pelas imagens do filme.
O restaurante e bar Barravento, na Avenida Oceânica, perto do Morro do Cristo, tem esse nome por causa do filme de Glauber.
O cartaz é de autoria de Calazans Neto.

11 outubro 2007

O cinema perdeu a "graça"



Em comentário sobre Cantiflas, foi observado que este comediante mexicano talvez tenha influenciado o inesquecível Oscarito. Tenho a concordar com a observação. Alguns trejeitos deste parecem ter sido criados originariamente por Mario Moreno. O imaginário daqueles que frequentaram as salas exibidoras na década de 50 está repleto de comediantes cheios de graça, esta a expressão, como Cantiflas, Oscarito, Jerry Lewis, Grande Otelo, entre tantos outros. Não gostaria de me prolongar em citações, porque, neste caso, poderia cair em omissões imperdoáveis. Com a falência da graça no cinema contemporâneo, e a ascenção da mediocridade ululante, reflexo de uma civilização em crise de valores que não dispõe nem de uma escola como a expressionista para a manifestação de sua perplexidade e seu pavor, porque, afinal de contas o expressionismo é arte e o homem contemporâneo, em crise, não possui nem sequer a arte como mola propulsora de seu discurso sobre o mundo, quer para abraçá-lo, como fez Rossellini, quer para destruí-lo do ponto de vista criador, com a falência da graça no cinema contemporâneo, ia dizendo, os comediantes estão cada vez mais raros. Não ouso citar exemplos. Não me lembro agora. Talvez, forçando a memória, apareça alguém (Roberto Benigni????:? Pelo amor de Nossa Senhora Aparecida!). Se a graça sumiu, o que resta ao homem neste mundo sem Deus? Dar um tiro na cabeça?

10 outubro 2007

Quem se lembra de Cantiflas?






Nascido em meados do século passado, 1950, comecei a ir ao cinema aos 5 anos de idade, portanto a partir de 1955. Minha formação cinematográfica se deu com o chamado cinema de gênero, quando reinava, absoluto, o cinema americano da era dos grandes estúdios. Ficava fascinado com os westerns de John Ford, Anthony Mann, Howard Hawks, entre tantos, com os musicais de Minnelli, Stanley Donen, com as comédias de Billy Wilder, Frank Tashlin, entre outros, o film noir, os épicos, enfim certos clássicos que ficaram imortalizados pelo engenho e pela arte de seus realizadores. Via muita chanchada do cinema brasileiro, com os inesquecíveis Oscarito, Grande Otelo, Ankito, Zé Trindade.
Mas o motivo do post de hoje é fazer uma pequena homenagem a um cômico que fez a alegria dos cinéfilos nos anos 50 e 60 e que parece estar completamente esquecido: Cantiflas, comediante mexicano cujo nome real é Mario Moreno. Morreu em 1993, de câncer, aos 82 anos. Ficou milionário com o cinema, porque seus filmes feitos no México ultrapassaram as fronteiras de seu país e foram vistos em quase o mundo inteiro. Na década de 50, a maioria de suas fitas era dirigida por Miguel M. Delgado e distribuida pela Pelmex. Houve um momento especial do cinema mexicano, quando despotavam Maria Felix, Arturo de Cordova, Pedro Armendariz, entre tantos outros, a fotografia brilhante de Gabriel Figueroa, nos melodramas e dramalhões, que Nelson Pereira dos Santos focaliza em O cinema das lágrimas, filme ruim, mas que vale pelo arquivo de trechos dos típicos filmes realizados na época áurea da cinematografia mexicana.
O personagem de Cantiflas usava a calça muito baixa, uma de suas marcas registradas. Acho que o primeiro filme que vi com ele foi O porteiro (El portero), mas me lembro bem de Sobe e desce, que se passa numa loja de departamento, e O bombeiro atômico, O engraxate, entre outras. De repente, convidado a Hollywood aparece na superprodução A volta do mundo em 80 dias (Around the World in Eighty Days, 1956), de Michael Anderson, numa produção de Michael Tood, que inventou uma lente especial para este filme, baseado em Jules Verne e que possui um elenco cheio de astros e estrelas em pequenas pontas: Frank Sinatra, Marlene Dietrich, Fernandel, etc. Cantiflas faz Passepourt, criado do aristocrático David Niven, que aposta, no seu clube, que seria capaz de dar a volta ao mundo em 80 dias. No itinerário, apaixona-se por Shirley MacLaine (em seu segundo filme ou terceiro, o primeiro, O terceiro tiro, de Hitch), mas esta, no final, entra no clube, que somente os homens podiam entrar, e os quadros caem das paredes, imagem que me ficou, menino que era ao vê-lo. Quatro anos depois Cantiflas foi chamado para outra superprodução, Pepe (1960), dirigida pelo especialista em musicais George Sidney, filme que não existe em DVD nem nos Estados Unidos e cuja cópia em VHS, por rara, tem preço altíssimo. Vi Pepe várias vezes adolescente. Também, mania da época, um elenco de astros e estrelas em pequenas pontas, a saber: Shirley Jones, Maurice Chevalier, Bing Crosby, Richard Conte, Bobby Darin (na época, marido de Sandra Dee), Sammy Davis Jr, Jimmy Durante, Zsa Zsa Gabor, Judy Garland, Greer Garson, Hedda Hopper (famosa colunista e fofoqueira menos temida, porém, do que Louella Parsons), Peter Lawford, Janet Leigh, Jack Lemmon, Kim Novak, André Previn (partiturista que aparece como ele mesmo, assim como muitos desse cast fabuloso), Donna Reed, Debbie Reynolds, Edward G. Robinson, Cesar Romero, Frank Sinatra, Charles Coburn, Dean Martin, Tony Curtis.


