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11 janeiro 2012

Notas ao léu

Kirk Douglas e Cyd Charisse em A cidade dos desiludidos (Two weeks in another town, 1962), de Vincente Minnelli.

1.) A ausência de um repertório cinematográfico e/ou literário e cultural mais amplo, a pressa sistemática do consumo, a superficialidade com que são vistas as coisas, determinam a miséria cultural dos corações e mentes contemporâneos. Para se ter o conhecimento de alguma coisa é necessário tempo e dedicação. No caso específico do cinema, o tempo é fundamental. Adquire-se um repertório cinematográfico através da visão criteriosa de filmes, e com o passar do tempo. Não a visão superficial, consumista, ligeira, como se a obra cinematográfica fosse mais uma mercadoria que se está a consumir num shopping, a ponto de se dizer que o ir ao cinema atualmente é, praticamente, e apenas, uma das fases do shoppear. Gosta-se de De pernas pro ar como se gosta da pipoca que se come, da camisa comprada num shopping, de um perfume, de um sapato, de um colar, enfim, de qualquer objeto do desejo estimulado pela perversa propaganda consumista. Acredito que, se o cinema fosse constituído, em sua maioria, de mixórdias do tipo de De pernas pro ar, tenho certeza de que nunca mais entraria numa sala de exibição cinematográfica. Nunca mais iria ao cinema. Mas, estranho é o mundo, De pernas pro ar é um filme até sofisticado se comparado às bobajadas vistas diariamente no Big Brother Brasil (BBB). No caso do filme, a arte cinematográfica, que virou linguagem de televisão, nunca foi tão maltratada. No caso do programa, a televisão, desde a sua inauguração por Assis Chateaubriand, em 1950, nunca alcançou nível tão baixo, tão rasteiro. Mas, infelizmente, há quem curta e goste. E gosto não se discute, como se diz por aí.
2.) Um dos maiores diretores do cinema brasileiro, Roberto Farias, é um dos poucos realizadores que possuem pleno domínio formal do veículo, da estrutura narrativa. Revi, há poucos dias, Assalto ao trem pagador (1961), que saiu em DVD patrocinado pelo Ministério da Cultura e Funarte na primeira metade dos anos 2000. Trata-se, sem dúvida, de um dos grandes filmes do cinema nacional, ágil, eletrizante, que conta o famoso assalto ao trem pagador ocorrido no Rio de Janeiro. Quando do seu lançamento, o sucesso foi estrondoso. Mas a moçada do Cinema Novo não lhe deu a devida importância, porque o filme não se afinava com a cartilha cinemanovista. A importância de Assalto ao trem pagador está sendo dada agora, principalmente após a sua restauração em DVD, que conta com os depoimentos dos principais atores, diretor e produtores do filme. Eliezer Gomes impressiona no papel de Tião Medonho. Helena Ignês está belíssima como a grã-fina paquerada por Reginaldo Faria. Jorge Dória, impecável como o delegado. Farias, que começou com uma chanchada, Rico ri à toa, com Zé Trindade, realizou em seguida um filme de impacto que permanece desconhecido: Cidade ameaçada, com seu irmão Reginaldo no papel principal, obra já reveladora de um excelente artesão.
3.) E, verdade seja dita, poucos os artesãos competentes do cinema brasileiro, poucos aqueles que sabem desenvolver um plot com eficiência dramática. A compulsão autoral, estimulada pelo Cinema Novo (nada tenho contra ele e entre meus favoritos se encontram muitos filmes cinemanovistas), acabou sendo contraproducente, gerando geniozinhos que, a título de uma impostação autoral, criaram verdadeiros monstros da aporrinhação e do tédio. Roberto Farias é um exemplo de artesão competente (outros: Alberto Pieralisi, José Carlos Burle, J. B. Tanko, José Padilha, Flávio Tambellini, entre outros), mas não se poderia classificá-lo como autor, porque não possui constantes temáticas e estilísticas quando examinada a sua filmografia.
4.) Revendo Assim estava escrito (The bad and the beautiful, 1953), de Vincente Minnelli, mais uma vez a constatação de estar diante de uma obra-prima do cinema. A tomada final, antes que os créditos assumam e ascendam, pondo termo ao filme, é uma das mais fascinantes da história do cinema. Contada assim não tem muita graça, mas a tomada, um dos mais significativos exemplos de como encerrar um filme com engenho e arte, apresenta Lana Turner, Dick Powell, e Barry Sullivan, ao sair do escritório de Walter Pidgeon, após este receber uma ligação internacional de Kirk Douglas, o malvado produtor que prejudicou a todos. Quando os três saem, há um telefone postado fora do prédio, e Lana Turner não resiste em pegar o fone para ouvir, na extensão, a voz de Douglas, porque, apesar de um canalha, um sedutor. À medida que Lana ouve o que Douglas fala, Powell e Sullivan não resistem e colocam, cada um em lados opostos, seus rostos encostados no da atriz esfuziante. O filme termina com os rostos dos três personagens como que grudados na tentativa de captar as palavras de Kirk Douglas. E se dá o retumbante the end, para, em seguida, a ascensão dos créditos que nominam os personagens. Filme emblemático, um dos pontos altos da carreira de Minnelli, visão ácida e amarga da indústria de Hollywood, The bad and the beautiful é puro estilo e mise-en-scène. Teria uma espécie de continuação, em 1962, em A cidade dos desiludidos (Two weeks in another town), outro momento belo e cativante da trajetória de Minnelli. Martin Scorsese, em seu livro Viagem pessoal pelo cinema americano, que foi editado pela CosacNaify, cita os dois filmes como fundamentais para a compreensão do processo de criação cinematográfico do cinema made in Hollywood.
5.) A fonte inspiradora de Jean-Luc Godard em O desprezo (Le mépris, 1963) é Romance na Itália (Viaggio in Itália, 1953), de Roberto Rossellini, com Ingrid Bergman e George Sanders como um casal desiludido com o matrimonio em profunda crise de incomunicabilidade que procede a uma viagem pela Itália profunda e, no percurso, ao constatar as ruínas de Pompéia, e a desolação de outras cidades, resolve se reconciliar. O filme abole o roteiro ascendente e a narrativa crescente. É o ponto de partida de desteatralização, da desdramatização, que seria aprofundada, anos depois, por Michelangelo Antonioni. O desprezo é também um filme sobre Brigitte Bardot ou, melhor, sobre o mito BB. Um dos melhores de Jean-Luc Godard em toda a sua carreira.

