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15 dezembro 2007

"Cascalho" em Dolby



Finalmente hoje, na Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, sessão única às 15 horas, será exibido Cascalho, longa metragem baiano de Tuna Espinheira, com o som Dolby. Há anos que o velho Tuna está a lutar para conseguir colocar o Dolby, uma espécie assim de conditio sine qua non para que os filmes possam ser exibidos nas salas comerciais. No último mês, o realizador baiano de Samba não se aprende na escola esteve no Rio em vários laboratórios para colocar o tão imprescindível Dolby.
Trata-se de uma adaptação do livro homônino de Herberto Sales. No elenco, entre outros notáveis da terra, Wilson Mello, Gildásio Leite, Irving São Paulo (de saudosa memória, filho de Olney São Paulo, cineasta baiano de Feira de Santana, autor, entre outros de O grito da terra e Manhã cinzenta), Othon Bastos, etc. O filme abre com o pintor Ângelo Roberto na pele de um convincente cascalheiro à beira de um riacho.
Para ver melhor o cartaz, clique na foto que ela se abre ampliada.

14 dezembro 2007

Loucura ou imaginação?



A comilança (La grande bouffe, 1973), extraordinário filme de Marco Ferreri, que levou muitos anos proibido pela ditadura brasileira, a ser visto apenas em 1979, fechou, com chave de ouro, a mostra organizada pelas professoras Ligia Amparo e Micheli Soares O cinema, a comida e o comer, uma promoção da Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia. Vi La grande bouffe, e a primeira visão causou imensa impressão, no Iguatemi 2, mais ou menos em 79. Depois o revi, creio que em 2001, na Sala Walter da Silveira. Mas ainda não o tinha apreciado em DVD. Nesta semana, terça, foi exibido na Sala de Arte da UFBa em DVD. Tomei um susto. Lembrava-me que, no final, restava Philippe (Philippe Noiret, o excelente ator francês que ficou famoso ao interpretar o operador em Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore) como único sobrevivente do quarteto suicida integrado por Marcello Mastroianni, Ugo Tognazzi, Michel Piccoli (que aparece na foto a carregar a cabeça de um leitão). As últimas imagens do filme mostram-no sentado no jardim ao lado de Andrea Ferreolli, que lhe serve, de colherzinha, um açucarado pudim de morango. Diabético, e depois de tanta fartura, é sinal de que não iria resistir por mais tempo, mas o filme se fecha com Philippe a comer o pudim de morango. Qual não foi a minha surprêsa, quando, nesta visão agora em DVD, Phillipe Noiret, acompanhado no mesmo banco do jardim pela professora Andrea, vem a morrer. Um carregamento de carnes diversas chega e elas são jogadas no jardim. Morto Noiret, Ferreol se dirige ao interior da mansão e o filme acaba assim.

Teria imaginado a versão anterior? Georges Sadoul conta que a memória cinematográfica prega peças no sujeito. Conta, em seu Dicionário de filmes, que levou décadas falando de uma determinada sequência que não pertencia ao filme citado. Gostaria que alguém me esclarecesse a questão. Será que existiam duas versões de La grande bouffe? Ou será que estou realmente a ficar louco?

12 dezembro 2007

De Domingos de Oliveira



Noutro dia estava o bloguista a falar de Todas as mulhers do mundo, que considera ele, o autor do blog, uma das melhores comédias do cinema nacional (colocaria a de Domingos e a de Anselmo Duarte, Absolutamente certo, sem esquecer, claro, de O homem do sputnick e De vento em popa, ambas de Carlos Manga). Mas se se falou do filme, que se fale, hoje, do artista, que se encontra presente toda quarta no Canal Brasil, firme e forte, ao lado de sua companheira Priscilla Rozenbaum no programa Todos os homens do mundo, que sucedeu ao muito bem sucedido Todas as mulheres do mundo.