Uma das imagens é de A volta ao mundo em 80 dias, vendo-se, nela, David Niven e Cantiflas.

08 outubro 2007

Dreyer: canto agônico e fé no mistério




Antes do DVD, ver um filme do dinamarquês Carl Theodor Dreyer, principalmente para o soteropolitano, implicava numa viagem a São Paulo ou, caso quisesse conhecer a obra completa, uma ida à Cinematheque Française, em Paris, ou ao Museu de Arte Moderna de Nova York (Moma). A distribuidora Magnus Opus (http://www.magnusopusdvd.com.br/) já disponibilizou seis filmes deste monstro sagrado do cinema, mas, infelizmente, difícil encontrá-los nas locadoras. O lançamento do pacote Dreyer é um acontecimento excepcional, pois oferece àquele amante da arte do filme a oportunidade de conhecer um dos mais expressivos autores de toda a história da chamada sétima arte. Creio mesmo que o acontecimento mais importante do ano em termos de arte, expressão, beleza e cinema. Os filmes do pacote, que podem ser adquiridos separadamente, são os seguintes: A quarta aliança da Senhora Margarida (Praesteenken, 1920), Mikael (Michael, 1924), O martírio de Joana D'Arc (La passion de Jeanne D'Arc, 1928), Dias de ira (Vredens dag/Dies irae, 1943), A palavra (Ordet, 1955), e Gertrud (idem, 1964). Há, ainda, um documentário precioso sobre Carl Theodor Dreyer, Radiografia da alma (My métier, 1995), de Torben Skjodt Jensen, que focaliza o processo de criação do autor. Falta uma obra imprescindível, Vampyr (1932), o primeiro filme sonoro de Dreyer (mas que pode já estar sendo lançado), obra-prima para muitos, uma admirável recriação visual da atmosfera entre opressiva e lírica que circunda uma história de amor inteiramente presidida pela idéia da morte.

