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11 junho 2011

VII Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual

Fernando Fulco é o "cego velho" em O homem que não dormia, o mais novo filme de Edgard Navarro, que terá  avant-première durante o VII Seminário de Cinema e Audiovisual, a acontecer entre os dias 25 e 30 de julho do ano em curso.

Já se encontra no ar o site do VII Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, cuja realização vai se dar entre os dias 25 e 30 de julho do ano em curso. A mostra retrospectiva é dedicada ao cineasta italiano Bernardo Bertolucci, uma oportunidade de ouro para se conhecer, em bloco, os filmes desse realizador polêmico (O último tango em Paris, O conformista, Antes da revolução, Assédio, Novecento etc). O Seminário, organizado por Walter Pinto Lima, acontece desde 2005. Nos dois primeiros anos,  realizou-se na Reitoria da Universidade Federal da Bahia, mas depois se transferiu para o Teatro Castro Alves. Em 2007, participando de uma mesa redonda sobre o cinema baiano, deu-se um quiprocó entre este bloguista e Edgard Navarro, com grande repercussão na imprensa. Os organizadores do Seminário estão a solicitar pessoas que estejam dispostas a trabalhar durante o período da organização do evento. Visitem o site para maiores informações e inscrições: http://www.cinefuturo.com.br/2011/schedule

Profissão de fé na liberdade do homem

A paranoia anti-tabagista, que se espalha pelo mundo como metástase, está a cercear a liberdade do homem. Claro que respeito os não-fumantes, mas a legislação é absurda. Em todos os lugares, deveria haver - e obrigado por lei - um espaço reservado aos fumantes. Os que não apreciam a fumaça dos cigarros possuem todo o direito de se ver livres dela, mas os fumantes, além de proibidos, estão sendo humilhados e considerados marginais. Há poucas semanas, fumando na frente de um shopping, e no fumódromo, avistei uma mulher que, passando na minha frente, olhou-me rapidamente de esguelha, e colocou a mão no nariz. O fato é que se encontrou um inimigo público, que é o cigarro. E as descargas dos gases dos automóveis? A circulação dos carros em cidades enfartadas como Salvador deveria, sim, ter uma legislação reguladora. Em Nova York a proibição é tão severa que somente se pode acender seu amigo em casa. Nem em quarto de hotel é permitido que se solicite a companhia do velho companheiro, porque há um sistema de alarme que denuncia o fumante. Tenho consciência que o cigarro faz mal à saúde. Mas se morre fumando e se morre, também, sem fumar. Aleluia!!

09 junho 2011

Alguns minutos de "O condenado de Altona"

Maximilian Schell (irmão de Maria Schell, ator alemão que fez muito sucesso nos anos 60) contracena neste vídeo com Sophia Loren sob a direção de Vittorio De Sica, diretor de sua preferência com o qual fez muitos filmes (Matrimonio a italiana, Os girassóis da Rússia, A viagem proibida, Duas mulheres, entre outros). O filme é O condenado de Altona, assunto do post imediatamente anterior. Há também a presença do veterano Fredrich March, veterano ator do cinema americano (O médico e o monstro, Os melhores anos de nossa vida, Hombre...). Bem, vamos às imagens!


O condenado de Altona

Filme esquecido de Vittorio De Sica, o famoso neorrealista realizador do clássico Ladrões de bicicletas, O condenado de Altona (I sequestrati di Altona, 1962), apesar do roteiro assinado por Jean-Paul Sartre, e com elenco maduro, foi, quando do seu lançamento, um tremendo fracasso de bilheteria. Talvez essa a razão de ter sido condenado ao esquecimento. Busquei-o na memória e o encontrei nos seus arcanos, quando o vi, em 1965 (lançamento com três anos de atraso, como de praxe) no cinema Liceu em Salvador aos 15 anos de idade. Depois o filme desapareceu de circulação - não o assisti mais nem na televisão nem em VHS ou DVD.  Seria importante, passados quase 50 anos, meio século, que fosse devidamente revisitado, e uma distribuidora dos disquinhos bem que poderia tentar importá-lo para o mercado brasileiro - não me conformo como, até hoje, ainda não foi lançado no Brasil o magnífico Divórcio a italiana, de Pietro Germi. Em Altona, um armador alemão (Fredric March), de passado nazista, com câncer terminal, corroído pela dor, transfere seu império ao filho mais novo (Robert Wagner). Mas a mulher dele, Sophia Loren, está apaixonada pelo cunhado meio louco (Maximilian Schell), que vive trancado num quarto. Clique na imagem!

08 junho 2011

Moscou contra 007



Moscou contra 007, quando lançado (e, vejo no Imdb, que a sua estréia se deu primeiro no Brasil em 27 de abril de 1964) se transformou num fenômeno de bilheteria. Ninguém ficava indiferente a sua ação frenética, ao compasso da partitura eletrizante de John Barry, às tiradas humorísticas, ao dínamo propulsor de sua estrutura narrativa, envolvente.

Seus produtores Albert R. Broccoli e Harry Saltzman não tinham idéia, quando lançaram Dr. No que o filme faria um sucesso sem precedentes capaz de lhes estimular uma continuação, que foi este From Russia with love. Mas não esperavam, mesmo cônscios do êxito deste, que o filme fosse além dos prognósticos. Como aconteceu e a série se desdobrou em outras películas a seguir. James Bond virou uma coqueluche.

Na época, a ideologia, porém, imperava entre os estudantes. E Bond, agente secreto à serviço de sua Majestade, não agradava à esquerda, que lhe fazia vista grossa. Recordo-me que, na sala de espera do cinema onde estava sendo exibido, deparei-me, de repente, com um militante que, ao me ver, desceu escada abaixo para se esconder no banheiro. O que iriam dizer seus companheiros quando tomassem conhecimento que ele estava a ver filme reacionário de James Bond?

