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27 agosto 2013

Um pouco de François Truffaut

Ao contrário do cinema de seus companheiros da Nouvelle Vague – Godard, Rohmer, Chabrol, Rivette, Resnais…-, racionalista e cerebral, o de François Truffaut é feito com a emoção e o coração, com extrema sensibilidade e uma simpatia incomum pelos seus personagens, que são tratados com ternura, generosidade e afeto. O crítico ferrenho, radical, intransigente, das revistas Cahiers du Cinema e Arts et Spetacules, que ataca em seus escritos o cinema clássico francês e o realismo psicológico de acadêmicos como Claude Autant Lara, Julien Duvivier, entre outros, sofre uma espécie de metamorfose quando passa a realizar filmes, transformando-se num cineasta terno e amável.
Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, cuja tradução literal é Os Quatrocentos Golpes), além de inaugurar a Nouvelle Vague – juntamente com Acossado, de Godard, Hiroshima, de Resnais… -, dá início à carreira de Truffaut como realizador de longas. E, neste 2009, a distância deste filme é de exatos 50 anos. Aqui também começa o ciclo dedicado a Antoine Doinel (sempre interpretado por Jean Pierre Léaud), um personagem com evidentes elementos autobiográficos, através do qual aborda o rito de passagem da infância à idade adulta. É a nostalgia da adolescência que Truffaut reflete nos filmes do ciclo Doinel, a fugacidade do tempo e a ânsia de amar, a chegada à idade adulta, o casamento… (Antoine et Colette, 1982, episódio de O Amor aos Vinte Anos/L'Amour a vints ans; Beijos Proibidos/Baisers Volés, 1968, Domicílio Conjugal/Domicile Conjugal, 1970, e; Amor em Fuga/L'Amour en Fuite, 1978).
(Em Os Incompreendidos, Truffaut, avant la lettre, considerando a época, alude à Nouvelle Vague e a seu amigo e colega Jacques Rivette, quando os pais de Antoine – que, por sinal, nos outros filmes do ciclo estão sempre 'indo ao cinema' – decidem ir ver Paris Nous Appartient, de Rivette, filme emblemático, apesar de pouco conhecido do movimento francês, e, de volta, no automóvel, consideram-no 'muito bom' – melhor homenagem impossível).
Romântico, sem, contudo, abandonar a visão irônica e dolorosa das relações afetivas, Truffaut tem a sua obra-prima já na terceira incursão longametragista: Uma Mulher para Dois/ Jules et Jim (1961), crônica de uma relação triangular (Oskar Werner, Jeanne Moreau…) baseada no texto literário de Henri Pierre Roché, autor que lhe serviria de inspiração para realizar, dez anos depois, abordando a mesma temática da dificuldade de amar, As Duas Inglesas e o Continente/ Les Deux Anglaises et le Continent (1971). O problema da comunicação no amor, aliás, do amor impossível,en fuite, é uma constante na filmografia de Truffaut, como revelam A História de Adele H/ L'Histoire de Adele H (1976), com Isabelle Adjani, A Mulher do Lado/ La Femme de la Cote (1981), entre outros.
Se seus colegas da Nouvelle Vague procuram elaborar uma linguagem que desconstrói o discurso cinematográfico tradicional, revertendo os cânones da lei de progressão dramática griffithiana, François Truffaut não pretende nunca em seus filmes dissolver a estrutura lingüística, mas, ao contrário, busca desesperadamente a fluência narrativa, o toque mágico capaz de envolver o espectador a fazê-lo pensar que não está no mundo. É verdade que brinca com a metalinguagem, mas num sentido de reverência e ao cinema como em A Noite Americana/ La Nuit Americaine (1973), belíssima homenagem ao processo de criação cinematográfica onde Truffaut comparece como ele mesmo no papel de um diretor que faz um filme. O filme dentro do filme, portanto.
Outra vertente temática na obra truffautiana é a dominante policial, influência, na certa, de sua admiração por Alfred Hitchcock – seu livro de entrevista com este, Hitchcock/Truffaut, da Brasiliense (e, agora, em outra edição pela Companhia das Letras), é, simplesmente, uma aula magna de cinema. Há Hitchcock em Fareinheit 451 (1966), que faz na Inglaterra, com o mesmo Oskar Werner de Jules et Jim, baseado na ficção-científica de Ray Bradbury. Outra obra alusiva ao mestre é A Noiva Estava de Preto/ La Mariée Était em Noir (1967), com Jeanne Moreau ou, mesmo, Tirez sur le Pianiste, segundo filme (1960), e A Sereia do Mississipi/ La Sirene du Mississipi (1969), no qual declara, através das imagens em movimento, a sua paixão momentânea, Catherine Deneuve, que trabalha, aqui, ao lado de Jean Paul Belmondo. E no seu canto de cisne De Repente num Domingo/ Vivement Dimanche (1984), cujo 'claro/escuro', proposital, vem em auxílio de uma proposta estilística em função do film noir francês. Sem esquecer o elaborado, como mise-en-scène, Um só pecado (Le peau douce, 1963).
Autor, porque dono de um estilo próprio, marcante, ainda que com um universo temático diversificado, François Truffaut, na sua filmografia, envereda por assuntos diversos, a exemplo de O Garoto Selvagem/ L'Enfant Sauvage (1970), filme sobre a luta de um médico, no século XIX, para 'domar', um menino bárbaro criado sem contato com a civilização – influência possível para Werner Herzog em O Enigma de Kaspar HauserNa Idade da Inocência/ L'Argent de Poche (1976), experiência na qual, repetindo Jean Vigo (Zero de Conduite), o universo que retrata é constituído somente de crianças. Sem esquecer O Último Metrô/ Le Dernier Metro (1980), uma volta ao passado, Segunda Guerra Mundial na França ocupada, para valorizar, numa situação-limite, a importância dos pequenos gestos.
Em todos os filmes de François Truffaut, um denominador comum: a narrativa que sobrepuja a fábula, a doce fabulação que advém de um sentido preciso de mise-en-scène, o touch truffautiano, sempre terno, apaixonado, capaz de levar ao espectador o prazer do autor com o que está a filmar e o prazer, imenso, de se assistir ao que se está a ver.