A ponte que se poderia fazer em relação a Domingos de Oliveira é com o cineasta francês François Truffaut, porque ambos têm como obsessão temática o amor como mola propulsora da vida, como uma condição sem a qual o homem não conseguiria se situar no mundo. É o amor que determina as situações de seus filmes, como elemento deflagrador do desenvolvimento temático. Preterido das discussões do cinema brasileiro, visto com reservas por alguns mais enragées, Domingos é, necessário dizer, um dos mais envolventes diretores da cinematografia nacional. Dramaturgo de mão cheia, homem de mil instrumentos, inovou tanto no cinema quanto no teatro e na televisão. Vários programas da Rede Globo, quando ainda existia o padrão de qualidade, têm a sua assinatura: Aplauso, transposição para o veículo televisivo de textos clássicos, Ciranda, Cirandinha, que marcou época pela agilidade na qual se expressou na linguagem televisiva e no achado temático, entre muitos casos especiais que ficaram na história da tv. Talvez por ser um cineasta bissexto, que reserva seu tempo muito mais para o teatro, não é tão citado nem considerado. Boa parte da crítica, porém, aquela que se esconde no silêncio da emoção, tem-no como um grande, um mestre, um realizador original.
Amores, de Domingos, feito em 1998, pode ser considerado como um dos melhores filmes dos anos 90 do cinema brasileiro, da chamada retomada. Realizado com poucos recursos, filmado quase todo em interiores – boa parte no apartamento do diretor, Amores possui uma dramaturgia que tem pleno poder de convencimento. Os personagens de Domingos de Oliveira transmitem aquele poder de verdade que somente raros cineastas sabem impor nas suas obras. Poucos, como ele, têm a poética instauradora do amor como necessidade da vida, como urgência do existir. Neste ponto, é válida a comparação com François Truffaut, um apaixonado pelas mulheres e que gostava de dizer que fazia cinema por causa de seu amor por elas – e que prova mais cabal do que O homem que amava as mulheres? Amores é uma obra que reflete as relações afetivas no conturbado mundo atual cheio de encontros e desencontros - antípoda de fitinhas como Amores Possíveis ou Pequeno dicionário amoroso, ambas de Sandra Werneck, por exemplo, que, se comparadas à fita de Domingos, têm uma dramaturgia anêmica, um modo de olhar a possibilidade do amor restrito às circunstâncias do modismo ululante.
Domingos coloca muito de sua vida no filme, a romancear aqui e ali. Ele é um escritor, que vive sozinho e tem uma filha - que é a sua própria na vida real, Maria Mariana, que saiu de casa para ter vida independente. Tem uma amiga casada com um procurador com a qual troca confidências. De repente, Mariana vai entrevistar o procurador e se apaixona perdidamente por ele. Fica grávida. A confidente de Domingos se separa. Ela tem uma irmã - a excelente Clarisse Niskier - atriz de shows musicais, que vive se queixando de solidão e que, por acaso, encontra, pensa ela, o homem de sua vida. Que descobre ser bissexual e estar com AIDS. Amores se estrutura, assim, com as surpresas ocasionadas pela vida a provocar o desenvolvimento da trama. Há, ainda, algumas reviravoltas até o término. É nesta capacidade de surpreender a vida como ela é que o cineasta mostra o seu talento, a sua imensa capacidade de dramaturgo. Obra aparentemente simples, revela, no entanto, um enfoque de inusitada importância sobre as afinidades eletivas na sociedade contemporânea. Para este cineasta, quando se ama, os códigos éticos e sociais ficam arquivados, desviando-se de qualquer vinculação simplista no enfoque a estabelecer, isto sim, uma espécie de arte poética do amar. Mas depois de Amores ainda vieram Separações, Feminices, Carreiras, e o que mais?
Domingos José Soares de Oliveira é carioca, tem 71 anos -embora não aparente a idade que tem. Iniciou-se no cinema em 1967 com uma comédia deliciosa chamada Todas as Mulheres do Mundo (que há dois dias atrás foi objeto de comentário neste blog), consagrando Leila Diniz como símbolo da nova mulher brasileira - também ajudou a célebre entrevista que Leila concedeu a "O Pasquim", com palavrões trocados por asteriscos. É muito difícil se achar, na extensa filmografia do cinema nacional, uma comédia com a graça, o charme e o fascínio de Todas as Mulheres do Mundo. Feita com poucos recursos, reflete o humor carioca e o estado de espírito da juventude nos anos 60, que funciona como um retrato de um Rio que não mais existe, onde o que ditava o comportamento dos cariocas era uma procura intensa pela alegria de viver.