10 janeiro 2012

"La passion de Jeanne D'Arc", de Carl Dreyer

Obra-prima absoluta da história do cinema, o melhor filme visto pelo ensaísta Walter da Silveira quando feita uma enquete pela revista Filme/Cultura nos anos 60, O martírio de Jeanne D'Arc (La passion de Jeanne D'Arc), realizado em 1928 na França pelo dinamarquês Carl Theodor Dreyer, tem sua estrutura narrativa toda centrada em close ups da trágica heroína francesa e de seus algozes. Filme obrigatório para todos aqueles que querem entender porque o cinema muitas vezes pode ter uma transcendência e ser uma manifestação artística de grande impacto.


08 janeiro 2012

"A marca da maldade", de Orson Welles


Orson Welles (numa interpretação inexcedível, obeso, desfigurado, para dar a impressão da configuração da maldade) é Hank Quinlan, policial de uma cidade da fronteira entre o México e os Estados Unidos, que tem o costume de fabricaras provas com as quais acusa os supostos culpados perseguidos. Um colega mexicano, Vargas (Charlton Heston, que mostra não ser apenas ator de épicos hollywoodianos, mas um ator de amplos recursos), que acaba de se casar com uma jovem americana, Suzie (Janet Leigh), vem a descobrir os arranjos de Quinlan e ameaça desmascará-lo. Com a ajuda de Grandi (Akim Tamiroff), um traficante local que serve à polícia com informações, Quinlan faz seqüestrar e drogar Suzie, matando logo em seguida seu cúmplice no quarto do hotel onde ela se encontra trancafiada. Uma sucessão de acontecimentos proporciona a um fiel subordinado de Quinlan, Menzies (Joseph Callea) a constatação de seu caráter e acaba ajudando Vargas no total desmascaramento de Quinlan.
Touch of evil (o toque do mal, se traduzido ipsis litteris) marca o retorno de Orson Welles a Hollywood após uma ausência de dez anos. Os constantes estouros nos orçamentos, o seu comportamento muito além dos parâmetros convencionais, e as ameaças de interferência dos estúdios em seus trabalhos, fizeram-no se afastar da meca do cinema. Na década que fica fora (1948/1958) realiza, porém, na Europa, alguns filmes, a exemplo de Othello (personalíssima versão do texto célebre de William Shakespeare, que leva dois anos para ser realizada: 49/51), e Grilhões do passado (Mr. Arkadin ou Confidential report, 1955).
A marca da maldade é montado, na sua versão final, à revelia de seu autor. Há alguns anos, encontradas as anotações de Welles sobre como proceder à montagem do filme, Touch of evil é remontado tal qual a concepção do realizador de Cidadão Kane (as duas versões são exibidas, há cinco anos, no Telecine, quando este ainda é Classic e não Cult, com um documentário especial sobre as diferenças entre as duas cópias).
Apesar de sua base literária como ponto de partida do roteiro, uma sub-literatura de Whit Masterson (aliás, Hitchcock sempre diz que nunca gosta de fazer adaptações de grandes livros, a preferir a sub-literatura encontradiça em bancas de jornais, as chamadas pulp-fictions, mas a sua extração é sempre de um procedimento cinematográfico exemplar e reveladora de uma escrita que estabelece uma mise-en-scène de puro cinema, de pura estesia), A marca da maldade é uma de suas obras mais interessantes e reveladoras. Alguns historiadores, inclusive, estão a considerá-la como mais importante ainda do queCitizen Kane (o que se nos afigura um absurdo, ainda que Touch of evil seja um filme excepcional, e grandioso, e impactante, e genial).