25 agosto 2013

Sobre a minha trajetória


Comecei a escrever comentários sobre cinema de maneira mais sistemática em agosto de 1974, quando fui contratado pelo jornal Tribuna da Bahia para uma coluna diária sobre os lançamentos dos filmes em exibição na cidade. Tinha, nesta ocasião, 24 anos, mas, antes, já escrevia acerca das coisas da sétima arte bissextamente no suplemento cultural, de papel azul, do Jornal da Bahia, e uma experiência no Jornal da Cidade, uma publicação que saía aos domingos e que dedicava uma página inteira ao cinema. De tipo tablóide, o Jornal da Cidade, que não teve vida longa, significou, na verdade, a minha estréia como comentarista.

Na Tribuna da Bahia, entre 1974 e 1994, vinte anos, portanto, tive uma coluna diária, de sol a sol, inclusive quando, nos anos 80, foi implantada uma edição aos domingos. A partir de meados dos anos 90, por injunções jornalísticas internas e, também, pela indisposição com o cinema contemporâneo, que já dava sinais de esgotamento, passei a escrever apenas uma vez por semana.

Assim, a tomar como ponto de partida o ano de 1974, tenho 34 anos como colunista de cinema na Tribuna da Bahia. Mas, durante estas décadas, publiquei textos em revistas e outras jornais. De vez em quando, no suplemento cultural de A Tarde, na extinta Revista da Bahia, e, entre outros trabalhos, elaborei alguns verbetes para a Enciclopédia do Cinema Brasileiro (organizada por Fernão Ramos e Luiz Felipe Miranda para a editora do Senac), entre outras publicações e participações em eventos e seminários vinculados ao estudo da arte do filme. Em 1979, ingressei, como professor da área de cinema, na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, que ainda se chamava Escola de Biblioteconomia e Comunicação, a reunir, num único prédio, os dois departamentos.

O cinema, disse uma vez Orson Welles, morreu em 1962, e seu último filme foi O homem que matou o facínora (The man who shoot Liberty Valance), de John Ford. O realizador de Cidadão Kane falou isso a Peter Bogdanovich, que o entrevistava para um livro. Espantado com a resposta, Welles disse que o apogeu do cinema vai de 1912 até 1962, cinqüenta anos. E acrescentou: um apogeu maior que a Renascença, que teve apenas trinta e oito anos. O cinema, portanto, para Welles, a partir de 1962, entra numa fase de perigeu. O que concordo plenamente.

Acontece que se o cinema teve a sua primeira projeção oficial em 28 de dezembro de 1895, no Grand Café do Boulevard des Capucines, em Paris, e os seus inventores proclamados foram os Irmãos Lumière, ainda que muitos pesquisadores em outros países estivessem prestes a conseguir a projeção de filmes, o fato é que a linguagem cinematográfica ainda não havia sido descoberta. Havia o cinema sido inventado, e a possibilidade de se projetar, numa superfície plana, imagens em movimento. Mas tudo era registrado com a câmera parada, plano fixo, não se sabia que ela poderia se movimentar. A descoberta dos elementos determinantes da linguagem cinematográfica foi sendo feita aos poucos. Assim, o americano David Wark Griffith, em 1914/1915, considerado o pai da narrativa cinematográfica, é o realizador que soube reunir e sistematizar, com eficiência dramática, os elementos da linguagem que foram sendo inventados entre 1895 e 1915, vinte anos, portanto, para a construção de uma linguagem.

Se Griffith, com O nascimento de uma nação (The birth of a nation, 1914), e Intolerância (Intolerance, 1916), contribui com um impulso importante para o desenvolvimento da narrativa, a linguagem, no entanto, ainda tinha muito o que conquistar. Pode-se dizer que a linguagem cinematográfica foi sendo enriquecida e construída durante a primeira metade do século passado e que adquiriu, por assim dizer, uma cristalização em meados dos anos 60 ou, como quer Orson Welles, em 1962.