Dois amigos (Paulo José e Flávio Migliaccio) se encontram. Um é celibatário e não acredita no amor. Então, o outro (P.J.) conta a história de como conheceu uma mulher (Leila Diniz) pela qual se apaixonou. Vista e querida numa festa, começam um relacionamento cheio de peripécias com idas e vindas, mas, sempre, com a possibilidade da reconciliação. Para ela, ele desistiu, para amá-la, de todas as mulheres do mundo. Domingos viveu com Leila e, quando se separou, foi ao fundo do poço sem fundo e fez o filme como uma espécie de sublimação. O ritmo é frenético, o humor se instala e a beleza de se estar apaixonado recrudesce a cada cena. Domingos, em pleno Cinema Novo, que se pautava em filmes para decifrar a problemática social, seguiu outro rumo: o da análise dos sentimentos. E fez um filme admirável.
Edu, Coração de Ouro, do ano seguinte, 1967, também com Paulo José e Leila Diniz - mais Norma Bengell, Joanna Fomm, segue o mesmo estilo do anterior. Um filme sobre um homem que se recusa a aderir ao sistema, que insiste em se manter distante do establishment, um outsider, portanto, um hippie avant la lettre, pois a explosão Woodstock aconteceria somente depois (1968) e, nesse sentido, Domingos fez uma fita premonitória
Se Todas as Mulheres do Mundo rendeu 11 vezes o que custou - um fenômeno para quem entende de mercadologia cinematográfica, Edu, Coração de Ouro apenas se pagou. Assim, para realizar As Duas Faces da Moeda, com Fregolente, Oduvaldo Vianna Filho e Adriana Prieto, reflexão sobre o amor e a morte, espraiadas com rara sensibilidade, já não contou com muitos recursos e a bilheteria foi um fracasso. Na entrada dos 70, É Simonal, tentativa de dissecar o fenômeno, que, naquela época, era um estrondoso sucesso popular, incursiona pelo documentário com swing. Este filme tem influências de Richard Lester (Os reis do yê, yê, yê, Help, A bossa da conquista...) na busca de um estabelecimento do timing de acordo com a bossa do cantor, advindo, disso, uma narrativa rápida, plena de observações irônicas no estilo que consagrou Lester.
Procurou se renovar em A Culpa, 1971, fazendo um filme difícil, com tomadas demoradas, planos-seqüências, recusando o seu estilo, a sua maneira de fazer cinema, na tentativa de querer mostrar saber ser, também, um cineasta profundo, a confundir profundidade com tomadas longas, descaracterizando-se ritmicamente. E naufragou. Paulo José, Dina Sfat e Nelson Xavier são personagens que se perdem num emaranhado de circunvoluções. Há, porém, a brilhante fotografia de Rogério Noel, considerado o mais artístico iluminador do cinema brasileiro que, muito precocemente, viera a falecer aos 22 anos.Atraído pelo teatro e pela televisão, permaneceu, neles, full time, mas ainda filmou Deliciosas Traições do Amor, em três episódios, em 1973 e, quatro anos depois, a convite de Roberto Farias, então presidente da Embrafilme, Teu, Tua, outro filme em episódios baseado em contos de grandes escritores como Dostoievsky.
A partir deste, levou duas décadas sem filmar, mas trabalhando e criando intensamente no proscênio, considerado que é, pelos atores e diretores do Rio, um dos mais consistentes dramaturgos da atualidade. Daí, talvez, o desconhecimento de Domingos de Oliveira, sua não inclusão nos debates sobre o cinema brasileiro. Amores e Separações surgem para reabilitá-lo e consagrá-lo perante um público - e uma crítica - que o subestima. Domingos é possuidor de um universo ficcional próprio e um estilo particular de fazer cinema, de manipular os elementos de sua linguagem. Domingos, sob este prisma, é um autor, um artista, que se utiliza da expressão cinematográfica para pensar acercas das mazelas do maladie d’amour – dos males do amor, além de, com isso, expandir a sua reflexão num painel que retrata o drama do homem contemporâneo frente às vicissitudes do ato de amar. Acompanhando, no entanto, sua filmografia, desde a explosão inicial de Todas as mulheres do mundo, obra renovadora em espírito e linguagem, verifica-se um cineasta que retratou a sua época e as angústias de sua geração com um senso de humor poucas vezes observado no cinema brasileiro.