O ensaísta baiano Walter da Silveira, quando enviou para a antiga revista Filme/Cultura, em 1968, a relação de seus dez maiores filmes, colocou La passion de Jeanne D'Arc em primeiro lugar. O crítico tinha verdadeira adoração pelo cineasta dinamarquês. Dreyer morreu, no entanto, sem alcançar o seu tão sonhado projeto, o de filmar a vida de Jesus Cristo. Sobre Gertrud, o último filme, escreveu Jean-Luc Godard no Cahier du Cinema: "Gertrud iguala em loucura e beleza as últimas obras de Beethoven". É preciso dizer, portanto, que o DVD está a funcionar como um resgate do grande cinema. Mas vamos ver aqui alguma coisa sobre A palavra (Ordet).

Seguindo o estilo de Dies Irae – planos-seqüências e recitações, lentos movimentos de câmera e intercalação de breves close ups, A palavra (Ordet) representa a plenitude de Carl Theodor Dreyer no tocante à harmonia da complexidade, a ascese de sua dinâmica espiritual e artística e à sabedoria da realização. Como em La passion de Jeanne D'Arc (1928) e Dies Irae, encontramos temas iniciais que se colocam em prosseguimento, como, por exemplo, em Ordet, uma acusação da intolerância e o orgulho dos exclusivistas da verdade. A morte constitui o vértice dramático, mas, também, aqui, Dreyer adota uma clara postura na ordem do sobrenatural. Com uma sinceridade conseqüente, Dreyer conduz o filme até o milagre, o qual só é possível, em seu caso, como conseqüência de um ato de fé total, puro, sensível e compartilhado. Desta forma, o realizador dinamarquês se situa acima de seu tempo e do lugar: a morte precede naturalmente o milagre, e este determina a reconciliação consciente e coletiva. Ordet se desenrola como uma sinfonia de sensibilidade e de austeridade, em que o orgulho sectário de Morten e Peter se harmoniza com a despreocupação religiosa de Mikkel, o despertar amoroso de Anders, o sossegado intimismo de Ingers e a loucura de Johannes, cujas récitas proféticas salmodiam o filme, levando-o com grande fluidez até a cena final, a do milagre. Neste momento, Johannes recupera toda a sua lucidez, a plena razão, e, a falar com a menina, sua sobrinha, com o apoio desta, tem força suficiente para conseguir a ressurreição desejada.

Em uma obra de tanta seriedade temática e categoria estética, a indiferença só pode representar sintoma de incultura (como alguns, que se dizem entendidos de cinema, e que assistiram ao DVD de Ordet, e viram nela uma obra acadêmica e ultrapassada, pessoas, aliás, que costumam freqüentar com a assiduidade das bestas as salas do circuito Bahiano) e, desde logo, de ausência total de sensibilidade artística. Ordet, monumento agora disponível em disco, se baseia na obra homônima de Kaj Munk, pastor protestante assassinado pelas tropas de Hitler que ocuparam seu país, e que, desafiando-as, ao proclamar certas verdades do púlpito de sua igreja, foi logo morto.

A ação de Ordet se localiza num povoado dinamarquês. O velho Morten Borgen (Henrik Malberg) e seus filhos Mikkel (Emil Haas Christensens) e Andrés (Cay Kristiansen) buscam o terceiro filho de Borgen, Johannes (Preben Rye), que em sua loucura afirma ser Jesus Cristo. Inger (Birgitte Federspiel), esposa de Mikkel e que está grávida, tenta consolá-los. Enquanto Borgen discute com seu vizinho Peter (Ejner Federspiel), pertencente a uma seita religiosa distinta, Inger sofre uma urgente intervenção médica. O caçula dos Borgen quer se casar com a filha de Peter, mas este reage e não aceita, obrigando o velho a ir discutir com ele. Enquanto ele conversa com o outro, o recém-nascido de Inger morre e esta não tarda em seguir-lhe, morte, aliás, que havia sido profetizada por Johannes. Durante os preparativos do funeral, Mikker não pode conter a sua dor, quando aparece Johannes, lúcido, a lhe reprovar sua falta de fé. E, através de sua intervenção, Inger volta à vida.