A era dos grandes inventores de fórmulas, dos grandes inventores do cinema, já acabou. Atualmente o cineasta se utiliza de uma linguagem já configurada e resta, a ele, articular os seus elementos com remota possibilidade de inventá-la. Ou reinventá-la como fez Jean-Luc Godard, na prodigiosa década de 60, em Acossado (A bout de soufflle), Uma mulher é uma mulher (Une femme est une femme), O demonio das onzes horas (Pierrot, le fou), entre outros, ou Alain Resnais em Hiroshima, mon amour e O ano passado em Marienbad. Alguns ensaístas da arte do filme chegam a dizer que este último é, a rigor, o derradeiro filme de invenção da história do cinema.

O cinema perdeu o seu status político. Com a crise dos anos 70, a perda de público para as outras opções de lazer, e a descoberta do filão infanto-juvenil por Hollywood, o cinema se infantilizou tematicamente. Os filmes atuais oriundos da indústria cultural são obras quase matemáticas na construção de seus sentidos e de seus efeitos. Os personagens, destituídos, de alma, são como títeres ou marionetes movidos pelo ritmo da ação.

Se, antigamente, ia ao cinema todos os dias, hoje sou muito seletivo. Vou de vez em quando para ver obras de algum realizador que venha a me interessar. Mas nunca com a constância do passado. A crise, patente, se reflete, creio, em todas as artes.

Se encontrasse, jovem, quando iniciei a minha carreira de comentarista, o cinema que se vê atualmente, não teria sido um escrevinhador das coisas da sétima arte. O cinema contemporâneo é medíocre demais para atrair pessoas e as tornar fiéis, criar a habitualidade, a cinefilia. Até o jornalismo cultural, que tinha alguma substância, vive atualmente muito restrito (quando existe) sem a disponibilidade para acolher textos copiosos. Tudo é feito através de colunas curtas, que sejam rapidamente absorvidas. Há quem disse que a nova geração não lê, mas escaneia com os olhos.

A decadência dos grandes suplementos culturais, e a emergência do império do audiovisual, determinaram a falência da crítica de cinema impressa. Com as exceções de alguns (raros e poucos) críticos (e que podem assim ser chamados) do sul do país, a crítica cinematográfica praticamente desapareceu dos jornais diários. Mas, por outro lado, ela está a se frutificar na internet, com a explosão dos blogs, dos sites, que acolhem verdadeiras revistas eletrônicas de cinema.

Mas o que se pode observar, sempre se tendo em vista as exceções de praxe, é que o chamado crítico de cinema que atua no espaço virtual se caracteriza por um fervor excessivo pelo cinema, uma espécie assim de cedeefismo pelo objeto. Se, por um lado, demonstra conhecimento do assunto que aborda, por outro lhe falta uma cultura humanística, uma visão crítica do mundo, um background. O sujeito deixou de ser importante nas últimas décadas para dar lugar ao estudo das estruturas.

Existem, grosso modo, quatro tipos de críticos de cinema: o ensaísta, que se caracteriza pela erudição e desenvolve sua análise do filme com os recursos de sua memória, a realizar um discurso sobre um objeto determinado, mas livre para o exercício de seu pensamento sem a camisa-de-força da metodologia acadêmica; o ensaísta deve ter sempre uma visão de mundo e uma visão de cinema; já o crítico propriamente dito possui uma maneira própria de fazer a sua exegese, a apresentar, sempre, um conhecimento da arte do filme em sua linguagem e em sua estética; o comentarista é aquele que discorre sobre a obra cinematográfica segundo as suas impressões; o resenhista, por sua vez, é apenas um orientador como guia de consumo.

Sobre poderem contribuir para o enriquecimento do pensamento cinematográfico, as dissertações e teses acadêmicas estão presas à já citada camisa-de-força metodológica. Se o analista tem bagagem, o estudo tem valor, mas, caso contrário, amarga ao leitor o desprazer do acompanhamento de suas linhas. As dissertações e teses, contudo, não se configuram como críticas de filmes, e se apresentam mais como estudos analíticos de determinados aspectos do filme ou deste em relação a alguma abordagem sociológica, semiótica, antropológica, histórica, etc.

Ensaístas de cinema foram Paulo Emílio Salles Gomes, Walter da Silveira, Francisco Luiz de Almeida Salles, Davi Arriguci Jr (embora este último seja mais ligado à literatura), entre muitos outros. Críticos, e com C maiúsculo, Antonio Moniz Vianna, Rubem Biáfora, José Lino Grunewald, Sérgio Augusto, Paulo Perdigão, Ely Azeredo, entre tantos!

Na minha trajetória de colunista sempre me considerei um comentarista, ainda que, vez por outra, tenha assumido a crítica. Fazer uma coluna diária de jornal é uma tarefa que não dá margem a um pensamento mais cristalizado e maduro acerca do que se viu, pois há a pressa de se ver o filme e bater o texto para a entrega imediata.  O fator psicológico também influi e já aconteceu de ter incorrido em erro de apreciação por não estar bem quando da visão de um filme (uma dor de cabeça, uma gripe, uma indisposição qualquer, uma consumição, etc)  e, pelos ossos do ofício, ter de elaborar um comentário para a coluna do dia seguinte.