10 dezembro 2007

A fundo colorido



Saber usar a cor no cinema, com valor poético e funcionalidade dramática, é difícil. Usa-se o colorido a torto e a direito à maneira de um cartão postal. O espectador, condicionado ao filme colorido, por ignorância estatal, abomina o branco e preto, mas, infelizmente, não sabe contemplar a cor, ver, nesta, um componente de estesia. A imagem que ilustra este post não é a de um filme, mas tem uma composição cromática que me pareceu atrativa nesta conjugação de copos com líquidos de cores diversas.

Michelangelo Antonioni fez seu primeiro filme a cores na primeira metade dos anos 60, quando já cineasta consagrado. Assim como outros diretores importantes, Bergman inclusive, pensou muito antes de realizar uma obra colorida. E o fez com grande timidez em O deserto vermelho. Mas seu primeiro filme realmente colorido foi Blow up, filmado in loco na Londres dos efervescentes anos 60. Antonioni pediu autorização a prefeitura da capital da Inglaterra para poder pintar alguns quarteirões e toda a grama do parque onde se suspeita ter acontecido um assassinato. Na primeira solicitação, houve recusa, mas o realizador de L'avventura, somente por ser o cineasta da famosa trilogia composta por este, La notte, e L'eclisse, afinal conseguiu o desejado. O perfeccionismo de Antonioni em função da cor, da linguagem da cor, poder-se-ia dizer melhor, em Blow up, fê-lo impaciente e exigente, temperamental e neurótico, pois tinha medo de não se expressar adequadamente em filme colorido. E o fez, como o resultado está a mostrar, admiravelmente.

Hitchcock usa a cor com funcionalidade em Marnie aut(e em tantos outros filmes de sua autoria), quando o vermelho surge a dominar a tela quando das crises da personagem. E, a considerar que o branco também é uma cor (ou seria a anulação da cor?), o copo de leite, com a lâmpada acessa dentro dele, a acentuar a sua brancura luminosa, tem-se um admirável uso do cromático em Suspeita, do mestre, quando Cary Grant sobe uma escada em espiral para levar um copinho de leite para a sua esposa Joan Fontaine. O espectador fica em delirante suspense, a pensar que, naquele copo, há veneno.

Bernardo Bertoucci (por sinal, quando da morte de Bergman e Antonioni, que foram quase de mãos dadas para o túmulo, anunciou-se que o cinema morreu, etc e tal, a recorrer-se a alguns nomes restantes, a exemplo de Resnais, Von Triers, mas Bertololucci foi esquecido, que embora não seja nenhum Bergman ou Antonioni, é cineasta de grande expressividade) é um realizador atento à suan mise-en-sène, e procura, sempre, configurar o colorido de maneira eficiente e adequada. Dispõe de um artista da luz para ajudá-lo nesta tarefa, que é Vittorio Sttoraro. Em O último imperador, por exemplo, toda a parte em que o monarca fica no palácio, a luz é difusa, há pouca claridade, mas quando este resolve sair da prisão, e abraçar o mundo, a luz reina e as cores se avivam.