A figura de Quinlan representa à perfeição a postura wellesiana ante a sociedade em que vive. Não que o autor se identifique com o personagem. É que, através de sua monstruosa personalidade, submete, com ela, a crítica ao mundo que o rodeia e no qual certos valores deixam de ter vigência. Em torno da figura de Quinlan, evolui uma série de personagens que, na verdade, não são mais que elementos de uma antítese mediante a qual Welles pretende chegar a uma visão dialética. E quem faz o resumo desta visão é a cigana interpretada por Marlene Dietrich no final do filme numa espécie de epitáfio cínico e emocionado.
O fabuloso plano-seqüência inicial, longo e complicado, fica definitivamente nos anais da história do cinema mundial. E dá a tônica estilística de A marca da maldade, uma das mais barrocas de seu autor (a influência do expressionismo alemão, com o contraste das sombras e das luzes, é impressionante). Welles utiliza os inquietantes elementos de uma trama enviezada e a particular estranheza dos cenários para compor uma obra em que tudo está deformado por uma ótica com freqüência aberrante.
Com a oportunidade de comparar as duas versões de A marca da maldade (a montada à revelia e a montada segundo as anotações do diretor), vê-se que o plano-seqüência do início, na versão oficial, é desfigurado com a colocação dos letreiros de apresentação, a ofuscar a visão das pessoas, do movimento, e dos objetos dentro do enquadramento. Welles, como de hábito, na sua concepção original, elabora o plano-seqüência absolutamente desprovido de qualquer material de procedência que não a da imagem.
A aparência exterior de simples drama policial, quando do seu lançamento (depois viria a ser reavaliado e considerado até melhor do que Kane), faz com que muitos críticos venham a considerar Touch of evil como uma obra menor dentro da filmografia de Orson Welles. Nada mais equivocado, pois A marca da maldade é um filme que expõe com grande força o seu pensamento e o seu estilo.
A seqüência de Janet Leigh no motel parece ter inspirado Alfred Hitchcock a convidar a atriz para o elenco de Psicose (Psycho). Não resta dúvida de que tudo indica que a atmosfera reinante no motel wellesiano de A marca da maldade tem tudo a ver com o motel hitchcockiano, com Norman Bates à la carte, de Psycho e, inclusive, a distância entre os dois filmes é curta: dois anos. O velho Hitch há, também, de sofrer a angústia da influência de Harold Bloom.
O cineasta brasileiro Rogério Sganzerla, fã incondicional de Orson Welles, tem um enquadramento em sua obra-prima, O bandido da luz vermelha, no qual o ângulo oblíquo faz ver a sair do carro o detetive interpretado por Luiz Linhares, um enquadramento visivelmente inspirado em A marca da maldade, quando o inspetor Quinlan aparece pela primeira vez. Sganzerla, aliás, realiza dois longas tributários ao grande cineasta, entre eles Nem tudo é verdade, com Arrigo Barnabé no papel do autor de Cidadão Kane, uma mistura de material de arquivo com reconstituição ficcional.
Muitos críticos e historiadores, a exemplo de Peter Bognadovich, acreditam que A marca da maldade possui uma chegada de Welles a este momento de sua vida com o mesmo cansaço que Quinlan experimenta em relação a Kane, cansaço que emerge dos anos transcorridos, da reflexão, da angústia e da desesperança.