Creio que o fascínio de James Bond supera e está acima das ideologias. Devo fazer uma confissão agostiniana: adoro os filmes de James Bond – pelo menos aqueles interpretados por Sean Connery e alguns com Roger Moore, ainda que tenha visto com muito prazer o penúltimo Casino Royale, com Daniel Craig.

A apresentação, quando Bond, ereto, pistola na mão, surge na tela do lado direito e caminha a seu meio e, de repente, posta-se de frente e atira, caindo, na tela, uma tinta vermelha, é espetacular e emocionante, com a música tema de John Barry.

Em From Russia with love, inaugura-se o prólogo antes dos créditos. Steven Spielberg confessou, há algum tempo, que sua grande frustração era a de nunca ter feito um filme de James Bond. A séria Indiana Jones, guardadas as suas diferenças, é uma tentativa de dar ao filme o ritmo frenético das aventuras bondianas. Tanto é que Spielberg, assim como nos filmes do agente secreto, também estabelece um prólogo antes da apresentação dos créditos.

Em Moscou contra 007, o que se passa antes dos letreiros iniciais embalados com a música From Russia with love, é um fake. Bond (Sean Connery) persegue Robert Shaw (Red Grant), mas é derrotado com um fio de aço por este. Morto, diante de um castelo exuberante, as luzes se acendem com estrépito e vemos um homem tirar a máscara do derrotado que se pensa ser James Bond. Em seguida, a emergência dos créditos, dando já ao filme um impacto.

A Spectre planeja decodificar os segredos nucleares da União Soviética e, para isso, conta com a ajuda de uma mulher irascível e violenta (Lotte Lenya, que foi esposa de Kurt Weil, autor, com Bertold Brecht, de A ópera dos três vinténs) e seu fiel escudeiro Red Grant (Robert Shaw), homem treinado para matar e destituído de qualquer sentimento de humanidade ou compaixão. Precisa, no entanto, também, da ajuda de uma mulher (Daniela Bianchi), disciplinada soviética que trabalha na embaixada de seu país sediada na Turquia. Porque os ingleses também estão interessados nos segredos da União Soviética, a Spectre pensa contar com a colaboração involuntária deles, mas James Bond, convocado, entra em ação, desarma todo o esquema e, como é de praxe, leva a bela Daniela Bianchi para a sua alcova íntima.

A luta final, entre Lotte Lenya e Sean Connery é muito estimulante para aqueles que gostam do bom filme de ação (atualmente os filmes de ação, honradas as exceções de praxe, são rápidos e dentro da estética do videoclip, que resultam pobres e ruins).

François Truffaut escreveu, em seu extraordinário livro de entrevistas com Alfred Hitchcock, sobre a influência imensa de Intriga internacional (North by northwest, 1959) sobre todo o cinema do gênero thriller a partir dos anos 60, inclusive, disse ele, toda a série de James Bond, cuja estrutura narrativa é bastante influenciada pelo filme hitchcockiano. O que é verdadeiro.

Terence Young, o diretor, inspira-se em Intriga internacional. Vejam a luta no trem, por exemplo, entre Shaw e Connery. E mais: a textura da mise-en-scène advém da estrutura hitchcockiana de North by northwest.

Baseado em Ian Fleming, assim como todos Bonds-movies, Moscou contra 007 é, segundo penso, o melhor de toda a série, porque um thriller bem ajustado sem as novidades que viriam adornar os filmes posteriores.

O cinema político italiano dos anos 60 e 70



Lançado durante a 30 Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, O Cinema Político Italiano – Anos 60 e 70 é um livro de entrevistas com 15 realizadores importantes que determinaram a inclusão da política no tratamento temático das obras cinematográficas da época retratada. A edição é da Cosacnaify, editora que vem se destacando pelo enriquecimento da escassa bibliografia em relação ao cinema no Brasil – e para citar somente dois exemplos: as reedições dos fundamentais Hitchcock/Truffaut - uma entrevista de longa duração, feita pelo cineasta da Nouvelle Vague com o mestre do suspense, que se constitui não apenas numa rigorosa análise perfuratriz da filmografia hitchcockiana mas, e sobretudo, um dos mais importantes livros já publicados sobre o processo de criação cinematográfica, e a de O século do cinema, reunião dos escritos de Glauber Rocha desde o início de sua carreira como crítico nos jornais baianos até os últimos e explosivos ensaios polêmicos.

As entrevistas de O Cinema Político Italiano – Anos 60 e 70 foram realizadas por duas pesquisadoras italianas: Ângela Prudenzi e Elisa Resegotti. Ainda que o cinema politizado italiano seja um assunto ainda a explorar em língua portuguesa, nada existindo, a rigor, sobre o tema, as entrevistas contidas no livro em questão são, por assim dizer, um vol d’oiseaux sobre uma época tão efervescente e com tantos frutos. Não fossem os textos de José Carlos Avellar, que aborda a influência da cinematografia italiana enragé na latino americana da época, o de Leon Cakoff, que procura situar as fontes propiciadoras da eclosão da política no cinema, e um panorama assinado pelas próprias pesquisadoras, a publicação deixaria a desejar àqueles que porventura quisessem uma análise de mais fôlego sobre o cinema italiano que procurou fazer filmes nos quais a política e a denúncia social se situaram como o móvel do registro fílmico.