A temática de Dreyer se centra no ser humano como sujeito de valores absolutos. O homem é observado psicologicamente e a sua dignidade defendida frente a toda intolerância, coação física ou moral. Através da tolerância, da bondade e do sofrimento, chega à idéia abstrata do amor e da pureza espiritual, assim como, no âmbito religioso, à fé, e no metafísico, às relações do homem com Deus. Sua técnica narrativa, influenciada em suas origens pela escola cinematográfica alemã, expressionista, e pelos principais criadores do cinema soviético, adquire caracteres próprios e inconfundíveis a partir de La passion de Jeanne D'Arc. Mediante o uso de diversos elementos, em especial os movimentos lentos de câmera, serenidade expositiva, grande direção dos atores, iluminação difusa umas vezes e contrastada em outras, utilização do silêncio como valor dramático, e progressiva dramatização da ação interna, passa, imperceptivelmente, do físico ao moral, do cotidiano ao existencial ou metafísico. Para Dreyer, o estilo é a incorporação da alma do artista à obra do criador, isto é, sua personalidade. Segundo o criador de Ordet, sem estilo não há obra de arte.

P.S:(1) Percebe-se, na visão dos filmes de Carl Dreyer, que Ingmar Bergman, nórdico como ele, foi fortemente influenciado por suas obras. Ao contrário do dinamarquês, homem religioso e imbuí­do de profunda fé, o sueco, apesar de filho de pastor protestante e educado severamente nos temas religiosos, era um ateu e, também, um descrente da vida e do homem. Para o autor de Morangos silvestres, estamos condenados a viver num inferno, e o inferno, como na visão sartriana, são os outros. Se há uma disparidade entre os realizadores quanto a fé, há, por outro lado, uma similaridade entre alguns dos filmes de Bergman da fase madura e as obras dreyerianas.
(2) Carl Theodor Dreyer nasceu em Copenhague (Dinamarca) em 1889 e veio a falecer nesta mesma cidade em 1968, quando já tinha captado todos os recursos para o sonho de sua vida: filmar a trajetória de Cristo na Terra. Morreu com 79 anos. Gertrud, seu canto de cisne, rodado em 1964, comparado por Godard às últimas obras de Beethoven, despreza qualquer influência do cinema que lhe era contemporâneo: antisnob, lento, seco, direto, tendo a palavra como veio condutor.
A imagem é de um momento sublime de Ordet.

07 outubro 2007

Introdução ao Cinema (15)

O ponto de vista adotado pela narrativa fílmica é sempre – e simultaneamente – objetivo e subjetivo, nunca redutível a uma única perspectiva por causa da dupla e concomitante ação realista e irrealista do cinema. O que não exclui, em todo caso, a hipótese de a narrativa abraçar uma ótica em detrimento de outra em relação ao desenvolvimento global da narração. Um filme, portanto, nunca pode narrar um acontecimento inteiramente visto de dentro – a coisa que o romance pode fazer, mas tem a necessidade de recorrer a um ângulo de observação que permita unificar a matéria representada a fim de não gerar confusões de perspectiva. No filme-ensaio (vide Meu tio da América/Mon oncle d’Amerique, 1979), do imenso Alain Resnais, que esteve em cartaz recentemente com Medos privados em lugares públicos (Coeurs), esta ótica se identifica com a do autor que seleciona e ajuíza. No filme de ficção, esta ótica segue o olhar de um dos protagonistas, procurando, no entanto, não se confundir completamente com ele. A perspectiva da câmera é diferente da do olho humano e, como demonstram inúmeros filmes, a lente pode ocupar o olhar de um gato (Um dia, um gato, filme tcheco no qual, em alguns momentos, tem-se a perspectiva do olhar do gato que vê as pessoas de uma localidade segundo o seu caráter, dando-lhes as cores correspondentes). O objeto focalizado também pode ser totalmente deformado – e, nesse particular, o expressionismo alemão é farto de exemplos – O Gabinete do Dr. Caligari, 1919, de Robert Wiene, Nosferatu, o vampiro, 1922, de Friedrich Murnau, etc. Em Cidadão Kane, 1941, de Orson Welles, filme com forte influência expressionista, o cineasta usa tetos baixos para dar uma dimensão insólita aos personagens e, na sequência do palácio de Xanadu, Susan Alexander, a mulher de Kane, é vista em pequena silhueta diante de uma gigantesca lareira. Dentro da mesma obra, um jogo tipo quebra-cabeça – um puzzle que, no final das contas, é a própria chave para a compreensão da obra – tem suas peças em dimensão enorme. Welles, nestes casos, deforma os objetos com a lente com um propósito estético contextual.
Henri Angel, ensaísta francês, acha que o ponto de vista de um filme deve ser sempre o que é adotado pelo cineasta, quer este decida ver o mundo através dos olhos de um dos protagonistas, quer decida manter-se o mais possível exterior à ação narrada. Um caso de identificação autor-personagem é representado por O deserto vermelho (Il deserto rosso, 1964), de Antonioni, onde a realidade é vista pela câmera não como efetivamente é mas como se apresenta aos olhos do protagonista.