O Technicolor, por exemplo, era um processo rudimentar de apenas três cores, que apareceu pela primeira vez em 1932. Este processo de coloração fazia com que as imagens ficassem hiperrealistas, isto é, coloridas demais, as pessoas e as coisas eram, em technicolor, excessivamente luminosas e em cores. Faz pensar nas propagandas enganosas exibidas atualmente quando um sanduíche do Mac Donald's, por exemplo, na sua imagem publicitária, dá uma impressão de saber e gigantismo que não corresponde à realidade. Talvez o primeiro filme colorido com boa utilização da cor (leia-se a cor usada em função expressiva) tenha sido em O mágico de Oz, de Victor Fleming, em 1939, com a inesquecível Judy Garland (uma atriz e cantora que se pensa aqui insubstituível e única). Como citou Mariana Paiva, a cor é pensada em sua funcionalidade no desconcertante (e por vezes irritante) O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante.

09 dezembro 2007

A função da cor no cinema



Qual a função da cor nos filmes? Atualmente, quando todos os filmes lançados no circuito são coloridos, o preto e branco virou uma exceção utilizada apenas por questões estilísticas. E a maioria das pessoas, desconhecendo as possibilidades do claro/escuro, não mais aceita o filme sem cor. Se o filme é em branco e preto geralmente é recusado pelos exibidores, havendo, somente, casos raros de aceitação, como o referente a A lista de Schindler, porque distribuído por major poderosa.