E a fortuna crítica que o livro contém, com textos (e bons) de Cakoff, Avellar, Patrick Seri, Póla Vartuck, Orlando L. Fassoni, Ely Azeredo, Luciano Ramos, Luiz Zanin Oricchio, e Valéria Wally?  Artigos escritos para jornais ao sabor das reprises dos filmes, mas não não ensaios, análises penetrantes na questão. Sobre ser escritos competentes, trabalhados por críticos consagrados, não oferecem, no entanto, um propósito investigativo sobre o cinema político que se quer analisado. Mas, de qualquer forma e de qualquer maneira, as ressalvas aqui postas não invalidam a contribuição – e a necessidade – de O Cinema Político Italiano – Anos 60 e 70, que é um trabalho, ainda que panorâmico, meritório e elucidativo de um momento importante da história do filme.

O livro foi lançado em 2006, ano da morte de um dos mais importantes autores do cinema político italiano, Gillo Pontecorvo, que não é entrevistado (talvez por estar já doente na época da colheita dos depoimentos). Pontecorvo, e que se faça aqui uma pequena homenagem, realizou dois filmes imprescindíveis na filmografia da cinematografia que se queria engajada: Queimada (1970), com Marlon Brando, visão quase didática, mas com força expressiva, de como o colonizador oprime o colonizado, e, principalmente A batalha de Argel (La Bataglia di Argeli, 1965), semidocumentário que retrata a luta pela libertação da Argélia do domíno francês. O filme tem uma poder impressionante de convencimento e Pontecorvo mistura a ficção com o documentário de tal forma que parecem indissociáveis.

Os entrevistados são Mario Monicelli (um dos maiores comediógrafos de seu país, entrevistado menos por sua obra completa, mas por causa de Os companheiros (I compagni, 1963), filme que causou frisson em toda a esquerda da época; dele, porém, entre outros, não se pode esquecer O incrível exército de Brancaleone e Os eternos desconhecidos), Dino Risi (não tão importante assim como cineasta enragé, abordando temas associados à política como um assunto qualquer a desenvolver), Francesco Rosi (talvez o mais brilhante e inovador de todos os cineastas do período), Bernardo Bertolucci, Vittorio Taviani (faltou colocar o nome de Paolo, pois Vittorio somente trabalha do lado do irmão, assim como os Irmãos Coen, os Irmãos Taviani - e, abrindo um parênteses já aberto, considero Aconteceu na primavera/Fiorile, dos Taviani, um dos mais belos filmes que já vi), Ettore Scola, Marco Bellochio, Elio Petri (de A classe operário vai ao paraíso/La classe operaria va in paradiso, 1972, Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita/Indagine su um cittadino al di sopra di ogni sospetto, 1970, Condenado pela máfia/A ciascuno di suo, 1966, os três com Gian Maria Volonté, que poderia ser considerado o ‘muso’ do cinema político italiano), Damiano Damiani, Giuliano Montaldo (famoso por Sacco e Vazzetti, mas realizador mediano), Carlo Lizzani, Vittorio De Seta, Ugo Pirro, Francesco Mazelli, e Florinda Bolkan (que pouco tem a dizer).

A fonte do cinema político italiano dos anos 60 e 70 é o neo-realismo italiano de Cezare Zavatti, Vittorio De Sica, Roberto Rosselini, entre outros. A cinematografia feita na Itália já se revelou como uma das maiores do mundo, com expoentes como Luchino Visconti, Federico Fellini, Michelangelo Antonioni. A origem do cinema moderno e, por extensão do cinema contemporâneo, se encontra nos filmes de Rossellini (principalmente Viagem à Itália/Viaggio in Itália, 1953, onde procede a uma espécie de desroteirização) e na desdramatização efetuada por Antonioni desde os anos 50 e mais notadamente na trilogia A aventura, A noite, O eclipse. Os cineastas italianos quebraram a narrativa clássica tradicional, moldada no esquema de David Wark Griffith (o realizador de O nascimento de uma nação, 1914, e Intolerância, 1916, considerado o pai da linguagem cinematográfica), estabelecendo um domínio anti-narrativo.

Além da lição neo-realista, havia, nos anos 60, uma efervescência muito grande em termos da procura de renovação da linguagem do filme, dando origem a surtos como a Nouvelle Vague, na França, Free Cinema, na Inglaterra, Cinema Novo, no Brasil, Cinema Underground Novaiorquino, etc. O cinema italiano do alvorecer da década de 60 já tinha abandonado quase o esquema neo-realista ou reciclado sua proposta. Havia as comédias, inúmeras, e, a partir de O bandido Giuliano/Salvatore Giuliano, 1961, de Francesco Rosi, dá-se o início dos filmes engajados, de denúncia, que fossem a fundo nas contradições da sociedade italiana, expondo-as algumas vezes como verdadeiras fraturas expostas.

Nesta particular, o realizador mais importante é Francesco Rosi, que, além de Salvatore Giuliano (não se pode desconhecer a dívida de Glauber Rocha com este filme, embora pouco citada). Rosi inovou o gênero (como de maneira imprópria está escrito na contra capa do livro), instituindo a interligação das fronteiras entre a ficção e o documentário, realizando obras ficcionais que se faziam parecer documentários. É o que se chamou de realidade reconstituída em filmes importantes (e inesquecíveis) como O caso Mattei (1971), com Gian Maria Volonté, o inédito no Brasil, mas aclamado no mundo inteiro, La mani sulla città (1963), sobre a destrutiva especulação imobiliária, Lucky Luciano (novamente com Volonté, em 1973), Cadáveres ilustres (Cadaveri eccelenti, 1976), que aborda a corrupção do judiciário italaino em denúncia de grande coragem, entre outros.

O cinema italiano, passado este período fértil, que vai até meados dos anos 70, entrou em crise, não resistindo às pressões da indústria cultural hollywoodiana. Com o desaparecimento dos grandes estetas (Visconti, Fellini, Antonioni), os italianos vivem da memória pretérita. O seu cinema político morreu – e de morte matada. Mas, também, há de se convir que os tempos são outros. Vive-se num mundo globalizado, individualista, consumista in extremis. Neste ponto, o aparecimento de um livro como O Cinema Político Italiano, além de servir como exemplo de uma época fervilhante de idéias e participação, na qual havia ainda o sonho, que não tinha acabado, feitas as ressalvas acima citadas, é obra que se lê com prazer e até com saudade.