Outro caso de identificação autor-personagem está representado em Repulsa ao sexo (Repulsion, 65), de Roman Polansky, onde os pesadelos da protagonista (Catherine Deneuve), apresentados como objetivos, não são mais que o fruto da personagem psicopata, uma manicure sexualmente reprimida que se isola em seu apartamento e vai enlouquecendo.
No polo oposto situam-se, pela sua objetividade extrema, filmes como Nashville, de Altman, uma crônica de cinco dias da vida de uma cidade no Tennessee, Nashville, na hora do show business e de uma campanha eleitoral que serve como um testemunho à beira do desespero sobre os Estados Unidos contemporâneos. Também Lancelot, de Robert Bresson, e Nicht Versohnt, 65, de Jean-Marie Straub, obras centradas numa radical objetividade e construídas de modo a esvaziar qualquer identificação personagem-espectador e, também, redutíveis ao ponto de vista exclusivo do realizador onisciente.
Existem também filmes nos quais os pontos de vista são contraditórios ou contrastantes entre si. Rashomon, 1950, de Akira Kurosawa, filme que projetou o cinema japonês no mercado internacional, é um exemplo bem marcante. A fábula se passa no século XV numa floresta perto de Tóquio, quando um bandido afirma que matou um samurai depois de violentar a mulher dele. A mulher, porém, diz que foi ela quem matou seu próprio marido. Surge, então, a alma do morto que conta a todos, estupefatos, como se suicidou. Mas um açougueiro que a tudo ouvia, dá uma quarta versão. Em Rashomon, portanto, são fornecidos três pontos de vista diferentes do mesmo fato, todos igualmente espectáveis, até emergir deles um quarto que é o verdadeiro.

Há o caso de a ação ser contada por um morto que relata do além a sua história trágica – não existem nem realizador oculto nem personagem visível. É o que acontece em Crepúsculo dos deuses (Sunset Boulevard, 1950), de Billy Wilder, no qual o encenador protagonista conta da sua situação de defunto, o como e porque de sua morte devida à atriz famosa da qual tinha sido hóspede. A ex-estrela é Glória Swanson que, vivendo esquecida num suntuoso palácio antiquado de Hollywood, acompanhada de seu fiel criado (Erich von Stroheim), contrata um roteirista fracassado que se torna seu amante e que ela mata quando ele se recusa a continuar a relação.
A imagem que ilustra o post é de Duas garotas românticas (Les demoiselles de Rochefort, 1966), encantador filme de Jacques Demy, com Françoise Dorleac (que viria a morrer de acidente logo após concluídas as filmagens) e Catherine Deneuve, que eram irmãs na vida real.