Assim, se é verdade aquilo que afirmou Roland Barthes, que colorir o mundo significa em última análise negá-lo, como deve comportar-se a cor se não quiser esmagar a realidade, mas, pelo contrário, interpretá-la poeticamente? E, sobretudo, que atitude deve assumir relativamente às imagens e aos sons? A resposta é fácil de prever: a cor no filme deve cumprir uma missão essencialmente psicológica. Deve ser, não bela, mas significativa. Somente deste modo tem a sua presença uma justificação expressiva e pode servir para dizer coisas que não poderiam ser ditas sem a sua intervenção. Se tal não acontece, a cor não apenas resulta nociva para o filme como corre o risco de empobrecê-lo a ponto de fazê-lo regredir para um nível inferior ao alcançado no velho preto e branco.
Não é, portanto, o cinema colorido que interessa ao nosso artigo, mas, sim, o cinema de cor. Desde que, naturalmente, não reproduza a realidade de maneira cada vez mais perfeita e cada vez mais banal. Neste particular, os videomakers contemporâneos são pródigos na ânsia de reprodução do real de maneira naturalista e, em conseqüência, vulgar, pelo fato de não ter consciência da função da cor no tecido dramatúrgico da expressão videográfica. Quantos aos belos planos, não sendo o cinema uma pinacoteca – mas, pelo contrário, a vida transformada em discurso no próprio momento em que se desenrola – eles condenam o filme – ou o vídeo – à asfixia e impedem a sua respiração vital.
De citações pictóricas ilustres está a história do cinema cheia, assim como o inferno está cheio de boas intenções. Gian Piero Brunetta, ensaísta italiano, enumera alguns filmes que não aplicam bem o cinema de cor, por mais encantador e sugestivo que possa ser o resultado. A opinião é bastante discutível – este comentarista, por exemplo, não concorda, porém se trata de um estudioso do assunto. Vão desde o impressionismo francês que inspira a fotografia de Elvira Madigan (1967), de Bo Wilderberg, à pintura inglesa do século XVIII evocada em Barry Lyndon (1975), de Stanley Kubrick, do modelo dos macchiairoli italianos dos finais do século XIX seguido por Sedução da carne (Senso, 1954), de Luchino Visconti às homenagens à pintura surrealista presentes em La montagne sacré (1973), de Alexandre Jorodowsky (que esteve recentemente no Rio e SP, sendo que, nesta cidade, participou de intenso debate que varou a noite, a entrar pela madrugada, conduzido, entre outros, por Carlos Reichenbach). Para não falar, ainda segundo Brunetta, já de citações relativas a pinturas singulares, como Rossi reproduzido em Dois destinos (Cronaca familiare, 1962), de Valério Zurlini, ou Degas em que se inspira Laura (1980), de David Hamilton, ou, ainda, Remington, recriado na tela pelo mestre John Ford em Legião invencível (She wore a yellow ribbon, 1949). Os filmes citados aqui, vale repetir, segundo Brunetta, são exemplos da má utilização do cinema de cor. E o que diria ele de Caravaggio e do recente A moça do brinco de pérolas?
Porque Brunetta acha que nos exemplos citados a expressão propriamente fílmica não atinge qualquer autonomia, marcada como está pela autoridade de tantos mestres da cor, antigos e modernos. Diante dos mestres pictóricos nos quais se inspiram para compor seus filmes, os realizadores se abstêm de tomar iniciativas pessoais que possam ofender a ilustre posição de que gozam os modelos invocados.
Quando, pelo contrário, ao invés da abstenção, os realizadores decidem tomar a iniciativa, a linguagem cinematográfica pode finalmente exibir a sua autonomia, embora tenha de defrontar-se com alguns obstáculos e alguns perigos durante a empreitada. Estes são os casos em que a cor se preocupa em ser funcional e não apenas bela. São os casos em que a cor aparece na tela para complicar as coisas que nela se sucedem e não para as secundar redundantemente. Trata-se, nestes casos, de intervenções sem as quais o filme seria diferente do que é, ou, pior ainda, não estaria completo. Em suma, somente quando a cor consegue ser irredutível a qualquer outro código presente é que se pode falar de função qualificante da cor e de emprego antinaturalista, mas também antiacadêmico, dos recursos cromáticos.
Entre as funções aptas a produzir sentido, a psicológica e a crítica são as mais eficazes, para além daquelas a que mais se recorre no âmbito do cinema que odeia a cópia rasteira da realidade quotidiana. E como o cinema brasileiro gosta de ser uma cópia servil na representação do real nas telas!