07 junho 2011

"Les parapluies de Cherbourg", de Jacques Demy



O autor dessa proeza original - e única na história do cinema, o francês Jacques Demy, pertence à Nouvelle Vague mas pode ser considerado um cineasta atípico. Dá início a sua carreira com um curta, Le Sabotier de Val du Loire, em 1956, ao que se seguem outros três em anos sucessivos, entre eles, Le Bel Indiferent (O Belo Indiferente), inspirado no texto aclamado de Jean Cocteau. Em pleno auge do movimento - do qual participa com filmes e a amizade de Truffaut, Rohmer, Chabrol..., dirige o seu primeiro longa metragem, Lola, A Flor Proibida (Lola), revelando-se um dos talentos mais sugestivos do movimento.

Lola, iluminado pelo artista da luz Raoul Coutard - um dos principais diretores de fotografia da Nouvelle Vague, já anuncia, de certa forma, Os Guarda-Chuvas do Amor, pois todo ele é conduzido em ritmo de balé, com amor e humor, traduzindo com extremo lirismo as paisagens de Nantes. Georges Sadoul, historiador francês, enquadra Lola numa espécie de "neo-realismo poético", aproximando-o de As Damas do Bois de Bologne, do jansenista Robert Bresson. Para uma introdução na poética de Les Parapluies... é bom que se veja um pouco desta Lola, cujo personagem (Anouk Aimée), dançarina de cabaré em Nantes, cortejada sempre por um amigo de infância (Marc Michel), reencontra o seu amor perdido com o qual, há alguns anos, tivera um filho, e, neste reencontro, ela se casa com ele. Uma característica de quase todos os filmes demynianos: o encontro ra, dizem suas falas cantando ao ritmo dos arranjos belíssimos de Michel Legrand. Pode-se, no caso de Os Guarda-Chuvas do Amor, falar em co-autoria entre Demy e Legrand, tal a conjunção perfeita entre musicalidade e ação dramática. 

Catherine Deneuve em princípio de carreira - já tinha trabalhado com Roger Vadim antes de Demy - é a terna Geneviève que está noiva de Guy (Nino Castelnuovo), mas este, de repente, é convocado para a guerra da Argélia. Esperando o noivo voltar, ela se vê obrigada a confessar à mãe (Anne Vernon) que está grávida de Guy. O tempo passa. A mãe, desesperada, obriga a filha a se casar com um pretendente, Roland Cassard (Marc Michel), rico proprietário de uma loja de jóias. Ela, conformada, aceita. O tempo passa. Guy volta da guerra, ferido, procura Geneviève mas não a encontra. Sua tia Elisa está morta e, para não ficar sozinho, busca consolo em Madeleine (Ellen Farmer), uma mulher que cuidava de Elisa quando doente e que sempre o amou em silêncio.O tempo passa. Guy, já casado com Madeleine, abre um posto de gasolina na periferia de Cherbourg. Numa noite de Natal, Geneviève aparece, rica e charmosa, num reluzente carro de luxo, para colocar gasolina. Guy a vê e ambos tentam um diálogo mas nada mais têm a dizer.

Obra-prima, que reflete sobre a memória, a recordação, a nostalgia e a fugacidade do amor, Les Parapluies de Cherbourg, Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1964, derrotando, inclusive, Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, tem uma fábula que, à primeira vista e se exposta pela narrativa oral, pode parecer uma história destinada às revistas sentimentais. Jacques Demy, no entanto, com sua varinha mágica, com sua mise-en-scène original, transforma-a numa espécie de conto poético musicado que é experiência que transcende o musical cinematográfico clássico americano.

Os personagens, como numa ópera - mas o filme não é uma ópera, dizem suas falas cantando ao ritmo dos arranjos belíssimos de Michel Legrand. Pode-se, no caso de Os Guarda-Chuvas do Amor, falar em co-autoria entre Demy e Legrand, tal a conjunção perfeita entre musicalidade e ação dramática. Daí se dizer que Les Parapluies de Cherbourg é uma película que se estabelece como mise-en-musique. Assim como em outra obra excepcional - e pouco vista e apreciada - que é Duas Garotas Românticas (Les Demoiselles de Rochefort, 1966), com Catherine Deneuve e Françoise Dorleac - sua irmã que seria vítima, logo após a conclusão do filme, de trágico acidente.

O que torna Os Guarda-Chuvas do Amor uma obra de rara transcendência se encontra numa conjunção de fatores.Em primeiro lugar, a concepção da mise-en-scène de Demy, mas outros elementos ajudam a potencializar o encanto desse filme inesquecível: a deslumbrante fotografia de um artista que é Jean Rabier, que usa, aqui, a iluminação em função do tecido dramatúrgico; a cenografia de Bernard Evein, que utiliza fundos de papel pintado que estabelecem sutis acordes com os estados de ânimo dos personagens; e, claro, os diálogos todos cantados segundo as melodias do maestro Michel Legrand.

06 junho 2011

A singularidade poética de um cômico



O verdadeiro nome de Jacques Tati é Jacques Tatischeff. Nasceu em 9 de outubro de 1907 na pequena cidade de Le Pecq, Seine-et-Oise (agora Yvelines), França, e vem a desaparecer aos 72 anos, em Paris, em 4 de novembro de 1982. Seu pai, de origem russa, apesar de rude, deu-lhe a conhecer os grandes autores, principalmente os de sua nacionalidade (Dostoievski, Tolstoi, Tchecov...), e sua mãe, francesa, ainda que uma causer instintiva, que fez povoar, com suas histórias, a imaginação do menino Tati, era, no entanto, como habitual na sua época, pessoa dedicada aos serviços do lar. A juventude, passou-a, preocupado com o rugby, do qual se tornou campeão em sua cidade. Os primeiros filmes que viu foram aqueles da estética da arte muda, pois o cinema somente viera a falar a partir de 1927. Mas, desde cedo, encantou-se com os filmes cômicos de Mack Sennett, Harold Lloyd, Max Linder, e, principalmente, de Charles Chaplin. O que mais apreciava, a pantomima, começou a desenvolvê-la ainda em casa diante do espelho.
 

Aos 26 anos, em 1933, dá-se a conhecer num music-hall repleto de originais números inventados por ele de pantomima esportiva. Do palco pula para o cinema, a princípio como roteirista e como ator em uma série de curtas metragens: Soigne ton gauche (1936), de René Clement (que viria a ser um competente e requisitado diretor do cinema francês - Brinquedo proibido/Jeux interdits) e  L'École des facteurs (1947), entre outros. Desempenha, em filmes alheios, vários papéis, entre os quais em Adúltera (Le diable au corps, 1947), de Claude Autant Lara e, em 1949, decide realizar os seus próprios filmes, e o primeiro deles, obra de estréia no longa (antes fizera um curta: L’école des facteurs, 46), é Carrossel da esperança (Jour de fête), uma fantasia sobre as andanças de um carteiro rural. A singularidade de sua poética original já desperta a atenção da crítica especializada.

Tati, neste filme, é François, um carteiro de uma pequena cidade que, muito prestativo, ajuda na montagem de um parque de diversões que inclui um cinema ambulante. Ainda não aparece como Monsieur Hulot com a capa inseparável e o cachimbo sempre presente, que iria personificar a partir de sua segunda obra em diante. Com o cinema ambulante instalado, o curioso carteiro assiste, nele, um documentário sobre o sistema postal mecanizado em funcionamento nos Estados Unidos e fica impressionado. Determinado a aumentar a velocidade da entrega das correspondências, inspira-se no exemplo norte-americano e, com a ajuda de sua bicicleta, consegue imprimir a seu trabalho um ritmo surpreendente. O aumento de velocidade, no entanto, vem a provocar inúmeras confusões e, delas, Tati tira o espírito de sua comédia. Que foi filmada originalmente em película colorida em 1947, mas, com um atraso de dois anos entre a produção e a exibição, foi lançada em Paris em 1949, e em preto-e-branco. Tati, em 1961, desgostoso com o resultado sem as cores, decidiu ele mesmo colori-la à mão. A restauração, contudo, somente aconteceu mais de dez anos depois de sua morte, em 1995, tal como o cineasta a planejara. Jour de fête não tem diálogos, apenas música e efeitos sonoros. No elenco, além de Tati, Guy Decomble, Paul Frankeur, Santa Relli. O roteiro, escrito pelo autor e pelo colaborador Henri Marquet. Carrossel da esperança restaurado chegou a ser exibido em Salvador numa sala alternativa, que ficou às moscas durante a semana de sua projeção.

As férias do Sr. Hulot (Les vacances de Monsieur Hulot, 1953), no entanto, foi o filme que o consagrou. Brilhante sátira do conformismo e da mediocridade dos veranistas franceses, apresenta pela primeira vez o personagem Monsieur Hulot, indivíduo ingênuo e inquietante criado com notável fantasia poética, que se converteu no descendente direto de Max Linder e, sobretudo, de Buster Keaton. Monsieur Hulot vai passar as férias numa pequena praia bretã, onde corteja, de muito longe, uma jovem (Michèlle Rolla). Entre as cenas mais engraçadas, estão aquelas que apresentam Hulot, cachimbo na boca, a dirigir seu carrinho Hamilcar modelo 1924; a sua chegada a uma pensão familiar, que provoca estranhezas; seu quarto sob o teto; a canoa desmontável que se infla no mar; a irrupção de Hulot, de carro, num cemitério, durante um enterro; o baile de máscara onde, fantasiado de corsário, corteja timidamente uma moça; Hulot, perseguido pelos cachorros, refugia-se numa cabana e causa uma explosão de fotos de artifício; o fim melancólico das férias.

O historiador francês Georges Sadoul fez observar, em seu imprescindível Dicionário de Cinema (L&PM), que "a trilha sonora, muito bem cuidada, foi ainda mais aperfeiçoada na nova versão de 1961. As palavras em Les vacances de Monsieur Hulot são encaradas como ruídos, e o seu sentido direto quase que não tem importância, pois o herói pronuncia apenas uma única: Hulot"

Grande Prêmio da Crítica Internacional do Festival de Cannes em 1953, Les vacances de Monsieur Hulot surpreendeu, pela sua singularidade poética, pela maneira original de apresentar com graça as situações cômicas, pela sátira devastadora, os mais importantes críticos que estavam presentes ao evento. André Bazin, considerado um dos mais respeitados exegetas cinematográficos de todos os tempos, chegou a exclamar: "Trata-se não só da obra cômica mais importante do cinema mundial desde os Irmãos Marx e W. C. Fields, mas de um acontecimento na história do cinema falado." E Geneviève Agel acrescentou: "Mais tarde, virá a dizer-se antes ou depois de Hulot". O filme, durante os anos 50 e 60, foi presença constante nas programações dos cineclubes pelo Brasil afora e recebeu críticas elogiosas dos grandes ensaístas brasileiros, a exemplo do que escreveu Paulo Emílio Salles Gomes (Suplemento Cultural do Estado de São Paulo), Francisco Luiz de Almedia Salles, Alex Viany, Walter da Silveira, entre outros.