De emprego da cor em sentido psicológico, tem-se como exemplo O deserto vermelho (Deserto rosso), de Michelangelo Antonioni. As cores, aqui, são apagadas, envoltas por uma dominante cinzenta que unifica as várias tonalidades, privando-as das gradações mais vivas. Isto se justifica porque, no filme, o mundo é visto pelos olhos de uma mulher que sofre de nevrose e se sente separada da realidade. Neste caso, portanto, cabe à cor a tarefa de dar a idéia de como a protagonista vê as coisas, o que acontece sem necessidade de recorrer com insistência a indicações inerentes ao diálogo e à encenação no seu conjunto. Do mesmo modo, em Satyricon, de Federico Fellini, as tintas carregadas e desprovidas de bom gosto denotam a vulgaridade do mundo representado e sublinham a sua essência lúgubre, próxima da desagregação material e espiritual. Em Nosferatu, de Werner Herzog, cabe à dominante azul, que impregna todas as cores, a função de conferir à narrativa aquele tom de lucidez que a acompanha do princípio ao fim, sugerindo a presença do Mal onde e como quer que seja, através de uma espécie de expressionismo cromático inserido na construção figurativa geral. Em O açougueiro (1970), de Claude Chabrol, a cor evolui conjuntamente com a própria fábula e, mudando de quando em vez de tonalidade, segue o seu itinerário narrativo desde a atmosfera idílica inicial até à descida aos infernos dos protagonistas com a respectiva ressurreição final, (dramática e cromática). Em Os guarda-chuvas do amor (Les parapluies de Cherbourg, 1964) e Duas garotas românticas (Les demoiselles de Rochefort, 1966), ambos do poeta Jacques Demy – um dos cineastas mais admiráveis de toda a história do cinema, as cores exercem um importante papel constitutivo do tecido dramático, situando-se como elementos determinantes da mise-en-scène – nos dois casos, também, a partitura musical de Michel Legrand pode ser considerada tão importante que o músico faz configurar, ao lado da mise-en-scène, uma mise-en-musique.
Mas é a cor que aqui interessa. Em outro exemplo, Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia (Bring me the head of Alfredo Garcia, 1974), de Sam Peckinpah, a dominante vermelha presente a nível figurativo exprime o clima de torpor e de violência próxima da explosão que caracteriza o local onde se desenrola a ação narrada. Há, finalmente, casos em que o efeito psicológico é confiado à presença de um único valor cromático que emerge do restante preto e branco. É o que acontece em Reflexões nos olhos dourados (Reflections in a golden eye, 1967), de John Huston, com Marlon Brando e Elizabeth Taylor, onde o monocromatismo da fotografia é quebrado pela presença exclusiva do tom vermelho, a significar a loucura latente do protagonista que sofre de um trauma mental que remonta à infância. As cópias distribuídas no Brasil, no entanto, foram banhadas de um technicolor que destruiu por completo a intenção inicial do autor.
Fala-se em intervenção crítica da cor, pelo contrário, quando a cor desempenha uma função dissonante no interior do filme. Neste caso, a escolha cromática deixa de corresponder ao ponto de vista psicológico de um dos protagonistas ou à exigência de definição ambiental para passar a refletir o ponto de vista do próprio autor assim como a análise que faz da realidade representada. Em Dillinger está morto (Dillinger è morto), de Marco Ferrari, as cores, cruas e brilhantes, de aspecto metálico, denunciam a invasão multicolor dos objetos a que o homem é sujeito na civilização tecnológica e a conseqüência reificante que tal invasão comporta relativamente aos sentimentos humanos. Do mesmo modo, as cores fantasiosas do sketch La terra vista dalla luna (A Terra vista da Lua, um episódio de As bruxas) conotam a ação num sentido marcadamente irrealista e conferem-lhe um tom de alegoria moral suspensa entre o divertimento e a meditação filosófica.
Pode por vezes dar-se o caso de ser a própria ausência da cor a adquirir valor expressivo. Em Manhattan (1978), de Woody Allen, a escolha do preto e branco corresponde a uma atitude nostálgica assumida pelo protagonista relativamente a um mundo que é por ele reinvocado em puro estilo dos anos quarenta, como é, de resto, confirmado pela banda sonora. Também em O jovem Frankenstein (The Young Frankenstein, 1974), de Mel Brooks, a ausência de cor representa uma homenagem ao cinema de terror dos anos trinta, relido com uma veia que se situa entre o irônico e o nostálgico. Tem-se, entre outros, evidentemente, o caso de Truffaut, que, pouco antes de morrer, dirigiu um filme no qual faz homenagem ao noir francês: De repente num domingo (Vivement dimanche, 1984), filmado em preto e branco e, recentemente, para realizar uma releitura do filme noir, os irmãos Coen apresentaram O homem que não estava lá, filme totalmente destituído de qualquer coloração e carregado no contraste do claro e do escuro.
A cor no cinema deve ser usada em função de seu tecido dramatúrgico e é preciso que se acabe, uma vez por todas, com a confusão sempre presente entre o uso da cor em função da beleza e o uso da cor em função da própria estrutura fílmica. Quem não gosta de filme em preto e branco, por outro lado, e, desde já, com as desculpas nas mãos, é um tremendo ignorante. O assunto cinema de cor rende muito mais, porém o espaço já se alonga e o comentarista deve estar de olho no velocímetro cromático de seu próprio olhar escritural..