Este último, num ensaio publicado em Fronteiras do cinema (Tempo Brasileiro, 1966), destacou a estética tatiana num trecho de seu copioso escrito sobre o cômico: "Para realçar sua concepção moral sobre os inúteis e os transitórios que se esforçam por uma sobrevivência a que não têm direito, Tati utiliza, ao modo de Chaplin, um mínimo de primeiros planos e de movimentos de câmera: bastam-lhe os planos médios fixos. E tão mordaz se apresenta neste agudo despojamento técnico que, além de não se importar com uma boa continuidade aparente, passando de uma seqüência para outra com fusões ou cortes que pareceriam primitivos aos menos avisados, ainda insiste, numa ironia quase gratuita num temperamento tão simplificador, em mover a câmera com o ar desajeitado de um automóvel que, mal conduzido, se aproximasse de outro".

Cinco anos se passaram entre Les vacances de Monsieur Hulot e Mon oncle (Meu tio, 1958), que está a se comemorar os cinqüenta anos de sua realização. Jacques Tati é um realizador de poucos filmes por duas razões: gostava de elaborá-los, pacientemente, a fazer e a desfazer roteiros, tendo, como conseqüência, uma depuração expressiva cada vez maior, e não era fácil arranjar recursos para a produção deles. Engenhosa sátira à sociedade moderna, que amplia a visão satírica do filme precedente, sociedade moderna vítima de um maquinismo e de um funcionalismo cujas possibilidades não soube explorar, Mon oncle seria a quintessência do universo ficcional tatiano se dez anos depois não fizesse Playtime (1965/1967), talvez a sua obra-prima.



(Lembro-me que vi, menino, Meu tio, no já desaparecido cinema Capri, que ficava no Largo 2 de Julho. A impressão do garoto que era foi a de um filme esquisito, com alguns momentos que ficaram para sempre na memória: os cães a vadiar pelo terreno baldio, com tomadas demoradas, a casa funcional mas inoperante e a figura alta, esquisita, de Monsieur Hulot. Na segunda metade dos anos 60, viPlaytime, uma produção de grandes recursos, exibida no Tupy, no formato gigantesco da bitola de 70mm. O impacto de Playtime, neste formato desaparecido, e porque filmado nele, desapareceu das cópias porventura existentes em DVD ou “baixadas da internet”)

Em Mon oncle, Hulot (Jacques Tati, evidentemente) mora num velho apartamento num bairro parisiense tranqüilo, e seu sobrinho (Alain Bécourt), com os pais, os Arpel (J.P. Zola e Adrienne Servantie), numa casa ultra moderna, funcional, cheia de apetrechos mecanizados. Tati realiza, aqui, o contraste entre estes ricos burgueses e um bom rapaz boêmio a quem querem fazer trabalhar numa fábrica.

Há momentos antológicos e memoráveis, que ficam na mente do espectador depois do filme visto. A saída do Sr. Arpel de carro para a fábrica de plástico é plena de engenhosidade na confecção do gag audiovisual. Assim como outras: Hulot a subir para a sua bizarra moradia, e a fazer compras no velho bairro, suas imperícias na fábrica, a tarde passada no jardim geométrico dos Arpel, a chegada da vizinha afetada, etc. Meu tio é uma sátira não ao modernismo, mas aos burgueses que se consideram modernos. “O que me irrita, disse Tati quando do lançamento de Mon oncle, não é o fato de se construírem imóveis novos, que são necessários, mas casernas. Não gosto de ser mobilizado, não gosto de mecanização. Defendi o pequeno bairro, o canto tranqüilo contra as auto-estradas, aeroportos, organização, uma forma de vida moderna, pois não creio que as linhas geométricas tornem as pessoas amáveis. Para mim, deve-se revalorizar a gentileza pela defesa do indivíduo, numa ótica finalmente otimista”.


Segundo o crítico Francisco Luiz de Almeida Salles, (O Estado de S. Paulo, 28 de junho de 1959), “A obsessão em fazer do cômico um dado da realidade contingente leva Tati a procurar um máximo de ambientação para sua personagem. Daí a técnica de repetição de incidentes e pormenores. O portão da casa dos Arpel, em Mon oncle, abre-se dezenas de vezes, o peixe-repuxo funciona com uma insistência obsedante, e essa repetição, em vez de naturalizar a realidade, dá um ar de desvario ao mundo de Hulot, artificializando-o por excesso de precisão, como acontece na realidade onírica.”

A preparação para o próximo filme,  Playtime, foi longa: sete anos e mais dois de filmagem (1965/67). Trata-se de sua película mais custosa, quase uma superprodução. Nela, há uma profunda observação sobre o comportamento humano e, em particular, de um grupo de turistas americanos que chega ao aeroporto de Orly e se espanta ao verificar que Paris, com seus edifícios e suas ruas, é exatamente igual às suas cidades de origem. Mr. Hulot chega a um novo prédio para tratar de negócios e se deixa extasiar com a complexidade da construção, sendo mesmo envolvido por uma exposição de equipamentos modernos, a que também assistem os turistas. Hulot e os americanos voltam a se encontrar na noite de inauguração da buate Royal Garden, ainda em fase de acabamento. As confusões se sucedem e, de madrugada, no fim da festa, Hulot oferece um presente a uma jovem americana, que parte, então, com os demais turistas de volta a Orly.

Assim narrado, não se pode ter nem sequer uma idéia do que é, na verdade,Playtime, pois puro cinema. Como disse André Bazin, quanto mais fácil seja contar verbalmente um filme, menos cinematográfico ele é, mas quanto mais difícil seja contá-lo verbalmente, mais cinematográfico ele é. Como em As férias do Sr. Hulot, mais porém do que em Carrossel da esperança e Meu tio, Tati ignora as regras do timing e da intensificação dramática. Na primeira das duas grandes seqüências de que se compõe Playtime, o grupo de turistas americanos em Paris toma contato com o labirinto de buildings, se espantando ao ver que a cidade, nas suas linhas e formas, é exatamente igual àquelas que deixaram ao partir. Na segunda parte, todos visitam o Royal Garden, uma buate em que, ao receber os primeiros fregueses em sua noitada inaugural, ainda não está totalmente pronta, com os garçons e maître dando os retoques finais. Aí, novamente, Tati explora às últimas conseqüências as possibilidades da câmera e a sua análise pormenorizada do comportamento humano. A sequência da buate, que figura entre as mais admiráveis já concebidas em toda a história do cinema, exemplifica o depuramento do burlesco tatiano. O gag dá sempre a impressão de estacionar antes de seu ponto de irrupção – como um gag em suspense ou, mais precisamente, uma decepção do gag. Tati leva a imaginação do espectador à expectativa do riso – e não estaria nisso uma verdadeira invenção?

Em 1971, filma o seu canto de cisne, Trafic, no qual se despede da figura de Monsieur Hulot. Em 74, sem dinheiro, um circus performer chamado Paradise num estranho formato de vídeo-scope. O grande cômico morre pobre e esquecido em 1982
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05 junho 2011

Robert Altman: humor ácido e requintado


Em inícios dos anos 70, a comédia americana - que teve seu apogeu nos anos 30, 40 e 50, a Idade de Ouro de Hollywood - dava mostras de esgotamento, principalmente por causa da aposentadoria de alguns de seus próceres, e os que ainda a continuavam não conseguiam renová-la. É neste despertar dos 70 que aparece no panorama internacional uma comédia diferente, satírica, ácida, irreverente: M.A.S.H., de Robert Altman. Localizada a ação na Guerra da Coréia, tem uma clara referência à do Vietnã que então se encontra no auge e no clamor dos protestos da sociedade americana. Conta a película a vida de soldados no front bélico, onde dois cirurgiões (Elliot Gould e Donald Sutherland) fazem o diabo para costurar os feridos. Tudo feito na base da anarquia criativa, com um dinamismo estrutural, rapidez de diálogos, que muitos críticos consideram que, neste filme, há uma renovação na comediografia cinematográfica. Sally Kellerman se revela como a oficial séria e ríspida que tem sua cortina devassada quando toma banho numa sequência memorável.
Altman, por M.A.S.H., e apenas por este, se torna, logo, um cult de uma hora para outra, ainda que já com uma filmografia cujo início se dá muito antes, em 1957, com Os Delinqüentes (The Delinquents) e, neste mesmo ano, The James Dean Story, um documentário sobre o mito que há poucos anos tinha sido vitima de um acidente automobilístico. Os produtores não gostam de Os Delinqüentes e, quanto ao documentário, não o consideram palatável comercialmente. De pires na mão, Altman procura um produtor - naquela época não se usava a famigerada captação de recursos - e, desempregado, custa a arranjar, e mesmo assim na televisão, um emprego como diretor de fitinhas sem importância - que os críticos franceses, dando uma busca nos arquivos televisivos, conseguem encontrar, nestas fitinhas, o touch altmaniano.
Dez anos se passam até que Altman encontra um produtor com mania de risco, de investir em projetos condenados. E realiza No Assombroso Mundo da Lua (Countdown, 1968), ficção-científica que rende alguns trocados na bilheteria e faz os produtores acreditarem que Altman era diferente e, assim, deviam lhe dar uma segunda chance. Esta foi um sucesso, ainda que relativo de público, mas entusiasmado da crítica: Uma Mulher Diferente (That Cold Day in the Park, 1969), um thriller de extremado rigor sobre a solidão de uma mulher (Sandy Dennis) numa grande cidade (Nova York). Filme marcante, com uma mise-en-scène baseada nos acordes musicais e no silêncio. A seguir, o estrondo de "M.A.S.H."
Espera o diretor quarenta e cinco anos para se ver reconhecido como cineasta (nasce em 1925, morre em 2006, aos 81). Após a sátira devastadora sobre o Vietnã travestido de Coréia, os produtores começam a lhe oferecer projetos. Altman, como sempre muito exigente e muito à margem do sistema hollywoodiano, procura construir uma carreira de autor. Tem tanta presença a sua assinatura que mesmo quando pega um roteiro alheio, e do qual não gosta, o resultado é sempre um filme de Robert Altman. O que constrói o cineasta após M.A.S.H.? A resposta vem no mesmo ano: Voar é com os pássaros (Brewster McCloud), com Bud Cort - o menino que contracena com Ruth Gordon em Ensina-me a Viver. Fracasso. Humor sofisticado demais. Um garoto tem o desejo de voar como Ícaro. E parte para a ação num aparelho de madeira complicado. Apesar de rejeitado pelo público, é um grande filme, difícil, é verdade, pois de configuração diferente dos padrões de Hollywood. Em seguida, Quando os Homens São Homens (Mc Cabe and Mrs Miller, 1971), com Warren Beatty e Julie Christie, um anti-western, pois sem a essência do gênero, o conflito em movimento. Altman opta pela inação, e, ainda por cima, numa paisagem cheia de neve. Outro fracasso. Mas a crítica recebe os filmes de braços abertos. E os produtores arrancam os cabelos de raiva.
Mostra ser um cineasta temperamental, difícil, incapaz de se dobrar às solicitações de uma platéia convencional. Os filmes seguintes dão ao realizador um passaporte para a rua da amargura. Imagens (Images, 1972), reavaliação do terror como componente do "impulso cinemático", com Suzannah York, e após este, um estudo crítico de gêneros, desmistificando-os como fórmulas: o filme noir em Um perigoso adeus (The long goodbye, 1973), com Elliot Gould, e o thriller com a tônica no gangsterismo em Renegados até a última rajada (Thieves like us, 1974), com Keith Carradine. Desse modo, a revisão de gêneros, que a chamada pós-modernidade se apodera, tem em Altman um precursor.
Um estilo que se caracteriza pela preocupação em desmontar a lógica que precede o discurso cinematográfico, subvertendo, sempre, o diapasão de seu itinerário. A grande arma de Altman é o humor, ácido, por vezes cruel, mas sempre refinado, requintado, um humor para o sorriso interior, mas, quase nunca, para a explosão de gargalhadas - exceto em M.A.S.H. Sua linguagem se concentra num "texto" e num "subtexto", em tons e subtons. Altman, definitivamente, não pode ser admirado pela horda selvagem multiplexiana, pela patuléia que comanda o espetáculo de horror - que é ir a uma matinê numa das salas dos complexos dominantes.
Por causa dos apupos da crítica, um produtor, que não tem medo de negócios arriscados, banca Altman. E, ainda em 1974, faz Jogando com a sorte (Califórnia split), com Elliot Gould, ator preferido na época, e George Segall, uma viagem altmaniana sobre os deserdados da sorte e a "feérie" da jogatina. Mas até o produtor, que lhe banca os filmes, quis dar o fora, pois o dinheiro investido não retorna a contento. Mas Altman arranjou produção e, num golpe de sorte, acerta em Nashville (1976), que muitos consideram sua obra-prima. Retrato da América, o filme se concentra num festival de música country.
Segue outro anti-western, com Paul Newman: Oeste Selvagem (Buffalo Bill and the indians or Sittings Bull's history lesson, 1976), celebrado em Berlim. O sucesso de Nashville compensa as perdas internacionais. Sittings Bull é outra desmistificação, desta vez do heroísmo de Buffalo Bill, tão cultuado nos Estados Unidos, mostrando-o como um homem de caráter duvidoso e comportamento ambíguo. A paisagem do oeste, selvagem, como diz o título original, e a ausência total de uma "clicheria" não contentam os amantes do gênero.
Um estudo da alma feminina feita com sensibilidade e emoção neste filme que considero um de meus preferidos do realizador de "Assassinato em Godsford Park". Janice Rule, Sissy Spacek e Shelley Duvall estão inexcedíveis como as personagens de "Três mulheres" ("Three Women", 1977), criaturas atormentadas pela angústia do existir e que se debatem no inferno de suas existências. Obra rara e severa, mas difícil de encontrar para uma revisão.
O espaço chegando ao fim e eu, aqui, ainda com Altman na década de 70. Que fazer? É dizer logo que Cerimônia de casamento (A Wedding, 1978), afresco notável sobre os comportamentos hipócritas numa festa de casamento burguesa, é um sucesso. Elenco fabuloso, que inclui Vittorio Gassman e Lillian Gish e Carol Burnett. Nunca a burguesia é tão bem radiografada quanto neste A Wedding. Grande filme, mas também assinala o começo de sua decadência nos anos 80 cuja reabilitação somente se dá em 1992 com O Jogador (The Player). Se em 1970 tem início o culto a Altman, 1980 assinala a sua descida ao inferno com Popeye, com Robin Williams e a magricela Shelley Duvall como Olívia. Os produtores são, literalmente, enganados. Ao invés de um filme para agradar as platéias populares, Altman prefere a caricatura, a desmistificação - como sempre o olhar irônico, o riso que se multifaceta nas entrelinhas. O público quer gargalhar com Williams no papel de Popeye e se depara, sem entender nada, a piada oculta.
Antes deste elabora um filme que particularmente não gosto, Quinteto (Quintet, 1979), com Paul Newman, novamente, e também trazendo de volta Gassman - cujo desempenho em A Wedding deixa Altman entusiasmado. Um Casal Perfeito (A Perfect Couple) é simpático, mas sem o brilhantismo habitual. E com o afundamento de Popeye as portas se cerram para o realizador. Realiza o que quer, no entanto, nos anos 70, e somente por esta safra o título de grande cineasta já lhe poderia ser dado.
Enfraquecido, sem crédito, Robert Altman desaparece de circulação. Nenhum filme seu estréia mais no circuito. Aos poucos, na década de 80, vai sendo substituído no culto por outros realizadores, como Wim Wenders. A maior parte dos filmes que o diretor de Godsford Park faz nesta década nada prodigiosa para ele não foi distribuída no Brasil, como, por exemplo, Come back to the Five and dime, Jimmy Dean, com Karen Black - que fim levou essa atriz? e Cher, e Além da terapia (Beyond therapy, 1986), com Glenda Jackson e Tom Conti, sátira à psicanálise, ou Fool for love (1985), com Sam Shepard e Kim Bassinger. O único Altmam com alguma notoriedade nos 80 é O exército inútil (Streamers, 1983), por causa de prêmio internacional dado a todo o elenco na categoria "melhor ator". Baseado em peca teatral, segue ao pé da letra as torrentes verbais, constituindo-se quase que num teatro filmado desenvolvido em planos-sequências e movimentos de câmera inteligentemente manipulados.
Finalmente, os anos 90 lhe abrem novamente as portas: O Jogador, Short Cuts (este, uma obra-prima), Prêt À Porter, Kansas City, A Fortuna de Cookie, o admirável O Assassinato em Godsford Park, e A última noite, seu canto de cisne. A sua narrativa polifônica marca época e influencia uma geração de cineastas, principalmente a encontrada em Nashville e Short Cuts.
Meu melhor Altman continua sendo Short Cuts.